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Eu estava diante de uma turma que havia passado os últimos dois anos em casa, no ensino remoto, a ansiedade saltava aos olhos de algumas(uns) e eu conseguia perceber os olhares de preocupação com aquele momento tão esperado que se aproximava: a prova multidisciplinar. Com o objetivo de trazer um pouco de humor para a sala de aula e perceber a representação das(os) estudantes sobre o momento de avaliação, propus uma atividade sobre memes, tendo como tema a temida prova.
Depois de fazer a leitura com a turma de alguns quadrinhos (HQs) e charges, começamos a conversar sobre o gênero memes. Ao iniciar a aula, lembro de dizer que o gênero com o qual iríamos trabalhar era muito conhecido por elas(es). Mostrei alguns memes sobre expectativa e realidade, sorrimos um pouco e as(os) estudantes descreveram alguns memes que estavam em circulação naquele momento.
Depois dessa conversa, pedi que elaborassem um meme sobre o momento que se aproximava e sobre o qual elas(es) tanto falavam: a avaliação bimestral. Algumas(uns) perguntaram se podiam fazer sobre outras avaliações também e achei válido ampliar a nossa proposta. As(Os) alunas(os) iniciaram a atividade em sala e terminaram em casa.
Foi nessa aula, após pedir à turma que usasse a criatividade para elaborar produções desse gênero, que recebi o texto, inserido acima, de autoria da Ana¹. Além de cursar o sexto ano, a estudante frequentava um curso preparatório para participar de uma seleção de vagas para uma escola militar. Ao receber o texto de Ana e ver diante dos meus olhos a frustração daquela menina de apenas 11 anos, imaginei quais práticas corroboram para que a escrita seja entendida como momento de dor e não de cura.
Ela me contou que gostava muito mais de escrever antes de temer pela não aprovação na seleção para entrar na escola para a qual ela pleiteava a vaga. Para Ana, a escrita havia sido transformada pela métrica da análise linguística higienista, que visava apenas uma boa colocação no concurso. Assim, a escrita passou a ser um momento de sofrimento, um objetivo inatingível, e que um bom texto tem de ser escrito sem qualquer desvio da modalidade formal.
De vez em quando, Ana me mostrava os exercícios do cursinho com orgulho por ter conseguido acertar quase todos. Certa vez, ela me contou que havia cometido apenas dois desvios em seu último texto na avaliação simulada. Eu perguntei a ela: e você gostou do resultado final? Ela disse que gostaria de ter tirado nota máxima.
Lembrei-me de quando era criança, e, nas minhas recordações, eu amava escrever. Escrever era a minha maneira de administrar as adversidades da vida. Meu diário era mais que precioso. Por isso, a escrita para mim era prazerosa, curativa, maneira que eu encontrava para dizer todos os pensamentos que não podiam ser ditos publicamente. Ao mesmo tempo, lembrei do quanto fui estimulada pelas minhas professoras a produzir textos de maneira livre e divertida.
Foi conversando sobre a produção de Ana que descobri a angústia que ela sentia em compartilhar o que escrevia, o medo do erro era um sensor de bloqueio da sua criatividade. Apesar de fazer bom uso da modalidade formal da Língua Portuguesa, ela olhava para os seus textos com um julgamento excessivo e sentia pouco prazer em escrever. Percebi que outras(os) estudantes sentiam-se assim como ela, tensas(os) ao escrever e compartilhar suas escritas. Esse episódio me fez refletir sobre como eu poderia encorajar a minha turma a praticar uma escrita mais prazerosa.
Assim como Ana, algumas alunas e alguns alunos tinham a impressão de que um bom texto era aquele que não tem nenhum “erro”. Então, no lugar da escrita ser uma ferramenta de expressão, ela se transforma no desafio quase impossível de não errar absolutamente nada. Sem perceber, essas(es) estudantes estavam tão travadas(os) quanto à escrita que não percebiam o quanto deixavam de dizer pelo medo de errar. Como sabemos, a escrita só pode ser desenvolvida quando escrevemos.
