Uma festa para os livros e para a leitura
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Rimas, versos bem marcados, enredos envolventes e recitações em voz alta; o trabalho com a Literatura de Cordel em sala de aula é carregado de expectativas de mobilização de estudantes, envolvendo-os numa prática onde a oralidade mescla-se com a escrita e a tradição com o contemporâneo. A Literatura aqui tem uma função ativa, na medida em que desloca o corpo e a voz daqueles que a leem ou produzem.
Consolidada, reconhecida e tombada como patrimônio cultural brasileiro, ao longo dos anos a Literatura de Cordel também conseguiu marcar sua presença no cotidiano escolar. Gestores, docentes, estudantes e comunidade externa à sala de aula: todos compreendem – de alguma maneira – ao menos uma característica que compõe os poemas pertencentes a esse tipo de produção cuja origem é, na maior parte das vezes, direcionada para uma raiz luso-ibérica que minimiza as formas e presença de outros grupos étnico-raciais na sociedade brasileira¹. Se tomada como unilateral, essa afirmação de vínculos transatlânticos, inclusive, mascara as formas como os conflitos, dinâmicas sociais e estratégias de sobrevivência foram mobilizadas para que o Cordel emergisse em solo nacional, especialmente nordestino.
Recriando o mundo através da palavra poética, o trabalho com a Literatura de Cordel em sala de aula precisa de perspectivas docentes seletivas e compromissadas quanto à escolha de repertórios mobilizados, uma vez que a escola é, por excelência, espaço público e de formação, onde são aprendidas, partilhadas e articuladas uma série de normas de promoção cidadã, respeito, autonomia e diversidade. Sob essa ótica, tal como qualquer outro material, os poemas de cordel não devem violar ou cercear a dignidade dos sujeitos, mas sim capacitá-los com referências, autoestima e repertórios que possam ser mobilizados para sua participação positiva na sociedade. Para além da apresentação de uma poética tradicional ou de uma literatura específica, há, no trabalho do docente e do gestor escolar, um compromisso ético-social que se desdobra e deve envolver o texto, a evolução dos leitores e da sociedade civil.
Vejamos, por exemplo, a composição do clássico folheto A chegada de Lampião no Inferno, de José Pacheco: após uma vida repleta de grandes feitos, discussões, fugas e conflitos, o venerado cangaceiro Lampião chega ao inferno acompanhado de seu bando para passar a eternidade. A entrada no ambiente sobrenatural era esperada, já que por lá ele encontraria outros criminosos e homens imorais que, sob essa narrativa, não foram dignos de aceitação divina (no céu). No entanto, por medo de mais confusão, o Diabo não autoriza a entrada do famoso cangaceiro em seus domínios, o que resulta numa revolta sem precedentes. Trocas de tiros, valentia, pedras e paus jogados ao ar, até mesmo socos e pontapés são vistos por toda parte, sem que haja resolução final.
Famoso e reeditado inúmeras vezes, o folheto traz uma série de características que, a partir de pontos de vista estereotipados, configuram a linguagem cordelística: rimas e métricas (tamanho dos versos) bem definidas, humor acentuado, histórias quixotescas, cangaceiros, combates, religiosidade etc. No entanto, quando analisamos atentamente a narrativa encontramos a reafirmação de valores incompatíveis com a promoção de uma sociedade democrática e antirracista, princípios caros para sala de aula.
Acabou-se o tiroteio
por falta de munição
mas o cacete batia
negro embolava no chão
pau e pedra que pegavam
era o que as mãos achavam
sacudiam em Lampeão
[...]
Lucifer mais Satanaz
vieram olhar do terraço
todos contra Lampeão
de cacete faca e braço
o comandante no grito
dizia: briga bonito
negrada chega-lhe o aço²
Ao associar o ser negro com o pertencimento aos domínios do Diabo ou ao grupo de Lampião – visto como antagonista –, o poema reafirma o tratamento desigual das relações raciais, com ênfase para o rebaixamento da população negra. Se no inferno habitam aqueles que em vida foram imorais, cometeram crimes e não conquistaram o perdão divino, José Pacheco caracteriza esses sujeitos como negros, deixando subentendido que o que cabe para o grupo não são as vitórias, honras ou méritos de um percurso trilhado com dignidade, mas sim o demérito natural. É por isso que ao analisarmos os versos, fica evidente que o confronto se dá entre negros: uns ligados à “Lucifer mais Satanáz” e outros próximos de Lampião. Aliás, a associação entre o negro e figuras diabólicas foi tópico comum nos folhetos de cordel³.
