Saltar para o conteúdo Saltar para o menu Saltar para o rodapé

biblioteca / textos literários

Coletânea de textos do Caderno Se Bem me Lembro...: O valetão que engolia meninos e outras histórias de Pajé

Kelli Carolina Bassani

04 de agosto de 2023


O texto abaixo é parte da coletânea de memórias literárias do caderno do professor Se Bem me Lembro...
, também disponível no formato virtual.



O valetão que engolia meninos e outras histórias de Pajé

Kelli Carolina Bassani
Aluna finalista da 3ª edição do Prêmio Escrevendo o Futuro 2006
E.M.E.I.E.F. Walter Fontana
Toledo - PR



Já foram escritas muitas histórias da época em que os meninos engraxates eram engolidos pelo valetão da Rua Sete de Setembro. Mas nenhuma delas conta esta ou outras histórias de Pajé. Guardo-as dentro do peito, como boas lembranças da rua onde vivi e que teimam em se misturar com a história da cidade.

Nascemos juntos: eu, a rua e essas histórias. Somos uma coisa só, mas nós não estamos nos livros. Estamos na contramão, por isso me atrapalho com as palavras. Às vezes falta ar, outras o ar é demais, então o meu coração acelera, o nó na garganta avisa: o menino Pajé vai acordar! 

Hoje, quem não conhece a Rua Sete de Setembro é porque não conhece minha cidade - Toledo. Apertada entre outras no extremo oeste paranaense, bem pertinho do Paraguai, surgiu de uma clareira no meio da mata. 

Naquele tempo, uma clareira; hoje, Rua Sete de Setembro. Essa rua foi crescendo e acolhendo o progresso que tenta esconder e aprisionar as histórias de Pajé. Elas estão descansando embaixo do calçamento, dos asfaltos, dos prédios, das casas. Basta um sinal que elas voltam.

Cheiro de terra molhada - esse era o sinal. E, ainda hoje, sinto esse cheiro entrando no meu cérebro e mexendo com o meu coração. Naquele tempo bastava sentir o cheiro de terra molhada para que nós, os meninos engraxates, escondêssemos nossas engraxadeiras - caixa de madeira em que se guardava o material necessário para engraxar sapatos - no porão dos fundos da bodega do Pizetta e, como garotos matreiros, saíssemos de mansinho, sem despertar curiosidade. Corríamos lá embaixo, no começo da rua que embicava no meio da mata, pois o mistério ia começar!

A chuva caía e formava muita enxurrada que, com sua força, trazia a terra misturada. Parecia uma cascata de chocolate que despencava no valetão - buraco muito profundo provocado pelas enxurradas, erosão. A água fresquinha que caía do céu misturava com a terra quente e provocava o mistério. Nós éramos puxados para dentro daquele enorme buraco por uma força estranha sem dó. Mesmo os que não queriam não conseguiam resistir, porque a magia era muito forte e, em poucos segundos, estávamos lá dentro, na garganta do valetão, onde brincávamos durante horas. Nessas horas o trabalho era esquecido.

Quando eu era menino, trabalhava muito. Todos os dias de manhã ia à escola e, ao retornar, mal acabava de almoçar, pegava a engraxadeira, colocava nas costas para a rua, quer dizer, para o trabalho. A engraxadeira era muito grande e pesada para meu tamanho - eu era apenas um garoto! Mas era a única forma de ajudar minha mãe no sustento da família.

Sentia como se estivesse carregando o mundo sozinho.

Hoje sou adulto e sei que aquela magia era fruto de nossa fantástica imaginação. Como qualquer outro menino, o engraxate também tinha direito de brincar. Uma das poucas vezes em que podíamos fazer isso era quando chovia. Mesmo que depois nos custasse castigos e surras.

Atualmente, as brincadeiras, comparadas com as de meu tempo, são muito diferentes. Hoje, os heróis são Superman, Batman, Homem-Aranha. Antes tínhamos heróis indígenas, com suas histórias cheias de mistérios das florestas.

Naquele tempo, quando chovia, o valetão da Rua Sete de Setembro era nosso mundo fantástico. Além das divertidas brincadeiras no lamaçal que escorria da rua, fazíamos cabanas no paredão da erosão, guerrilhas com bodoque, usando sementes de árvores como cinamomo e mamona.

Quando não chovia, sobrava tempo para brincar só aos domingos. Então, eu - Pajé - e minha turma nos reuníamos na mata, que se misturava com o terreiro das casas.

Nele, construíamos cabanas, arcos, flechas, tacapes. Pintávamos o corpo todo com barro e frutinhas da mata. Assim, sentindo-nos como heróis, brincávamos de índios guerreiros, até o sol se esconder.

Nossa vida se enchia dos poderes que vinham da mata e seguia solta, como passarinho. O fim da história? Não sei não, porque eu ainda vivo. E enquanto eu viver as lembranças nunca vão terminar.

Acompanhe as novidades

Imagem de capa de Uma ampliação de Pontos de Vista
sobre o Programa

Uma ampliação de Pontos de Vista

Saiba o que mudou na nova edição do Caderno Docente de artigo de opinião

Imagem de capa de A hora e a vez das biografias
sobre o Programa

A hora e a vez das biografias

Conheça o novo Caderno Docente com atividades sobre o gênero biografia

Imagem de capa de Lendo mulheres: a literatura de autoria feminina nas salas de aula
especiais

Lendo mulheres: a literatura de autoria feminina nas salas de aula

Veja conteúdos selecionados para apoiar a leitura de mais escritoras em suas aulas de Língua Portuguesa

formação leitora, literaturas e identidades, ensino de literatura, literatura de autoria feminina

Imagem de capa de Na Ponta do Lápis: revista chega ao número 40 com edição especial sobre culturas indígenas
sobre o Programa

Na Ponta do Lápis: revista chega ao número 40 com edição especial sobre culturas indígenas

Confira os conteúdos sobre línguas e literaturas indígenas de autoras(es) de diversas etnias do país

educação para as relações étnico-raciais, revista NPL, literatura indígena, formação docente, línguas indígenas

Comentários


Ninguém comentou ainda, seja o primeiro!

Ver mais comentários

Deixe uma resposta

Olá, visitante. Para fazer comentários e respondê-los você precisa estar autenticado.

Clique aqui para se identificar
inicio do rodapé
Fale conosco Acompanhe nas redes

Acompanhe nas redes

Parceiros

Coordenação técnica

Iniciativa

Parceiros

Coordenação técnica

Iniciativa


Objeto Rodapé

Programa Escrevendo o Futuro
Cenpec - Rua Artur de Azevedo, 289, Cerqueira César, São Paulo/SP, CEP 05.404-010.
Telefone: (11) 2132-9000

Termos de uso e política de privacidade
Objeto Rodapé

Programa Escrevendo o Futuro
Cenpec - Rua Artur de Azevedo, 289, Cerqueira César, São Paulo/SP, CEP 05.404-010.
Telefone: (11) 2132-9000