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sua aula / planos de aula

Escritas de si em diálogo: um trabalho com o gênero diário

Autora do artigo: Eduarda Ribeiro Rodrigues; Autora do plano de aula: Lara Rocha

01 de junho de 2022

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Público-alvo

Estudantes do Ensino Fundamental – Anos Finais, adaptável para o Ensino Médio.

Duração

5 aulas

Alinhamento à BNCC

2 Competências
4 Habilidades

Público-alvo

Estudantes do Ensino Fundamental – Anos Finais, adaptável para o Ensino Médio.

Duração

5 aulas

Alinhamento à BNCC

2 Competências
4 Habilidades

Carolina: uma história a ser contada


Nos últimos anos, a trajetória de Carolina Maria de Jesus teve grande repercussão, tanto no setor educacional — várias escolas, cursinhos populares e movimentos sociais receberam seu nome, além do aumento da discussão em torno da sua obra em sala de aula — quanto no cultural. A exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros”, foi a mostra mais visitada no Instituto Moreira Salles em 2021. Em 2022 a escritora foi tema do samba-enredo da Colorado do Brás.

Mas afinal, quem foi Carolina Maria de Jesus?


Em 1914, nasceu Carolina Maria de Jesus na pequena cidade de Sacramento, sul de Minas Gerais. O Brasil, que em maio de 1888 aboliu a escravidão e em novembro de 1889 substituiu um regime monárquico pelo republicano, mantinha características de um passado escravista, revelado na desigualdade racial e social. Na sua infância, Carolina Maria de Jesus conviveu com pessoas que foram escravizadas, por exemplo, o seu avô, a quem chamava de Sócrates Africano. A pequena Bitita1, apelido que recebeu quando criança, cresceu rodeada de pobreza, analfabetismo, racismo e violência de gênero.

Na obra autobiográfica “Diário de Bitita”, a partir da escrita de Carolina Maria de Jesus mais velha, temos o privilégio de ler o que ela escreve sobre si e como se vê, o que rememora e como revive a encenação de seu e outros corpos em seus múltiplos papéis, quais são as marcas históricas e sociais de sua temporalidade.

A escrita de Carolina retrata as relações vividas em seu cotidiano. Nele podemos observar uma disputa do espaço de seu corpo negro na sociedade, uma luta entre o “lugar natural” ao qual estava destinada pelas marcas sociais e econômicas do pós-abolição e o “lugar não-natural” ao qual desejava e buscava estar. Na sua narrativa é possível notar uma conexão contraditória e dialética entre o Dominante (adultos, homens e brancos) e o Dominado (criança, mulher e negra). Porém, essa contraposição não ocorre somente em termos abstratos, mas também de forma real na luta diária de Bitita contra as múltiplas facetas das opressões que a cercam.

Carolina nos apresenta uma Bitita sedenta por conhecimento, sobre si e sobre o mundo. Diante da sua realidade ela questiona à mãe se ela é bicho ou gente. Contudo, não fica satisfeita em saber o que é, precisa descobrir também quem ela é dentro do mundo: mulher ou homem? Nessa primeira impressão, os homens eram figuras fortes e provedoras e as mulheres fracas, e ela não queria esse lugar. Com o passar do tempo, Bitita percebe que as mulheres podem ter tanto poder quanto um homem, afinal ouviu durante uma festa junina a história de uma mulher com poder de mandar um rei cortar a cabeça de João Batista2, de quem todos falavam.

No entanto, Bitita percebe que seu corpo além de ser percebido por ela e por outros como mulher, também tem outra marca social, a negritude, permeada por uma pobreza histórica. Mesmo nesse lugar, a menina não se cala e enfrenta até mesmo um juiz branco3 para defender aquilo em que acredita, sendo chamada de “negrinha atrevida” por ter coragem de expor os abusos sexuais que o filho dele cometia contra as meninas do orfanato.

Toda essa determinação e curiosidade levaram a menina a ir além de todo imaginário pensado e possível para a sua realidade. Aprendeu a ler e escrever desde pequena, era questionadora e corajosa, características que lhe renderam a fama de “louca” e a levaram para cadeia bem novinha.

