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sua prática / relatos de prática

Relatos de Prática Vencedor 2014 - Prof Otávio Henrique Rodrigues Meloni

08 de agosto de 2023

 

O exílio onde eu vivo

Otávio Henrique Rodrigues Meloni
Instituto Federal de Educação e Tecnologia do Rio de Janeiro
Volta Redonda / RJ

 

 

Todos nós, sem exceção, temos um modelo de casa. Materialmente, a casa pode ser de alvenaria, de madeira ou de pau a pique. Há casas mais simples, junção de tábuas, folhas de zinco, barracões de teto furado, por onde descem os fragmentos de luz em noites de lua cheia. Porém, sem importar o tamanho ou o estilo, estar em casa é sinônimo de segurança e de descanso. Talvez seja esse o espaço em que melhor nos expomos.

Ali somos únicos, reis e rainhas de um território pequeno, porém demasiado importante e necessário. Por isso, talvez, nosso conceito imaterial de casa está corriqueiramente aliado ao lugar onde nascemos. Sentimo-nos em casa, pois conhecemos as ruas, os prédios, os endereços comuns, e acenamos volta e meia para pessoas que, assim como nós, entendem aquele espaço geográfico como seu, ainda que timidamente.

É esse sentimento de “estar em casa” que envolve minha história ao longo desta edição da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro. Digo isso porque o tema “O lugar onde vivo” foi um grande desafio para mim, como professor. Moro há menos de dois anos em Volta Redonda e desenvolvi o trabalho das oficinas com jovens nascidos e criados na cidade.

Pode parecer bobagem, mas durante os primeiros encontros fui mais aluno de todos eles que mediador. Entendi que, antes de discutirmos o que era um artigo de opinião, precisava conhecer a cidade em que eu vivia havia pouco mais de dois anos. Esse foi apenas o primeiro dos aprendizados de nossos encontros.

Os alunos, percebendo que eu também estava naquele espaço como alguém que queria aprender, se envolveram e se esforçaram em me mostrar uma “cidade do aço” que eu ainda não conhecia. Assim, caminhamos desde a fundação da cidade, em função da instalação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), até suas grandes greves (como a de 1988) e os atuais problemas com o rio Paraíba do Sul.

Todo esse movimento inicial fez com que os alunos percebessem a relação estreita que eles possuem com sua cidade e não desconfiavam. Refletimos, assim, sobre a construção dos novos modelos sociais, mais voltados para perspectivas globalizantes, que buscam minimizar a identidade do homem com o espaço.

Discutimos transitoriedade, e foi a vez de expor um pouco de minha vida. Filho de um vendedor cuja principal função era criar novos mercados; por isso morei em diversas cidades do Estado do Rio de Janeiro. Falei de minha peregrinação escolar, que rendeu um histórico mais parecido com um passaporte de exilado político. Enfim, vivemos por semanas os conflitos que todo sujeito contemporâneo desenvolve com relação ao seu espaço.

Aos poucos, as discussões prévias sobre o lugar onde vivíamos cederam espaço às questões que tanto afligiam aqueles jovens, nascidos e criados em uma cidade de interior, mas bombardeados, todos os dias, por experiências de vida globalizadas, com línguas diferentes e estilos de vida distintos.

 

O segundo grande desafio dessa caminhada foi conduzir uma discussão tão complexa, que aproxima o local e o global para a realidade dos alunos e, principalmente, para os enfoques que eles queriam conferir ao tema principal. Após a utilização do material que recebemos e das diversas atividades de construção argumentativa, chegou a hora de me tornar um espectador de suas escritas. A cidade que conheci pelos relatos orais nos primeiros encontros aos poucos ia se desenhando em letras e sentidos que buscavam uma compreensão daquele espaço.

A CSN, primordial para compreender Volta Redonda, perpassava por todos os textos, mas por caminhos distintos: ora pela industrialização e pelos impactos no meio ambiente, na diversidade do povo, na formação do comportamento típico do volta-redondense e na perspectiva trabalhista da matriz municipal; ora pela presença constante da figura de Getúlio, o caráter político-estratégico e o período da ditadura militar. Conforme as pesquisas e a escrita dos alunos se adensavam, outras cidades emergiam da, para mim, pacata Volta Redonda.

O envolvimento de todos foi tão grande que, mesmo em meio a um período de greve do funcionalismo público federal, os alunos solicitaram que prosseguíssemos com nossos encontros. Frequentamos a escola vazia, com todas as salas de aula à nossa disposição. Os poucos servidores que iam para o campus estranhavam. Imaginavam que eu estava “furando” a greve, logo ali, na cidade da grande greve de 1988.

Na verdade, discutíamos a greve em meio ao movimento. A presença sindical e a força dos trabalhadores são uma constante na história de Volta Redonda; afinal, a cidade foi fundada por eles quando a siderúrgica começou a operar. Nossa greve de hoje era mais um motivo para repensar a cidade na escrita e na construção dos argumentos.

O período de um mês em que ficamos em greve precedeu a banca escolar. Na última semana, desejei sorte a todos e concluímos os encontros e oficinas com uma ótima dinâmica. O exercício tinha por base perceber como era o “local onde vivíamos” naquele momento, depois de todas as discussões. Iniciei confessando minha gratidão pela experiência e expliquei o porquê de as oficinas terem elevado tão rapidamente Volta Redonda aos lugares que fazem parte de mim.


Aos poucos, cada um, à sua maneira, apresentava sua relação com a cidade. Eles queriam, em suma, uma cidade menos conservadora, mais antenada com aquilo que eles veem e acompanham na internet e capaz de oferecer espaços de respeito ao jovem. Estavam diante de um paradoxo que desconheciam e agora pensavam como atenuar suas agruras socioculturais. Eles se transformaram. Eu também.

Enquanto esperava notícias sobre o futuro do texto selecionado na Olimpíada, ainda cabia uma reflexão pessoal a respeito do processo, como tudo aquilo ocorreu de forma tão natural e produtiva. Logo eu, desterritorializado por gosto do destino, sem amigos de infância ou marcas de crescimento no portal do quarto. Logo eu, agora ali, diante de uma cidade que passara a ser minha (ou eu dela) por meio das vozes daqueles alunos. Logo eu, que buscava corriqueiramente os lamentos de Drummond sobre sua Itabira e procurava algum retrato em minha parede, mas nada via. Logo eu... da pequena varanda de meu apartamento alugado, de pouco mais de cinquenta metros quadrados, observava o curso agitado do rio Paraíba do Sul e me lembrava de Manuel Bandeira dizendo que “todos os dias o aeroporto em frente lhe dava lições de como partir”. Meu aeroporto é um rio navegado pela vida.


Costumo dizer que o lugar onde vivo é uma gama de livros, pessoas e lembranças. Uma espécie de pátria de afetos que criei para suportar a transitoriedade de minha vida, e, hoje, essa pátria está debruçada sobre a grade da pequena varanda, a admirar o curso do rio, o barulho do trem a transportar minério de ferro (não o de Itabira) e a vida das pessoas simples, como eu, que já carregam esta cidade no peito. Não há nenhum retrato na parede, mas como dói!

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