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sua prática / sala de professoras

Para onde vão as “conversas que atrapalham as aulas”?

Oralidade e o trabalho com os temas sensíveis nas escolas

Gina Vieira

16 de agosto de 2023

Gente querida, educadoras(es) brasileiras(os) que, neste momento, acessam este espaço, “Sala de professoras”, manifesto a minha alegria e a minha honra de estar aqui dialogando com vocês. Quem é professora sabe que a sala onde nos reunimos, a sala destinada aos nossos encontros, descanso, dedicada a um respiro da regência, ao nosso cafezinho, esta sala, mais comumente chamada de “Sala dos professores” é um espaço muito especial da escola. Por isso mesmo, por conhecer e saber da importância que este espaço tem é que entro na “Sala de professoras” com todo o cuidado e imensa reverência. Decidi abri-lo falando do que provavelmente tem pulsado mais forte, nos últimos tempos, nas mentes e nos corações das professoras(es) que atuam nas milhares de escolas brasileiras: as violências e as ameaças de ataques que fizeram com que, no dia 20 de abril, todos ficássemos em alerta. Como lidar com estas situações? Como conciliar a demanda de tratar deste tema com a urgência de trabalhar os conteúdos que estão no currículo? Como dialogar sobre estes temas sensíveis que chegam à escola?

Para responder a estas perguntas, pensando especificamente no ensino de Língua Portuguesa, precisamos levantar outras questões igualmente importantes: “que concepção de escola, de sujeito, de aprendizagens e de ensino de língua nós temos? Que entendimento temos sobre o trabalho com a oralidade na escola?” Digo isso, porque a depender das concepções, representações e crenças que carregamos sobre a escola, podemos concluir que falar sobre estes temas - violências na escola, ameaças de massacre -, é assunto para especialistas, e nós, professoras, a partir desta lógica podemos subestimar o poder que temos como educadoras, aquelas que estão, todos os dias, em contato direto, olhos nos olhos, com as(os) estudantes. Ainda persiste, muitas vezes, a ideia de que a vida é apartada dos conteúdos que temos a ensinar, como se viver fosse uma coisa e aprender conteúdos formais outra, quando, na verdade, trazer o que acontece na vida para compor a Organização do Trabalho Pedagógico (OTP) é atribuir sentido ao que desejamos ensinar. Aterrissar os conteúdos na vida, no território, é fazer com que eles se tornem muito mais relevantes e tenham muito mais chances de mobilizar alunas e alunos. A concepção de organização do trabalho pedagógico que parte das práticas sociais vivenciadas pelas(os) estudantes é o que propõe o mestre Demerval Saviani, a partir da Pedagogia Histórico-Crítica, uma teoria e método de OTP formulados a partir da realidade brasileira, que eu aprecio profundamente e que trouxe mais significado e força ao meu trabalho como professora da educação básica.

Quando, ao longo da minha prática, eu me deparava com situações que demandavam abrir espaços de diálogo com estudantes sobre temas específicos que estavam circulando dentro e fora da escola, como conflitos nascidos das redes sociais, namoro, sexualidade, não raro eu era interpelada com a afirmação: “mas, isso não é conteúdo de Língua Portuguesa”. Eu ouvia ainda: “Se você for abrir espaço para falar sobre isso, essas conversas vão atrapalhar as suas aulas”. E eu precisava lembrar às pessoas que o ensino da Língua Materna inclui a leitura, a escrita, análise linguística e a oralidade. Garantir às alunas e aos alunos espaços nos quais elas(es) possam falar é cumprir o que está estabelecido no currículo de Língua Portuguesa. Tenho observado que, em função da prova de redação do ENEM, o foco do trabalho com Língua Portuguesa, muitas vezes, fica restrito à escrita, em especial, de textos filiados ao tipo textual dissertativo.

A questão é que práticas como ler e interpretar, escrever e reescrever estão relacionadas às práticas de expressão oral. Exercitar a oralidade é uma forma muito importante de organizar o pensamento, de sistematizar ideias, de retomar conhecimentos assimilados, de construir argumentos e contra-argumentos sobre um determinado assunto. Criar espaços para trabalhar, com intencionalidade, a oralidade, é colaborar de forma decisiva para a garantia das aprendizagens. Quanto mais a sala de aula se traduzir em um espaço em que as(os) estudantes possam falar, se expressar, ouvir, argumentar, tanto mais estaremos contribuindo para as suas aprendizagens, sobretudo, em uma perspectiva de educação integral, democrática, cidadã, crítica, libertária, inclusiva e socialmente referenciada.

Como mencionei no início desta conversa, algumas vezes acreditamos que, para abordar, em sala de aula, assuntos sensíveis como violência, precisamos, necessariamente, trazer grandes especialistas para dar palestras. As palestras têm um papel importante na escola, mas nada se compara à abordagem transversal de determinados temas. Temas relacionados aos direitos humanos e diversidade, temas ligados às violências incidentes dentro e fora do espaço escolar, não podem ser trabalhados de forma episódica, esporádica e eventual. Estes temas devem atravessar todo o trabalho pedagógico e eles encontram, nas aulas de Língua Portuguesa, um espaço muito importante para serem abordados, justamente porque trabalhar Língua Portuguesa é trabalhar com diferentes formas de expressão, com diferentes gêneros e tipos textuais, com pesquisa, análise, síntese, argumentação e contra argumentação, construção e negociação de sentidos.