O jornalista Tom Farias, ao falar de Carolina Maria de Jesus, ressalta que ela teve a sua jornada associada à desordem social, pois não aceitava para si o rumo de vida orientado pelos outros. Isso fez com que ela se tornasse uma peregrina, com longas andanças a pé de cidade em cidade, em busca de alimento e de dignidade.

Em 1937, Carolina Maria de Jesus4 decide migrar para a cidade de São Paulo, depois de viver por mais de vinte anos em Sacramento. As razões para a migração são muitas, mas as dificuldades em conseguir trabalho, uma saúde instável e sua insatisfação com a própria vida fizeram com que decidisse tomar o rumo de uma cidade que era desejada e temida, mas que para Carolina poderia significar um recomeço.

Na cidade de São Paulo, além das marcas sociais de "mulher" e "negra" que Carolina representava, foi acrescentada a de “favelada”. Foi na favela do Canindé que o seu livro mais famoso foi escrito. Quarto de despejo: diário de uma favelada5, lançado pela primeira vez em 1960, tornou Carolina uma das escritoras com maior número de vendas, no ano, no Brasil e com grande repercussão internacional.

O livro se tornou um best-seller traduzido para 16 línguas e vendido em mais de 40 países, entre eles a França. A revista francesa Paris Match publicou uma matéria sobre a escritora brasileira e seu livro, revista que tinha como leitora fiel a antilhana Françoise Ega, mulher negra e trabalhadora doméstica que, como Carolina, escrevia e sonhava em ter seus textos publicados. Françoise Ega sentiu-se profundamente tocada por Carolina Maria de Jesus, ao ponto de criar um diálogo com ela em sua obra Cartas a uma negra6, na qual ela escreve cartas para a brasileira, cartas que nunca foram entregues. Em maio de 1962, em seu primeiro texto para Carolina, Françoise diz:

Pois é, Carolina, as misérias dos pobres do mundo inteiro se parecem como irmãs. Todos leem você por curiosidade, já eu jamais lerei; tudo o que você escreveu, eu conheço, [...]

Apesar de chamar os seus textos para Carolina de cartas, Françoise cria uma espécie de diário no qual narra o seu dia a dia como trabalhadora doméstica. Através dos seus textos é possível ter uma ideia de como era ser uma mulher negra e pobre vivendo na França.

12 de abril de 1963

No primeiro dia de trabalho na casa da patroa, trouxe comigo uma marmita. Ela disse: “Não precisa de uma marmita, aqui não é uma cantina! Sempre haverá algo para comer!”. Assim, no dia seguinte, não levei nada de casa para o almoço. A patroa disse aquilo, mas seu marido olhou para mim de pé, com meus setenta quilos bem distribuídos, e disse: “Essa mulher deve comer feito um animal!”. Ao ouvir a frase, perdi o apetite e, de noite, voltando para casa, senti meu estômago roncar, pois tinha hesitado em comer direito.

25 de novembro de 63

Rapidamente terminei de limpar a casa e fui visitar a velhinha querida. Ao notar minha presença, ela exclamou:

“Chegou a minha martinicana!”

Enfim, houve progresso, ela não disse a “negra”. Tirei o pó de todas as peças enquanto ela me falava o que tinha feito em La Roque-d’Antherón durante sua estada, também me contou sobre Beaucaire, Sisteron e Miramas, onde os netos dela moram. E pela centésima vez lhe descrevi a casa da minha mãe e as árvores que a rodeavam. O que ela não entende de jeito nenhum é que os invernos nunca chegam lá; por ela, tento esquecer que outras mulheres de olhos azuis têm o coração sombrio.

Ao desafiar a realidade a sua volta e escrever com os poucos recursos que estavam à sua disposição, ou seja, em cadernos velhos encontrados no lixo, Carolina instaura uma nova tradição na literatura. Não eram só homens e mulheres brancas que podiam escrever, uma mulher negra e favelada também poderia.