Para além dessa representação direta, o texto também é acompanhado de um processo de desumanização continua dos sujeitos negros, uma vez que o folheto os barbariza por não apresentar qualquer tentativa de diálogo pacífico entre os oponentes. Assim que é rejeitado no inferno, o grupo de Lampião inicia ataques sem fim que são revidados com força igual, ou seja, nenhuma das partes saberia dialogar, sendo violentas e impulsivas por sua condição de baixeza que é – nesse poema – uma condição racial.
É importante que tenhamos em mente que, embora se trate de um folheto clássico e faça parte de uma elaboração poética popular, a Literatura de Cordel é fruto das dinâmicas constitutivas da sociedade brasileira, ou seja, ao mesmo tempo em que possibilita o destaque e reconhecimento para grupos marginalizados, ela também pode reafirmar contradições e preceitos incompatíveis com os propósitos de uma convivência cidadã cotidiana e, enfaticamente, educativa e escolar. Não queremos afirmar aqui que se trata de uma produção necessariamente preconceituosa ou um discurso fechado, mas sim de uma faca de dois gumes: heterogênea⁴ e em constante disputa, que se incorpora às tensões presentes em seu espaço de emergência para sobreviver enquanto texto e trabalho para seus(as) produtores(as).
O que constitui a Literatura de Cordel não é seu suporte, local de impressão ou formato de leitura, muito menos a forma como consumimos os textos – se comprados em bancas de jornal ou na internet; mas sim, a estrutura poética com a qual lida com uma realidade. É a reescrita do mundo dentro de versos bem marcados que criam caminhos outros, textos que expressam “imaginariamente o Nordeste, mas expressa ainda mais a capacidade nordestina de imaginar”⁵. Por isso, tal como todo trabalho com literatura, discutir o Cordel em sala de aula também passa pela necessidade de preocupação docente sobre a seleção dos textos, principalmente no que trata das formas de representação de grupos marginalizados, já que más figurações ferem a sociabilidade e se desdobram na manutenção de preconceitos que limitam o bem viver estudantil e a superação de violência simbólicas e concretas da sociedade brasileira.
Mais do que isso, é preciso que seja oferecido aos estudantes a possibilidade de se espelharem e se reconhecerem positivamente em cada verso a partir de suas diferenças e singularidades, que constituem uma riqueza imensurável. Nesse sentido, a Literatura de Cordel já oferece debates abertos com diferentes perspectivas e pontos de enunciação que vão de mulheres, lgbtqia+, negros e indígenas, até homens brancos empáticos com a reorientação do cotidiano para a diversidade. É o caso de nomes como Hamurabi Batista, Jarid Arraes, Bule-Bule e Varneci Nascimento, entre outros que poderão a vir, por exemplo, da sala de aula.
No Caderno Docente sobre Poema - material voltado para estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental - está disponível a oficina 7, etapa 2, que apresenta uma proposta de leitura do cordel "Dandara dos Palmares", de Jarid Arraes. Clique aqui para ver.
1- ABREU, Márcia, Histórias de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado das Letras, 1999.
2- Pacheco, José. Chegada de Lampião no inferno (A) [en ligne]. 8p. Disponível em : <http://cordel.edel.univ-poitiers.fr/viewer/show/358> Acesso em 10 de janeiro de 2021
3- MOURA, Clóvis. O preconceito de cor na literatura de cordel. São Paulo: Resenha Universitária, 1976.
4- TERRA, Ruth Brito Lemos. Memórias de lutas: a literatura de folhetos no Nordeste, 1893–1930. São Paulo: Global, 1983.
5- BRASIL. Ministério da Cultura. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ata da 89ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro, 19 de setembro de 2018. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/atas/ata(3). pdf. Página 19. Acesso em: 8 de janeiro de 2021
Sobre o autor
Ronaldo Vitor da Silva é Bacharel em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH–USP) e mestrando do programa Culturas e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB–USP). Também compõe o Núcleo de Desenvolvimento Institucional do Museu Afro Brasil e integra o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Afro-América (NEPAFRO).
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