Quando as ameaças de massacre surgiram nas escolas, lembro-me de uma amiga que me contou, muito aflita, que o filho chegou em casa falando sobre o ocorrido, e que ele tinha conversado sobre o tema com outras crianças, sem que houvesse a mediação da escola. A instituição de ensino preferiu se comunicar apenas com as mães e pais, enviando à casa de cada estudante, um comunicado sobre os protocolos de segurança que estavam sendo criados na escola para enfrentar a situação.  Em nenhum momento a escola tinha reservado tempo para dialogar com as crianças e as(os) adolescentes, para ouvi-las(os) sobre o que elas(es) estavam sentindo, sobre que representações estavam fazendo a respeito de todos aqueles eventos que pareciam acontecer fora da escola, mas que a todo momento transbordavam no espaço escolar e tentavam se impor para que a escola olhasse para eles.

Nós, professoras e professores, sentimo-nos muito pressionadas(os) a dar conta do conteúdo a ser ensinado, e podemos ter a sensação de que parar uma aula para fazer uma roda de conversa, promover um debate, um júri simulado, sobre o que está pulsando em nossas turmas pode gerar perda de tempo, atraso no conteúdo, dispersão e divagação. Eu me senti assim muitas vezes ao longo da minha profissão, até perceber que ignorar o que pulsa entre as(os) estudantes é fazer com que, o que as(os) está incomodando vá ficando represado dentro delas(es), vá gerando angústia, ansiedade, e alienação do que estamos propondo como conteúdo.

Crianças e adolescentes precisam conversar, precisam ser ouvidas(os) e se ouvir. Sobretudo hoje, em que estão expostas(os) a um volume descomunal de conteúdos, via utilização de redes sociais e uso abusivo de telas, é fundamental que elas(es) tenham um espaço seguro onde possam falar do que vivem. Talvez alguém poderia dizer: “Mas, isso é papel das famílias, a escola não vai dar conta de tudo”. De fato, é indispensável que as famílias dialoguem com suas(seus) filhas(os). Mas, também é preciso reconhecer e legitimar a escola como este espaço coletivo, democrático e social, em que os diálogos se façam presentes, em que a expressão oral, a capacidade de argumentar e ouvir sejam tão valorizados quanto a escrita e a capacidade de compreender textos escritos.

Muitas vezes, promover este espaço para o trabalho com a oralidade envolve ações simples, como definir o gênero com o qual se quer trabalhar e selecionar um bom texto, que pode ser um vídeo, música, conto, poema, reportagem, notícia que deflagre os diálogos que estão prenhes de nascer. O que há de mais poderoso no trabalho com a oralidade é justamente a possibilidade que ela nos dá de colocar em evidência aquilo que é importante para a organização do trabalho e está invisível para nós, muitas vezes. Ter a oportunidade de falar sobre o que se pensa, sobre o que se sente, sobre o que as(os) angustia e as(os) inquietam, sobre como percebem o mundo, é tudo de que as(os) estudantes precisam para atribuir sentido à escola. Trabalhar para que a escola se constitua em um espaço genuíno de expressão, onde crianças e adolescentes sintam-se verdadeiramente ouvidas(os), percebidas(os) e validadas(os) é um pré-requisito indispensável para a construção do sentimento de pertença, tão necessário à formação de vínculos e à garantia das aprendizagens.

Nós, que amamos uma boa conversa na Sala de professoras, sabemos o quanto um bom bate-papo, um bom debate, uma boa roda de conversa podem colaborar para o fortalecimento da nossa prática, do nosso sentimento de rede, de coletividade. Com as(os) nossas(os) estudantes não é diferente. Elas e eles amam conversar. Conversar é exercitar a oralidade, algo que lhes é garantido como direito, em todas as disciplinas, em todos os componentes curriculares da educação básica, mas que pode encontrar nas aulas de Língua Portuguesa um espaço ainda mais importante, porque nele as conversas constituem um conteúdo muito específico, que deve ser trabalhado com intencionalidade, com ancoramento nas práticas sociais e articuladas com as outras práticas do componente curricular, como leitura, compreensão de texto e escrita autoral. Oralidade é sobre exercitar a fala e a escuta, é sobre o que o Riobaldo nos fala quando diz, em Grande Sertão: Veredas: “O narrar elabora o viver”. Permitir às(aos) estudantes, ao longo de nossas aulas, oportunidade de falar, de narrar, de ouvir é proporcionar-lhes condições de aprendizagens e desenvolvimento integral muito mais efetivas.

Como podemos transformar as “conversas que atrapalham as aulas”, em conversas que constituem as aulas e potencializam as aprendizagens, em uma perspectiva de desenvolvimento integral? Você, professora e professor, me conta aqui, por favor, entre um cafezinho e outro que tomamos, o que pensa sobre isso.

 

Sobre a autora

Gina VieiraGina Vieira Ponte de Albuquerque é ceilandense, atuou como professora da educação básica na Secretaria de Educação do Distrito Federal por mais de 30 anos. É graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Pela Universidade de Brasília (UnB), é mestra em Linguística, com ênfase em Análise de Discurso Crítica, especialista em EAD, em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar e em Letramentos e Práticas Interdisciplinares nos Anos Finais. Autora do Projeto Mulheres Inspiradoras, agraciado com 15 prêmios, entre eles, o I Prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos.

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