Nascida há 108 anos, Carolina segue emocionando e influenciando a escrita de mulheres negras. Mesmo sendo uma escrita única, as palavras de Carolina representaram e seguem representando inúmeras mulheres, como é o caso das escritoras do livro Carolinas, lançado em 2021. Em comemoração aos 60 anos de publicação de Quarto de Despejo, a Festa Literária das Periferias- FLUP criou um processo de formação de escrita, para o qual se inscreveram mais de 500 mulheres. Esta edição do projeto FLUP – “Pensa, uma revolução chamada Carolina” foi destinada exclusivamente a mulheres autodeclaradas negras. O evento contou com mulheres de norte a sul do país, algumas ainda alunas do Ensino Médio, outras já aposentadas, e não só do Brasil, mas também da Europa e África. Todas essas mulheres, além da cor, têm em comum Carolina Maria de Jesus como precursora e inspiração. Como resultado desse processo, foi lançado em 2021 o livro Carolinas: a nova geração de escritoras brasileiras7, escrito pelas mãos de 180 mulheres.

Carolina Maria de Jesus, em suas obras, mostra que não existe ninguém mais preparado para escrever sobre nossas vivências do que nós mesmos. É hora de trabalhar com o gênero diário em sala de aula, apresentar as obras citadas no texto e propor a turmas de estudantes que escrevam sobre o seu dia a dia.


  1. Segundo pesquisa realizada pelo jornalista Tom Farias, a palavra bitita é originária do termo feminino “mbita”, da língua xichangana, falada em Moçambique, ou “bita”, em corruptela, que significa “panela de barro”, induzindo a pensar que, como atesta o Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa, o “diminutivo feminino singular desse termo gera a palavra “bitita”. Portanto, “bitita” (apelido de infância da escritora) é designativo de algo vindo do barro, cuja cor é ocre ou preta.
    Fonte: https://revistaperiferias.org/materia/carolina-maria-de-jesus-uma-escritora-presente/
  2. (JESUS, 2014, pg. 27)
  3. (JESUS, 2014, pg. 33)
  4. (CASTRO e MACHADO, 2007)
  5. Quarto de despejo é o livro mais famoso da Carolina Maria de Jesus, mas não é o único. Leia também: Diário de Bitita, Casa de Alvenaria, Meu estranho diário, Antologia pessoal e Meu sonho é escrever.
  6. A obra de François Ega, publicada pela Editora Todavia, foi selecionada para o PNLD 2021 e poderá ser escolhida pelas escolas de todo o Brasil para compor o acervo das Bibliotecas e Salas de Leitura. No site da editora Todavia há excelentes materiais de apoio para desenvolver o trabalho com a obra em turmas de Ensino Médio. Confira! https://todavialivros.com.br/pnld2021/cartasaumanegra
  7. O livro Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras foi escrito a partir de formações que tiveram início no dia 12 de maio de 2020 e foram até o dia 19 de agosto do mesmo ano (aniversário de 60 anos da publicação de Quarto de Despejo). As mulheres negras que escreveram o livro são de diversos lugares do Brasil e foram selecionadas a partir de cartas enviadas à Carolina. As mais de duzentas escritoras foram divididas em oito grupos por ordem alfabética. Os grupos foram orientados por escritora(e)s que tiveram liberdade para propor abordagens diferentes para a criação de textos para o livro. Ana Paula Lisboa e Fred Coelho escolheram o gênero diário, sendo que ele sugeriu a escrita de um diário coletivo feito através de encontros semanais e ela um diário em que as mulheres narrassem suas próprias experiências, ou mesmo que ficcionalizassem, mas sempre na primeira pessoa.

Recursos materiais necessários


Trechos dos textos selecionados, impressos ou digitais; caderno individual para o registro do diário; materiais para escrita, como canetas, lápis, giz de cera, etc.

BNCC

Competências Específicas de Língua Portuguesa:

  • Competência específica nº1 
    Compreender as linguagens como construção humana, histórica, social e cultural, de natureza dinâmica, reconhecendo-as e valorizando-as como formas de significação da realidade e expressão de subjetividades e identidades sociais e culturais.

  • Competência específica nº5 
    Desenvolver o senso estético para reconhecer, fruir e respeitar as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, inclusive aquelas pertencentes ao patrimônio cultural da humanidade, bem como participar de práticas diversificadas, individuais e coletivas, da produção artístico-cultural, com respeito à diversidade de saberes, identidades e culturas.


Práticas de linguagem / Objetos do conhecimento:

  • Leitura


Objetos de conhecimento:

  1. Reconstrução das condições de produção, circulação e recepção;
  2. Apreciação e réplica;
  3. Adesão às práticas de leitura.

