Uma festa para os livros e para a leitura
literatura, feiras literárias, formação leitora, livros
Aquele deveria ser o meu quinto ano consecutivo de atuação com estudantes do 6º ano. Apesar de ver circular na escola discursos sobre o fato de que alunas e alunos do 6º ano “não são mais crianças”, a minha experiência, ao longo daquele período, tinha me mostrado o contrário. Elas e eles são crianças e amam brincar, trazem para a sala de aula a vibração e a energia que é inerente à infância.
Assim era o meu aluno, a quem eu vou chamar de Guilherme. Um garoto de lindos olhos grandes e castanhos, que usava uma franjinha que sempre caía-lhe aos olhos. Tinha um sorriso enorme. Ele estudava no 6º D e era uma explosão de alegria, aquele aluno que você nota pela curiosidade que ele traz, pela vivacidade que demonstra em cada gesto, era raro vê-lo andando, estava sempre correndo, tamanha era a alegria de começar aquela nova etapa. Na primeira semana de aula eu costumava fazer uma rodada de apresentações. Além de pedir que elas(es) escrevessem uma carta, falando de si para mim, eu também pedia que elas(es) compartilhassem comigo e com as(os) colegas o que esperavam para o ano que começava. No relato do Guilherme havia a manifestação de grandes expectativas. Ele compartilhou o que tinha ouvido falar sobre o 6º ano: “Sei que teremos muitos professores, teremos que escrever a caneta e fazer muitas tarefas. Espero que seja como na outra escola, em que a gente aprendia muitas coisas”.
De fato, na escola anterior, o Guilherme tinha aprendido muitas coisas. O resultado das avaliações que fiz nos primeiros dias de aula para verificar o desenvolvimento delas(es) quanto à competência leitora, compreensão e produção de texto, revelou que o Guilherme tinha muita fluência na escrita e excelente capacidade de compreensão de diferentes gêneros textuais. Naquele primeiro bimestre, ele foi brilhante. Fazia avidamente todas as tarefas, com o maior entusiasmo.
No segundo bimestre as notas do Guilherme caíram significativamente. Fiquei imaginando que algo tivesse ocorrido. Ele conseguia notas suficientes para ser aprovado, mas estava bem distante do que eu o via fazer no primeiro bimestre. No terceiro bimestre ele era uma vaga caricatura daquele aluno que eu conheci no início do ano. No lugar de correr e saltitar pela escola, ostentando uma alegria contagiante, o Guilherme se arrastava, parecia sempre irritadiço, pouco interessado no que estava sendo proposto nas aulas. Achei que precisava conversar com ele. Chamei-o para um bate-papo quando o encontrei no corredor e perguntei: “Guilherme, o que aconteceu, querido? Suas notas caíram, você está diferente, parece triste, está acontecendo alguma coisa?” Ele me olhou atentamente, marejou os olhos e disse: “Professora, eu desisti de dar conta de tudo. É impossível, é coisa demais, é muito trabalho, é muita tarefa, é muita cópia, meus dedos doem de tanto copiar do quadro, do livro. Eu me esforcei, acordava mais cedo, ficava fazendo tarefa até mais tarde, deixava de brincar, quando eu, finalmente, tinha conseguido fazer tudo o que os professores pediam, na aula seguinte vinham mais tarefas. Eu estou cansado e por mais que eu faça, nunca é suficiente.”
Havia muita angústia na voz do Guilherme e havia muita dor também. Esta foi uma das conversas mais importantes na minha constituição como professora. Eu fiquei curiosa para saber que atividades estavam sendo propostas para as(os) estudantes daquela turma. Pedi para olhar os cadernos de várias(os) delas(es). De fato, era um volume muito grande de atividades. O Guilherme era muito comprometido com o que fazia e altamente inteligente. Inteligente o suficiente para compreender que a escola o havia transformado em um “tarefeiro”, em alguém que faz muitas tarefas, mas tarefas desarticuladas, que não dialogam entre si, que nem sempre trazem intencionalidade pedagógica. Algumas das tarefas que eu analisei se reduziam a cópias, que não provocavam as(os) estudantes a criar, elaborar, sistematizar, analisar, comparar, refletir. Outras eram questionários facilmente respondidos com uma leitura superficial de um texto, porque as perguntas eram superficiais. Outras ainda, pareciam trabalhos acadêmicos, solicitados sem uma orientação adequada, que permitisse às(aos) estudantes o processo necessário de pesquisa para se atingir os objetivos envolvidos quando se realiza esta natureza de trabalho. Havia muito foco na entrega de um produto, mas não se percebia a construção de um processo significativo de aprendizagem.
Também fui provocada a repensar o que eu mesma estava fazendo. Passei a me perguntar se o volume de atividades propostas para cada turma era proporcional ao ano que as alunas e os alunos estavam cursando, se as atividades que eu propunha eram interessantes, se elas provocavam as(os) estudantes a pensar. Concluí que eu precisava fazer ajustes na maneira como eu estava conduzindo o trabalho pedagógico. Naquele momento, fui percebendo como nos Anos Finais, dada à forma como o tempo escolar é articulado, nem sempre há a possibilidade de as(os) docentes organizarem o trabalho pedagógico de forma integrada. Na rede de ensino em que eu atuava, pouco tempo atrás, duas mudanças importantes tinham ocorrido: a ampliação do tempo de permanência das(os) estudantes na escola e a definição de que percentual da nota total das(os) estudantes seria dedicado a provas e a trabalhos. Passou a haver uma maior solicitação de trabalhos de pesquisa. As(Os) estudantes passaram a ficar cinco horas em aula. A pergunta que se fazia era sempre: “como manter estas alunas e estes alunos ocupados, de forma que não incorram em indisciplina?”. O meu longo tempo de atuação no 6º ano me colocou em contato com crenças que apontavam as turmas desta etapa como inquietas, indisciplinadas e difíceis de lidar. Quando concatenei todas estas informações, me dei conta de que talvez o volume de atividades era uma maneira de tentar conter esta agitação, ou ainda de manter as(os) estudantes ocupadas(os) durante aquelas cinco horas que passavam na escola.
