Uma festa para os livros e para a leitura
literatura, livros, feiras literárias, formação leitora
... quem tem carretel não perde a linha,
No samba é preciso improvisar...
(Samba no quintal – Toninho / Everaldo Cruz)
Beth Carvalho
Ganhaúma espantou uma galinha de perto da porta. Porcariada danada. Bicho insolente, tapado. Estendeu a toalha de banho puída no varalzinho. Banho de asseio, que chuveiro de verdade, na vila não tinha. Cheiro bom de café na vizinhança. Alcançou o tanque, examinou a fachada no caco de espelho pendurado na parede limosa. Barbudo, meneou a cabeça, aborrecido. Chateava-lhe a ideia de andar mal-ajambrado.Ultimamente, nem o da navalha pingava. Enquanto vivia, a mãezinha nunca permitiu que ele se apresentasse surrado. Lavadeira das melhores. Esfregava com primor suas camisas, as brancas quaravam ao sol, eram enxaguadas no anil e tão bem passadas que podiam mesmo ficar em pé. Não havia mês em que não lhe fornecesse dinheiro para a visita ao barbeiro e sustentava-lhe bem o vício dos cigarros, adquirido ainda na adolescência, junto do amor pela jogatina. A senhora o tratava a pão de ló, amava-o exageradamente. Mãe solo, abandonada pelo falso amor que a iludira e desprezada pela família, depositara no menino toda a sua energia. Em criança, era tratado como um principezinho e, jovem, como um rei. Nenhum trabalho estava à altura de seu filho, parecia-lhe sempre que desejavam explorá-lo. Preparava refeições frescas e nutritivas para ele, esperava-o para o almoço e para o jantar, embora muitas vezes, ele varasse a noite pelos botequins ou adormecesse nos braços de alguma dama, chegando a desaparecer por dias. Então, a pobre velha que não conseguia conciliar o sono até que ele regressasse, cochilava sentada à cadeira de cordão, assustando-se com todo barulho noturno e suplicando a Deus para que guardasse seu precioso menino dos perigos do mundo. Ele contava com a proteção de um patuá benzido por uma rezadeira. Adoecera de um sarampão agressivo aos cinco anos de idade e por pouco não perdeu a visão. A mulher receitou sete sessões de reza forte, chá de sabugueiro e banhos de picão. Para os olhos, água de pétala de rosa branca serenada. Encomendou também um pingente de figa, cruz e trevo, pendurados num alfinete dourado de cabeça. Benzeu o talismã e orientou uso contínuo. A mãe fez tudo bem direito e jamais permitiu que o filho saísse sem o objeto protetor. Homem feito, ainda utilizava-o pregado à camisa. Até que, numa ocasião, andou sumido por uns tempos e voltou a casa sem o amuleto. A mãe entristeceu-se e o repreendeu. Adorava em demasia aquele filho que, do seu jeito torto, também a amava e jamais levou um namoro a sério, nem nunca pensou em se casar ou constituir família, pois não cogitava a possibilidade de deixá-la.
A boa mãe trabalhou até o dia de sua morte, quando de um mal súbito, caiu enquanto estendia roupas no quintal. Deixou o quarentão desamparado, a mercê da própria sorte, sem ofício, sem perspectiva, ganhando vez por outra algum no jogo, vivendo de filar aqui e ali. Ganhaúma manteve-se morando no quartinho graças à consideração que o senhorio tinha pela correta inquilina de tantos anos. O homem temia que ela não tivesse paz na eternidade, se de lá pudesse saber que o filho dormia ao relento. Ainda assim, pressionava o boa-vida para que arranjasse uma colocação e cumprisse com suas obrigações.
Ganhaúma trancou a porta do quartinho e desmanchou a trança feita nos fios da cortina espanta mosquito. Cortina de cabelos soltos, sinal de que, tão cedo não voltava. Poupava encontrar o senhorio rondando. O velho conhecia o código.
Pela rua, o estômago chiava. Mão no bolso, passo curto de quem não sabe ainda pra onde vai. Matutava. Um pulo no Miúdo, de repente. Visita cordial para a mãezinha doente do mano e, quem sabe, esticar até a hora do almoço. Qualquer angu salvava o dia.
Quebrou a esquina da Sete Quedas e esbarrou com uma pequena que vinha fumando um cigarro fino. Aspirou a fumaça que ela deixou para trás. Virou o pescoço tentando aproveitar mais um tanto. Por uma bamba, notou que a mocinha se livrou do careta ainda pela metade. Olhou de um lado e do outro. Tinha seu orgulho. Rua deserta. Voltou uns passos e apanhou o consolo, o filtro manchado de batom, com gosto de cereja. Só um milagre pra salvar o dia. Ouvira a mãe falar sempre em milagres, mas de perto, nunca vira.
A caminho do Miúdo, ganhou o movimento no começo da Embaré. Um corre-corre de moleque descalço. Férias escolares, julho. Logo completaria mais um inverno. Na esquina, um bote triste e vazio. Quisera ter um trocado para uma beiçada. FIADO, SÓ AMANHÃ, o cartaz era claro. Cruzou um camarada dos bons tempos, pensou em solicitar socorro, mas altivez não permitiu. Chegou à toca do maninho e notou tudo fechado. Bateu palma. Um cachorro manquitola se aproximou da cerca e latiu rouco, só pra cumprir obrigação. A vizinha alertou que não havia ninguém em casa.
— Dona Santinha foi ao médico. O carro da prefeitura veio buscar.
Burros n’água. A vizinha enxergou decepção nos olhos dele.
— Veio de longe, moço? Quer uma água? Um café?