Habilidades (clique ou passe o cursor do mouse sobre os códigos das habilidades para ler suas descrições):

EF69LP44 Inferir a presença de valores sociais, culturais e humanos e de diferentes visões de mundo, em textos literários, reconhecendo nesses textos formas de estabelecer múltiplos olhares sobre as identidades, sociedades e culturas e considerando a autoria e o contexto social e histórico de sua produção. EF69LP46 Participar de práticas de compartilhamento de leitura/recepção de obras literárias/manifestações artísticas, como rodas de leitura, clubes de leitura, eventos de contação de histórias, de leituras dramáticas, de apresentações teatrais, musicais e de filmes, cineclubes, festivais de vídeo, saraus, slams, canais de booktubers, redes sociais temáticas (de leitores, de cinéfilos, de música etc.), dentre outros, tecendo, quando possível, comentários de ordem estética e afetiva e justificando suas apreciações, escrevendo comentários e resenhas para jornais, blogs e redes sociais e utilizando formas de expressão das culturas juvenis, tais como, vlogs e podcasts culturais (literatura, cinema, teatro, música), playlists comentadas, fanfics, fanzines, e-zines, fanvídeos, fanclipes, posts em fanpages, trailer honesto, vídeo-minuto, dentre outras possibilidades de práticas de apreciação e de manifestação da cultura de fãs. EF69LP49 Mostrar-se interessado e envolvido pela leitura de livros de literatura e por outras produções culturais do campo e receptivo a textos que rompam com seu universo de expectativas, que representem um desafio em relação às suas possibilidades atuais e suas experiências anteriores de leitura, apoiando-se nas marcas linguísticas, em seu conhecimento sobre os gêneros e a temática e nas orientações dadas pelo professor.

 

  • Produção de textos


Objetos de conhecimento:

  1. Consideração das condições de produção;
  2. Estratégias de produção: planejamento, textualização e revisão/edição.

Habilidades (clique ou passe o cursor do mouse sobre o código da habilidades para ler sua descrições):

EF69LP51Engajar-se ativamente nos processos de planejamento, textualização, revisão/edição e reescrita, tendo em vista as restrições temáticas, composicionais e estilísticas dos textos pretendidos e as configurações da situação de produção – o leitor pretendido, o suporte, o contexto de circulação do texto, as finalidades etc. – e considerando a imaginação, a estesia e a verossimilhança próprias ao texto literário.

 

Objetivos gerais


O trabalho com a escrita de diários nas escolas pode ser extremamente potente. Por seu caráter íntimo, sem grande rigidez de linguagem e formato, o gênero possibilita que os(as) estudantes explorem sua própria subjetividade e registrem seu cotidiano com autonomia.

Para inspirar o grupo, sugerimos que sejam trabalhados trechos de Quarto de Despejo (diário de Carolina Maria de Jesus). De maneira conjunta, propõe-se a abordagem de duas outras obras: Cartas a uma negra (de Françoise Ega) e Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras (de autoria coletiva). Ao mesmo tempo em que registram a experiência singular de suas autoras, os textos estabelecem vínculos temáticos e estilísticos com Carolina, incluindo-a, muitas vezes, como interlocutora - explícita ou implícita.

O trabalho em sala de aula com a produção dessas três autoras permite não somente aproximar os estudantes/a turma do gênero diário pessoal, como também refletir sobre a experiência de mulheres negras pelo negro.

 

 

 

 

 

 

Clique aqui para ter acesso aos trechos selecionados

São Paulo, 13 de maio de 1958

Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. [...]

Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair. ...Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer, eles brada: —Viva a mamãe!

A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir.

[...]

Choveu, esfriou. E o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos. E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual — a fome!

(Quarto de Despejo, p. 27)

 

São Paulo, 5 de janeiro de 1959

… Está chovendo. Fiquei quase louca com as goteiras nas camas, porque o telhado é coberto com papelões e os papelões já apodreceram. As aguas estão aumentando e invadindo os quintais dos favelados.

(Quarto de Despejo, p. 150)

 

Paris, 8 de novembro de 1962

Estou com uma dor de garganta das brabas, que me obriga a ficar em casa. Repouso na cama. Mas não conheço muitas donas de casa que ficam na cama. Pessoalmente, me concedo o direito de ficar em casa com essa chuva que não para de cair. Mas há muito o que fazer aqui! Meus filhos estão crescendo, eles têm um jeito todo deles de abrir os braços para me mostrar que suas roupas estão curtas demais! Preciso aproveitar a doença para aumentar em alguns centímetros o comprimento das camisas.

