Uma festa para os livros e para a leitura
formação leitora, literatura, feiras literárias, livros
Uma das mais intrigantes invenções humanas é o metrô. Não digo que seja intrigante para o homem comum, acostumado com os avanços tecnológicos. Penso no homem da floresta, acostumado com o silêncio da mata, com o canto dos pássaros ou com a paciência constante do rio que segue seu fluxo rumo ao mar. Penso nos povos da floresta.
Os índios sempre ficam encantados com a agilidade do grande tatu metálico. Lembro de mim mesmo quando cheguei a São Paulo. Ficava muito tempo atrás desse tatu, apenas para observar o caminho que ele fazia.
O tatu da floresta tem uma característica muito interessante: ele corre para sua toca quando se vê acuado pelos seus predadores. É uma forma de escapar ao ataque deles. Mas isso é o instinto de sobrevivência. Quem vive na floresta sabe, bem lá dentro de si, que não pode se permitir andar desatento, pois corre um sério perigo de não ter amanhã.
O tatu metálico da cidade não tem esse medo. É ele que faz o seu caminho, mostra a direção, rasga os trilhos como quem desbrava. É ele que segue levando pessoas para os seus destinos. Alguns sofrem com a sua chegada, outros sofrem com a sua partida.
Voltei a pensar no tatu da floresta, que desconhece o próprio destino mas sabe aonde quer chegar.
Pensei também no tempo de antigamente, quando o Tatuapé era um lugar de caça ao tatu. Índios caçadores entravam em sua mata apenas para saber onde estavam as pegadas do animal. Depois eles ficavam à espreita daquele parente, aguardando pacientemente sua manifestação. Nessa hora — quando o tatu saía da toca — eles o pegavam e faziam um suculento assado que iria alimentar os famintos caçadores .
Voltei a pensar no tatu da cidade , que não pode servir de alimento, mas é usado como transporte, para a maioria das pessoas poder encontrar o seu próprio alimento. Andando no metrô que seguia rumo ao Tatuapé, fiquei mirando os prédios que ele cortava como se fossem árvores gigantes de concreto. Naquele itinerário eu ia buscando algum resquício das antigas civilizações que habitaram aquele vale. Encontrei apenas urubus que sobrevoavam o trem que, por sua vez, cortava o coração da Mãe Terra como uma lâmina afiada. Vi pombos e pombas voando livremente entre as estações. Vi um gavião que voava indiferente por entre os prédios. Não vi nenhum tatu e isso me fez sentir saudades de um tempo em que a natureza imperava nesse pedaço de São Paulo habitado por índios Puris. Senti saudades de um ontem impossível de se tornar hoje novamente.
Pensando nisso deixei o trem me levar entre Itaquera e o Anhangabaú. Precisava levar minha alma ao princípio de tudo.
In: Crônicas de São Paulo: um olhar indígena. Callis Editora, 2ª edição, 2010, pp,15-17.
Daniel Munduruku é escritor e professor. Nascido em Belém, Pará, ele pertence ao povo indígena Munduruku. Formado em Filosofia, com doutorado em Educação (USP) e pós-doutorado em Linguística (UFSCar), ele já publicou mais de 50 livros, a maioria voltada para o público infantil e juvenil. Autor de títulos como Meu vô Apolinário, Coisas de índio e Vozes ancestrais, sua obra já foi reconhecida com o Prêmio Jabuti (2004 e 2017), Prêmio da Academia Brasileira de Letras (2010) e o Prêmio para a Promoção da Tolerância e da Não Violência, da Unesco, entre outros. Ativista da causa indígena, ele também participa de ações para promover a literatura e a cultura indígena no país.
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