Ficou sem jeito. Olhou melhor para a dona. Não recordava tê-la visto antes. Vizinho do Miúdo era Tião funileiro.
— O moço vai aceitar o café? Terminei de passar inda agorinha, querendo, se achegue. — Seu Tião voltou para Belém. Alugou a casa pra mim.
Pintadinha de amarelo, de fato, não parecia com a casa do Tião. Tinha placa de faço pé e mão pendurada na mureta.
Ir entrando assim, sem conhecer o território não é coisa de malandro velho. É botar a mão em cumbuca. Vizinha entendeu tudo.
— Tenha medo não, meu senhor. Sou viúva, não tenho filhos, nem medo da língua do povo. Ofereço gentileza a quem me der na veneta. E, de mais a mais, dona Santinha me recebeu na vizinhança com grande consideração e um amigo dela, não há de ser destratado por mim. Mantenho a porta aberta, qualquer coisa, grito!
Casa de cômodo. Cozinha ajeitada como há muito não via. Vaso de flor e toalha de renda. Ela tomou o bule e um copo do guarda-louça. Serviu o café e apanhou a lata de bolachas. Ganhaúma salivou, mas disfarçou a empolgação. Delatar que era esfomeado não podia.
— O senhor querendo, pode aguardar por aqui. Miúdo acompanhou dona Santinha, pela hora do almoço deve estar de volta.
Café dos bons, forte e doce na medida. Três bolachas pra não fazer feio. Repousou o olho no Plaza em cima da geladeira. Sensível, a dona da casa pôs o maço à disposição.
— O senhor fuma?
— Esqueci meus cigarros no bolso do casaco.
— Entendo. Pois se sirva de um. Não faço caso e lhe acompanho. E se vamos compartilhar um bom momento, é bom que nos apresentemos. Graça.
— Almir. Almir Ferreira.
Graça tomou uma banqueta e ofereceu a cadeira do quintalzinho à visita, mas Ganhaúma preferiu acocorar-se junto ao muro, de onde via a rua. Fumaram em silêncio e pelos últimos tragos engataram conversa.
— Não faço unha às segundas.
— Nem eu realizo entregas.
— O que é que o senhor entrega?
— O que me encomendarem.
Souberam coisas um do outro. Ele sacou a foto da mãe da carteira, ela mostrou retrato do falecido. Pelas onze horas, ela mexeu as panelas.
— Gosta de sardinha frita no fubá?
— Se gosto!
— Pois vou tacar uma dúzia delas no azeite. Estão no tempero desde ontem. Num instante boto o arroz no bafo e o feijão de coentro, refoguei pela manhã.
Ouviram barulho na rua. De certo, o carro trazendo dona Santinha. Fizeram que não escutaram.
Debaixo da pia, enfeitada com cortina de chitinha estampada, repousava a garrafa camarada.
— Senhor se agrada de um aperitivo estimulante de apetite?
— Não faço cerimônia, embora não careça. O perfume de sua boa comida já é o suficiente.
— Sirva duas doses.
— À sua vontade, dona Graça.
— Amigos me chamam Gracinha.
— Se me tomar por amigo, chegados me chamam Ganhaúma.
— Tomo sim. Sirva duas doses, Ganhaúma.
Viraram de vez a cachacinha amarela. No rádio, um samba de breque. À mesa, toalha alvejada, panela de arroz fumegando, o feijão vermelhinho. Deitadas na travessa, as sardinhas douradas se exibiam como moças expostas na areia da praia. Jilós e quiabos afogados num molho encorpado de tomate e cebola, fatias de pão dispostas para o deleite. Ganhaúma ficou zonzo. O estômago há muito sem trabalho manifestou-se, temeroso de não ser contemplado.
— Vai pimenta?
— Opa! E bem!
O homem deixou de vez os não me toques e devorou o banquete. Das sardinhas crocantes, mastigou cabeça, lombo e rabo. A travessa ficou deserta.
— Que tal a bóia?
— Minha mãezinha há de me perdoar lá no céu. A melhor que já experimentei.
— Palitos?
— Se não se importa.
— Um dedinho de doce de leite que eu mesma preparei?
— Ave Maria!
— Um golico de café pra trancar com ouro?
— Estou sem jeito...
— Não fique, apanhe outro cigarro.
Entre assuntos que surgiam, trocaram confissões:
— Nunca tive vontade de me casar, nem de ter filhos, mas hoje em dia, reconheço a falta que faz uma família.
— Não fui mãe porque não pude. Sonhava em ter uma menina, que tinha até nome planejado: Ia se chamar Vera Eunice, em homenagem a um livro que li.
— Perdi muito dinheiro no jogo e ando numa pior, sem ocupação que me favoreça.
— Uma partida de dominó camarada? Topa?
— Não dispenso desafio.
Quando se deram conta do avançado da hora, chegava a noite menina.
— Preciso ir Gracinha!
— Terminemos a partida. Ainda pensa em visitar dona Santinha?
— Oh, não! A pobre já deve estar recolhida.
Ganhaúma despediu-se ressabiado após a última rodada, vencido pela anfitriã.
— Olhe, já vou mesmo. Agradeço a acolhida e o dia muito proveitoso.
— Espero que volte, amigo!
— Não vejo a hora!
Rua afora, Ganhaúma caminhou pensativo, avaliando a surpresa que lhe visitara naquela segunda-feira, a princípio, desfavorecida. Então, milagre era aquilo. Uma graça concedida suavemente. Gracejo. Gracinha.
In: Perifobia. 1ª edição. Brasil: Editora Patuá, 2018.
Para ler a entrevista com Lilia Guerra clique aqui.
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