(Cartas a uma negra, p. 53)

 

Paris, 31 de março de 1963

Carolina, posso realmente dizer que perdi tempo só porque não deixei o melhor que eu tinha na casa de “uma senhora”? Não! Terminei meu primeiro livro, só me resta colocar a palavra “fim”, não me convenci a fazer isso, uma imensa apreensão me invade. Enquanto ainda não era um livro, todas as hipóteses me eram permitidas; às vezes, podia imaginar pessoas o

rejeitando: “Que fiasco!”

Em outros momentos, podia vê-lo nas mãos de “uma senhora”, repetindo à sua princesinha:

“Oh! Você pode ler! Eu adorei.”

Agora que terminei o livro, que não faço mais suposições e que escrevi pedindo conselhos a quem me permitiu conhecer você, sinto vergonha. É inexplicável, mas eu tinha mesmo o direito de maltratar a língua de Molière? Eu, uma pobre negra? Tinha eu o direito de dizer coisas bonitas em um francês meia-boca? É isso o que me preocupa!

(Cartas a uma negra, p. 87)

 

São Paulo, 15 de setembro de 2020

Ontem não escrevi, e hoje preciso fazer um grande esforço para escrever. A chuva de vento levou quase metade das teias, no desespero subi na cama e tentei segurar algumas. As meninas se esconderam embaixo da mesa grande, fiquei sem teias e com a mão machucada. Mais tarde irei falar com o padre, talvez a comunidade possa ajudar.

(Eduarda Ribeiro em Carolinas, p. 177)

 

 

Roteiro de atividades

1ª Etapa: Apresentação do gênero diário (1 aula)

Objetivo:

  • Aproximar a turma do gênero diário.

 

Atividades:

  1. Resgate os conhecimentos prévios e retome as características do gênero diário.

Busque levantar conhecimentos prévios sobre o gênero, destacando suas características, a exemplo da narrativa em primeira pessoa e a possibilidade de criar literatura a partir de seu cotidiano. Instigue-os a partir de questões como: “Para que serve um diário?”, “Você já escreveu um diário?”, “Que tipo de informação consta nos registros?”, “Quem costuma protagonizar os relatos num diário?”, “De que tipos de diário vocês já ouviram falar?”

Importante dizer que, dentre as modalidades de diários, existem os utilizados para registros públicos ou que poderão ser amplamente divulgados, como os diários de bordo, diários de classe, diários de viagem, diários de guerra. Aqui, o nosso foco serão os diários pessoais, que, ainda que sejam publicados, como os das referências literárias que leremos, seguem um tom íntimo.

Apesar dos elementos que constituem o diário pessoal serem bastante flexíveis, é possível identificar uma estrutura em comum, como data e local identificando o contexto de enunciação; vocativo (em alguns casos o próprio diário, mas também pode haver um interlocutor externo, como é o caso da Françoise Ega), linguagem simples, muitas vezes informal, e em primeira pessoa; tema cotidiano, envolvendo impressões e sensações sobre a vida de quem escreve.

Pergunte à turma se conhece produções artísticas envolvendo diários e o que elas têm em comum. Utilize como exemplo o Diário de Anne Frank (1947), Diário de um banana (2007), Diário da princesa (2001), Todo mundo odeia o Chris (2005) ou outros exemplos de filmes, livros e séries que possam gerar interesse entre eles(as). Aponte os aspectos semelhantes entre as obras: registros em primeira pessoa relatando o cotidiano. Embora tenham se tornado obras públicas, existe um tom íntimo na narrativa, característico do gênero.

Vale, ao longo desse momento de conversa, sistematizar as ideias que foram levantadas na lousa.

2ª Etapa: Leitura de trecho da obra de Carolina Maria de Jesus (1 aula)

Objetivo:

  • Aproximar estudantes da biografia e obra de Carolina Maria de Jesus.