Eu tinha atuado nos Anos Iniciais por quase uma década e lembrei-me de que nesta fase, nós organizávamos o trabalho pedagógico coletivamente. Para cada turma, havia a previsão de um tempo para estudar, para brincar, para ouvir histórias e pegar livros emprestados na biblioteca, para o recreio, para o lanche. Havia a definição de eixos temáticos e estruturantes que serviam de bússola na construção das atividades que seriam propostas. Havia um esforço de se propor uma abordagem dos conteúdos que se desse de forma interdisciplinar e, a partir da concepção do currículo integrado.
Nos Anos Finais, todo o tempo da aula era usado com as(os) estudantes sentadas(os) em cadeiras enfileiradas, executando tarefas de diferentes disciplinas que não conversavam entre si. Antes elas(es) tinham aulas com uma professora que cuidava de, no máximo, 30 alunas e alunos. Agora nos Anos Finais, eu, a professora que tinha menos alunos sob minha responsabilidade, tinha cerca de 240. O volume de trabalho pedagógico e burocrático que as(os) docentes tinham para executar e a ausência de previsão de tempo para o trabalho coletivo fazia com que cada uma(um) propusesse o que achava que fazia sentido e a turma via uma sucessão de aulas que não se conectavam entre si e em que eram propostas atividades de forma mecânica e repetitiva.
Depois daquela conversa com o Guilherme, eu nunca mais fui a mesma. Passei a ficar mais atenta a tudo o que eu propunha em sala de aula. Provoquei as minhas colegas a pensarmos juntas: como podemos fazer para, no lugar de pedir tantos trabalhos de oito disciplinas diferentes, construir processos pedagógicos mais ricos em que um mesmo trabalho ou pesquisa possa ser avaliado por mais de um componente curricular? Que metodologias e estratégias podemos construir para trazer mais foco na qualidade e não na quantidade de tarefas a serem feitas? Como fazer para organizar o trabalho pedagógico de forma a que as(os) estudantes se percebam como agentes, sujeitos em processo de aprendizagem e desenvolvimento integral e não apenas “tarefeiros”?
Anos depois desta experiência, eu abracei como metodologia de trabalho a Pedagogia de Projetos e, nas várias leituras que eu fiz sobre o tema, eu encontrei o pesquisador Fernando Hernandez que discute o quão importante é que sejamos capazes de transgredir a cultura escolar. Ouvindo o Guilherme, eu percebi que o que ele descrevia, quando falava de suas experiências na escola, era muito similar à “Educação Bancária”, aquela sobre a qual Paulo Freire fala, uma educação em que a(o) professora(or) deposita conteúdos em atividades e aulas para as(os) estudantes os depositem em provas. Esta concepção de educação traz como margem de ação para essa aluna ou esse aluno copiar, repetir, reproduzir.
É preciso transgredir esta lógica instrucionista. E nos Anos Finais ainda mais. Para isso, precisamos, entre vários pontos sinalizados pelo mestre Hernandez: superar a visão escolar baseada nos conteúdos escolares apresentados como objetos estáticos; transgredir a visão do currículo escolar organizado por disciplinas como se elas fossem “fragmentos empacotados em compartimentos fechados que têm pouco a ver com os problemas dos saberes fora da escola” (HERNANDEZ, 1998, p. 13) e subverter a lógica que prevalece na escola, de que passar no exame de ingresso à universidade deva ser o objetivo único e exclusivo de toda a educação básica. As(Os) estudantes, em qualquer tempo de sua escolarização, não são apenas estudantes, são sujeitos em desenvolvimento. Suas necessidades como crianças e adolescentes não podem ser negligenciadas.
Para aprender, a(o) estudante precisa sentir-se pertencente, sentir-se inserida(o) em uma comunidade de aprendizagem, é imprescindível ter o direito de ser criança e adolescente e ver sentido no que está sendo ensinado pela escola. Se o foco do nosso trabalho está na garantia das aprendizagens e do desenvolvimento integral, é preciso estar atento aos efeitos que a maneira como organizamos o trabalho pedagógico tem nas nossas alunas e alunos.
Professora(or), como temos reiterado, este espaço, a “Sala de professoras”, é nosso! Desejamos que esta coluna permita-nos aprender juntas e juntos, a partir do compartilhamento das nossas práticas e da reflexão sobre os nossos fazeres pedagógicos. Gostaríamos de saber como as considerações feitas nesta coluna chegam até você. Compartilhe suas impressões, reflexões e experiências em nosso mural, tendo em vista uma das questões propostas abaixo:
Referências
HERNÁNDEZ, F. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho. Porto Alegre: ArtMed, 1998.
Sobre a autora
Gina Vieira Ponte de Albuquerque é ceilandense, atuou como professora da educação básica na Secretaria de Educação do Distrito Federal por mais de 30 anos. É graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Pela Universidade de Brasília (UnB), é mestra em Linguística, com ênfase em Análise de Discurso Crítica, especialista em EAD, em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar e em Letramentos e Práticas Interdisciplinares nos Anos Finais. Autora do Projeto Mulheres Inspiradoras, agraciado com 15 prêmios, entre eles, o I Prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos.
Uma festa para os livros e para a leitura
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Letramentos e as práticas de linguagem contemporâneas na escola
multimodalidade, letramentos, ensino e aprendizagem de língua portuguesa, práticas de linguagem contemporâneas, BNCC, multissemiose
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