Acredito que as nossas práticas em sala de aula também colaboram muito para o desenvolvimento dessa crítica paralisadora no que diz respeito à escrita. O modo como escolhemos falar sobre as produções das(os) nossas(os) estudantes não é um detalhe pequeno. Ao refletir sobre a produção de Ana e de outras(os) alunas(os), fiz uma revisão em minha prática docente e percebi que faltava mais espaço para conversarmos sobre as nossas produções, para que escrevêssemos sem medo.
Participar dos eventos do Gecria² foi fundamental para que eu pudesse refletir sobre práticas de escrita mais sensíveis e trouxe muita inspiração para o trabalho de produção textual.³ Os diálogos com Ana seguiram e fui apresentando à turma a escrita como recurso para drenar os sentimentos e as angústias. Em muitos momentos, a gente falava sobre como a primeira escrita precisa ser aquela em que deixamos o pensamento fluir, sem ficar se preocupando com erros, com cortes ou se tudo está fazendo sentido. Em nossos exercícios de escrita, eu também compartilhava o que eu havia escrito, ou seja, fazia a mesma atividade atribuída às(aos) alunas(os) e pedia que lessem o que haviam escrito para as(os) colegas de turma, mas apenas se quisessem.
No dia da avaliação bimestral da escola, lembro de usar a metodologia do Gecria (DIAS, 2023) antes do momento da prova. Dei às(aos) estudantes três frases para que completassem com um texto de expurgo das angústias que sentiam no momento anterior à tão temida “prova”. Eu combinei com elas(es) que nós escreveríamos juntas(os) e que só iria ler o texto quem se sentisse à vontade para partilhar. Entre os combinados, tínhamos o dever de não quebrar o silêncio precioso para a escrita.
Antes de ditar as frases inspiradoras para a turma, eu propus um exercício de respiração para que se sentissem mais focadas(os) na atividade. Eu disse a primeira frase, elas(es) a copiaram em seu caderno e continuaram a escrever completando com tudo o que surgia em suas mentes. Eu dava um tempo de três minutos entre uma frase e outra e a regra, assim como aprendi nos eventos do Gecria, era escrever sem parar. Deixar fluir o pensamento.
Naquele dia, estava chovendo forte e eu resolvi começar o exercício com essa inspiração. As frases disparadoras que orientaram a escrita da turma e minha, pois também participei da atividade, foram:
As alunas e os alunos escreviam com tanta vontade que reclamaram de sentir dores nas mãos ao terminar o exercício. Colocavam tanta força na escrita que o papel apresentava certo relevo. Ao final do exercício, perguntei quem sentia vontade de partilhar o que tinha escrito. Algumas(uns) estudantes, muito acanhadas(os), iniciaram a partilha, todos eram aplaudidas(os) ao final e nós tecemos comentários afetuosos, pois o objetivo era acolher.
Eu senti vontade de compartilhar meu texto com elas(es) e percebi um olhar muito amoroso enquanto lia aquelas palavras que acabavam de brotar do mais fundo de minhas reflexões e angústias. Peço licença para dividir com vocês o meu exercício:
Uma parte da turma se sentiu encorajada a ler o que tinham escrito depois que li o meu texto, enquanto outra parte não se sentiu confortável em partilhar. Assim, eu disse que podiam, inclusive, rasgar o que tinham escrito, se assim o quisessem. Um grupo de meninos cortou os papéis em pedaços muito pequenos, para que não fossem identificados. O medo da exposição era muito perceptível. Apesar disso, eles diziam se sentir melhores de terem colocado no papel os sentimentos que estavam presos há algum tempo.
Assim iniciamos as nossas atividades com escrita criativa. As(Os) estudantes gostavam muito de quando a atividade era individual e podiam escrever tudo o que quisessem. Esses momentos foram apelidados de “proibidão da escrita”, e a turma escrevia cartas que nunca seriam entregues. Em outros momentos, tivemos a oportunidade de escrever bilhetes carinhosos para as(os) colegas, esses seriam entregues com muito capricho.