 

Atividades:

  1. Apresente Carolina Maria de Jesus.

Exiba imagens de Carolina Maria de Jesus e conte um pouco de sua história, tomando como base o artigo Carolina: uma história a ser contada, de Eduarda Ribeiro Rodrigues, e o material disponibilizado no site do Instituto Moreira Salles. É interessante ressaltar que embora o diário seja um gênero íntimo, Carolina afirmava que desde o início escrevia para ser lida, ou seja, havia uma intencionalidade de ter seu diário publicado. É muito importante evitar as visões estigmatizadas acerca da autora, que a enxergam exclusivamente como uma escritora favelada e acabam por ignorar todo o potencial literário de sua obra.

Em seguida, proponha reflexões sobre os possíveis motivos que a levaram a escrever diários. Vale destacar a experiência artística multifacetada da autora e introduzi-los às suas produções musicais e à vasta produção literária. Para instigá-los sobre o tema, busque levantar entre a turma algumas hipóteses que amarrem características do gênero textual, da vida e da obra de Carolina, como “Por que será que, dentre os muitos gêneros literários, Carolina optou escrever um diário?”, “Que aspectos da vida de Carolina devem ser interessantes para compor um diário?”, “Será que Carolina incluía em seus escritos todos os fatos do seu cotidiano? Se não, como ela escolhia o que deveria aparecer no livro ou não?”

Leia, então, para a turma o trecho do dia 20 de julho de 1955, disponível no Portal Escrevendo o Futuro.

Ao longo da leitura, vale levantar questionamentos como: “Que aspectos do seu relato mais chamam a atenção?”, “Como é a relação de Carolina com seu entorno?”, “Quais elementos são valorizados por Carolina em seu dia a dia?”, “Que momentos são escolhidos para compor o diário?”, “Que função a escrita ocupa no cotidiano de Carolina?”, “De que maneira escrever sobre seu dia a dia no Canindé pôde impactar tanta(o)s leitora(e)s?”.

3ª Etapa: Leitura de trechos de obras inspiradas por Carolina Maria de Jesus (1 aula)

Objetivo:

  • Apresentar as produções que dialogam com a obra de Carolina, valorizando sua enorme influência sobre outras escritoras de diferentes épocas.

 

Atividades:

  1. Distribua os trechos dos diários de Carolina, Françoise Ega e Eduarda Rodrigues (Carolinas):

Entregue para a turma cópias impressas dos trechos de todas as obras ou projete-as na sala. Peça que leiam silenciosamente e busquem compreender do que se tratam os textos. A essa altura, eles(as) já conhecem Carolina, sabem da existência de Quarto de Despejo e compreenderam um pouco de sua trajetória. Pode ser interessante, nesse momento, que o trabalho seja desenvolvido em duplas. Nesse caso, uma das pessoas pode registrar no caderno as impressões acerca dos relatos, levantando hipóteses sobre o que há de comum e de diferente em cada texto. Provoque-os(as) a observar tanto os temas, quanto a linguagem e a estrutura textual. Espera-se que identifiquem o formato em comum, além dos relatos acerca da chuva e sobre os processos de escrita. Por outro lado, os registros estão temporalmente e espacialmente bastante distantes.

Você pode optar por, posteriormente, realizar uma leitura em voz alta dos trechos lidos pelas duplas, com o intuito de aprofundar a interpretação de cada um. A reflexão sobre os registros pode ser guiada por questões como:

  • "Carolina escreve em um só momento do dia ou em vários? Que indícios o texto nos dá sobre isso?”;
  • “A linguagem utilizada por Carolina é formal ou informal?”;
  • “Será que há intencionalidade no uso de construções mais rebuscadas como ‘bradar’ ou ‘agrada-me’?”;
  • “No último trecho do dia, Carolina afirma acontecer uma "reprise do espetáculo". O que ela quer dizer com isso?”;
  • “Que marcas textuais mostram o lugar que Françoise ocupa na sociedade francesa? Como isso impacta seu cotidiano?”;
  • “Qual é o papel de Carolina na obra de Françoise?”;
  • “A partir do diário de Eduarda, como podemos imaginar o espaço que ela habita?”;
  • “O que há em comum com relação à forma dos trechos?”;
  • “O que há em comum no que diz respeito ao tema dos trechos?”;
  • “Vocês conseguem imaginar porque a chuva foi um aspecto do dia selecionado para compor o diário das autoras?”;
  • “De que maneira o ato de escrever atravessa os relatos?”.

 

  2.    Apresente as obras e autoras de cada trecho

Explique as propostas que envolvem cada produção e como Carolina é o eixo delas.

Para embasar a conversa sobre Cartas a uma negra, consulte o material preparado pela editora Todavia. Ele contém materiais específicos para professores(as) e estudantes acerca da obra e da autora.

No site da editora Bazar do Tempo, responsável pela publicação de Carolinas, há um interessante trecho da escritora Conceição Evaristo sobre o projeto. Pode ser um bom ponto de partida para inspirar a apresentação da obra para a turma.

Comente sobre o contexto de produção dos textos e sobre a escolha do gênero textual para estabelecer o diálogo com a autora. Fale também sobre a importância de mulheres como Françoise e todas as envolvidas no projeto Carolinas terem referências literárias como Carolina Maria de Jesus, pontuando aspectos como identificação e alteridade enquanto fundamentais para a representatividade.

Nesse sentido, é fundamental estabelecer um debate sobre a presença de mulheres, sobretudo negras e indígenas, na literatura, abordando tanto a baixa divulgação de produções ao longo da história – a exemplo do fato de livros como Úrsula, de Maria Firmina, ou mesmo Quarto de Despejo, terem ficado por tanto tempo sem o devido destaque. É interessante articular o debate com aspectos sociais sobre o lugar da mulher na sociedade, instigando-os a refletir sobre suas próprias referências femininas: “Quem são as mulheres que estão presentes em seus cotidianos e que poderiam ter suas histórias divulgadas a partir da escrita literária de um diário?”.

4ª Etapa: Escrita coletiva de um diário da turma (1 aula)

Objetivo:

  • Propor a escrita coletiva de um diário sobre a experiência da turma com a obra de Carolina Maria de Jesus.

 

Atividades:

  1. Retome as características do diário vistas na primeira aula e proponha a escrita coletiva

Questione o grupo sobre os aspectos estruturais que compõem o gênero e suas características trabalhadas na AULA 1: estrutura, vocativo (com possibilidades de interlocução), linguagem, temática cotidiana.

Proponha, então, a escrita coletiva de um dia do diário, utilizando a 1ª pessoa do plural, de forma a refletir um registro da turma.

Essa primeira escrita pode ter como eixo a experiência com a obra de Carolina, tomando-a como interlocutora e apresentando, em nome da turma, as impressões que tiveram ao ter contato com sua vida e obra. Instigue também o olhar para os textos de Eduarda Rodrigues (Carolinas) e Françoise Éga, relembrando o diálogo traçado pelas autoras com a obra de Carolina Maria de Jesus.

A partir desse processo em grupo, será possível ressaltar os aspectos centrais da estrutura do gênero, além de selecionar, em uma negociação coletiva do grupo, os momentos da aula que devem ser registrados. Aguçar o olhar e a memória e identificar o que deve compor o texto é um momento crucial.

Retome aspectos banais da aula como alguém que pediu para ligar o ventilador ou uma pessoa que perguntou a data - será que esses momentos devem aparecer nesse diário coletivo? Por outro lado, existem também momentos que poderiam ser insignificantes mas que acabam ganhando destaque, por exemplo: a entrada de um funcionário que se interessou pela leitura do diário de Carolina, um(a) estudante que se prontificou para ler um trecho ou até mesmo as conversas paralelas.

Ao longo do processo, estimule o registro das sensações ao longo da leitura:

  • “O que causou tristeza? Alegria? Angústia?”;
  • “O que é importante dizer para Carolina depois de conhecê-la?”;
  • “Que aspectos da obra geraram identificação? E estranhamento?”.

 

Não se esqueça de ler com a turma o resultado final da escrita coletiva. É legal também fotografar o texto, para que possam acessá-lo em momentos futuros.

5ª Etapa: Escrita individual de um diário (1 aula)

Objetivo:

  • Propor a escrita individual de um diário ao longo de 7 dias, a fim de aproximá-los do processo de registro do cotidiano.

 

Atividades:

  1. Proponha a escrita individual

A escrita do diário é uma estratégia que pode contribuir com a identificação da turma enquanto autoras e autores. Sabemos que muitas vezes a criação literária parece algo distante e trabalhoso, por isso apresentar Carolina, Françoise e as mulheres do projeto Carolinas é uma maneira de aproximar estudantes da autoria literária a partir do registro cotidiano.