Com o passar do ano, aproveitei a escrita criativa para a criação de resenhas e de narrativas também. A regra era de que as alunas e os alunos só partilhassem o que haviam escrito quando se sentissem completamente à vontade. Com o passar do tempo, a partilha foi crescendo e o medo foi diminuindo, ao passo que tecíamos comentários afetuosos sobre a escrita da(o) estudante.
Recordo de uma atividade em dupla na qual as alunas e os alunos deveriam escrever uma resenha criativa da obra “Os nove pentes D’África”, da autora Cidinha da Silva. A primeira escrita era individual e, depois disso, elas(es) formaram duplas para ler o texto de colegas para apreciação e comentários construtivos. A revisão de textos em pares foi uma estratégia de aprimoramento das produções escritas das(os) estudantes. Assim, tinham o benefício de serem autoras(es) e revisoras(es) ao mesmo tempo. Esse processo teve como foco utilizar os conhecimentos gramaticais como ferramenta e não como objeto da escrita, como já reforçou Márcia Mendonça no artigo Análise linguística e produção de textos: reflexão em busca de autoria, disponível em nosso Portal.
Para a revisão dos textos em pares, eu pedia às(aos) estudantes que anotassem em uma folha todas as sugestões, elogios e pontos que precisavam ser melhorados para o entendimento do texto para que trocassem as informações com a(o) colega de maneira cuidadosa. Este momento era uma oportunidade de conhecer a escrita do outro e ter o texto lido antes de entregar para a avaliação. Nessas atividades, Ana era muito consultada pela turma, sua dedicação aos estudos a ajudou a dominar algumas regras que, para suas(seus) colegas, ainda causavam muitas dúvidas.
Ao ter contato com outros textos produzidos por estudantes como ela, Ana teve a oportunidade de refletir sobre os seus também. Ela seguiu dedicada e preocupada com sua escrita, disso não tenho dúvidas. Ao mesmo tempo, teve também a chance de apreciar momentos de escrita mais voltados à expressão e ao exercício da criatividade. Para mim, isso deveria ser preservado em nossa prática docente.
Por muitas vezes, eu me via diante do desafio da sobrecarga de avaliar tantas atividades, e de conseguir trazer conteúdos significativos para as(os) estudantes. Percebo que trabalhar a escrita criativa me ajudou a expressar minhas ideias para a turma e, diante da minha exposição, nosso vínculo foi fortalecido. A partir desses exercícios, eu conseguia comunicar muito do que sentia na minha função docente e também ouví-las(os) sobre como avaliavam esses momentos. Acredito que a docência traz isso para a gente, o movimento e a transformação, já que ao entrar em contato com a infância através de nossas(os) estudantes, também podemos reconhecer a criança que fomos e que, de certo modo, ainda nos habita.
Aproveito para deixar algumas avaliações de estudantes sobre nossos momentos de escrita criativa:
Referências
DIAS, Juliana. Leitura e produção de texto. Editora Contexto, 2023. Coleção de Linguagem Universidade.
MENDONÇA, Marcia. Análise linguística e produção de textos: reflexão em busca de autoria. Revista Na Ponta do Lápis, Ano XII, número 27, agosto de 20016. Disponível em: https://www.escrevendoofuturo.org.br/conteudo/biblioteca/nossas-publicacoes/revista/artigos/artigo/2264/analise-linguistica-e-producao-de-textos-reflexao-em-busca-de-autoria. Acesso em: agosto de 2023.
Sobre a autora
Mayssara Reany é mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Letramentos e Práticas Interdisciplinares, também pela UnB. Professora da educação básica, desde 2013, lecionou no Ensino Médio por sete anos e, depois, seguiu para Secretaria de Educação do Distrito Federal, atuando na Gerência de Pesquisa, Avaliação e Formação Continuada para Gestão, Carreira Assistência, Orientação Educacional e Eixos Transversais (GOET). Participou ainda da Subsecretaria de Formação Continuada dos Profissionais da Educação/EAPE como formadora do Programa Mulheres Inspiradoras (2020 e 2021). Em 2022 desenvolveu o seu trabalho como professora de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental II. Atualmente, é professora da Sala de Recursos Generalista do Centro de Ensino Médio Setor Leste, em Brasília.
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