Para Delia Lerner (2002), “A elaboração de um diário pessoal pode configurar uma interessante proposta de produção textual permanente no cotidiano de jovens escritores. É um gênero privilegiado para que o aluno perceba a produção textual como uma forma interessante de organizar e reconfigurar, por meio da produção escrita ou do registro em áudio/áudio vídeo, suas próprias experiências.”.

Informe à turma que, ao longo da próxima semana, eles(as) vão se dedicar à escrita de um diário pessoal. Explique, desde o início, que embora seja um registro muitas vezes íntimo e secreto, essa escrita será compartilhada com você, docente. A ideia do registro ao longo de 7 dias é contemplar diferentes momentos da semana, incluindo o final de semana, quando a rotina deles(as) será diferente. Você pode sugerir que escolham, ao longo dos próximos dias, os momentos mais interessantes, resgatando que a ideia não é simplesmente registrar os fatos, mas suas impressões e sensações sobre eles.

Proponha algumas questões para guiar o processo, como:

  • “Que momento do dia superou as expectativas?”;
  • “Que fatos geraram indignação?”;
  • “Que situações foram inusitadas?”;
  • “Que sentimento prevaleceu ao longo do dia e por quê?”;
  • “Que momentos você gostaria de viver outra vez? E quais preferia que nem tivessem acontecido?”;
  • “Que pessoas marcaram cada momento do dia?”.

A depender do perfil da turma, sugira que iniciem a escrita em casa ou oriente sobre a atividade que será desenvolvida na próxima aula, em sala. A produção textual individual dos diários seguirá o modelo do trabalho feito coletivamente: seguindo a estrutura do gênero textual, cada estudante produzirá um diário pessoal, em primeira pessoa, levando em conta o seu cotidiano, podendo dialogar com os textos literários apresentados.

A escrita individual é uma oportunidade de desenvolver diferentes habilidades, considerando tanto o olhar subjetivo sobre si mesmo e seu dia a dia, quanto aspectos práticos do letramento.

Combine com a turma como será o acompanhamento do processo – você lerá diariamente alguns registros ou apenas ao final da semana? Como será a correção e que aspectos serão avaliados? É importante que, mais do que simplesmente dar uma nota para os trabalhos, você comente sobre os pontos que poderiam se aprofundar nos registros. Para fortalecer esse processo, a prática da reescrita é uma grande aliada.


Referências

CASTRO, Eliana de Moura; MACHADO, Marília Novais da Mata. Muito bem, Carolina! Biografia da Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: C/Arte, 2007. 136 p.

Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras/ organização Julio Ludemir. 1ª ed. Rio de Janeiro: Bazar do tempo: Flup, 2021.

CUNHA, Maria Teresa S. Do Baú ao Arquivo: Escritas de si, escritas do outro. Patrimônio e Memória (UNESP. Online), v. 3, p. 1-18, 2007.

EGA, Françoise. Cartas a uma negra: narrativa antilhana. Tradução: Vinícius Carneiro e Mathilde Moaty. São Paulo: Todavia. 1ª ed., 2021

FARIAS, Tom. Carolina Maria de Jesus, uma escritora presente: revisitando vida e obra da escritora. Disponível em: https://revistaperiferias.org/materia/carolina-maria-de-jesus-uma-escritora-presente/ último acesso em 15/04/2022.

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______________________ Diário de Bitita. 1ª ed. São Paulo: Editora SESI-SP, 2014.

LERNER, Délia. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Editora Penso, 2002.

PEREIRA, Maria. Helena. M. SILVA, Jocelma. B. O gênero diário pessoal: como se confecciona o íntimo. Revista Línguas & Letras – Unioeste – Vol. 16 – Nº 34 – 2015. Disponível em: http://erevista.unioeste.br/index.php/linguaseletras/article/view/11973/9212

Sobre as autoras

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Sobre a autora do artigo


Eduarda Ribeiro Rodrigues é graduada em História pela Universidade Nove de Julho. Atualmente, é graduanda do curso de Letras Português/ Francês pela Universidade de São Paulo.

Sobre a autora do plano de aula


Lara Rocha é coordenadora da rede municipal de São Paulo e mestranda em Letras do Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela Universidade de São Paulo (USP).

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