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Singularidade do cotidiano local em crônica

Singularidade do cotidiano local em crônica

texto - Ângela Francine Fuza; ilustração - Criss de Paulo

07 de agosto de 2023

Histórias de pertencimento

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Ângela Francine Fuza é doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e da Rede de Ancoragem da Olimpíada de Língua Portuguesa.

 

“[...] pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas.”

(Antonio Candido, 1984, p. 14)

 

O tema “O lugar onde vivo” é capaz de ser abordado de diferentes perspectivas, a potencializar saberes e identidades. É preciso olhares atentos de aluno e professor, no sentido de explorar a temática, à luz do gênero. Na crônica, a alimentação temática pode perpassar trajetos de um cotidiano banal, observado pelo autor de forma singular, por meio de uma “lupa” que se coloca em um assunto (Prata, 2015, p. 10).

Com as tentativas de delimitação do gênero, o aluno precisa apurar seu olhar para algum aspecto da realidade, para capturá-lo, a fim de recriar e transformar aquela situação pelo olhar literário. Para isso, é importante que busque se aproximar do leitor e apresente as situações com poesia, humor etc.

Apesar da existência de discussões teóricas1 sobre as especificidades da crônica, nos deparamos, na Comissão Estadual de 2019, com algumas problemáticas, que serão objetos de reflexão neste texto: por que os alunos ainda não singularizam um aspecto do cotidiano local? Por que os textos, em sua maioria, parecem mais descrições e/ou relatos do que crônicas?

Um olhar mais aguçado para o tema

Para que o aluno compreenda o processo de singularização de um aspecto da realidade, é importante tratar da distinção entre tema, assunto e título, partindo do geral ao mais específico. Muitas crônicas – assim como poemas, memórias, artigos de opinião e documentários – intitularam-se: “O lugar onde vivo”. É preciso compreender que o tema “indica aquilo do que trata o texto” (Solé, 1998, p. 135). O grande tema da Olimpíada de Língua Portuguesa é “O lugar onde vivo”, logo, com o aluno, o professor pode negociar qual aspecto singular da realidade mais ampla poderá se tornar assunto do texto. É, em função desse recorte, que o aluno escolherá o título que refletirá a cena focada. O título não pode ser concebido como reprodução do tema, como enfeite (Costa, 2000), mas como enunciado, produzido em função de condições concretas de escrita, por isso, que, nos descritores, há: “O título da crônica motiva a leitura?”.

Um segundo elemento, ao tratar do tema, é que esse critério não se apresenta apenas no descritor: “A crônica se reporta, de forma singular, a algum aspecto do cotidiano local?”. Há relação do tema com os outros descritores, pois todo gênero se constitui de aspectos discursivos e linguísticos. No quadro abaixo, alguns excertos foram destacados, em amarelo, quando apresentam informações sobre o tema (cotidiano local), para indicar o elo temático entre os descritores. Em verde, constam informações que caracterizam, especificamente, o gênero Crônica.

Praticamente, em todos os descritores, é mencionado: aspecto do cotidiano/realidade local; detalhe cotidiano/situação; fato narrado; algo que chamou a atenção; algo cotidiano e conhecido. Logo, quando o cronista retrata algo do cotidiano, é preciso também que se atente para elementos centrais do gênero: surpreendo o leitor com olhar peculiar sobre o cotidiano? Narro a situação de forma clara, para envolver o leitor?

A “lupa” do cronista: como singularizar o cotidiano local?

Na crônica “Bem falado ou mal falado, vai fazer falta”, lida durante a Comissão Estadual de 2019, o cronista tenta apurar o olhar, a fim de capturar instantes da realidade de sua cidade (em amarelo, no texto), no entanto, poderia ter empregado melhor sua “lupa”, para particularizar o aspecto local.

O aluno afirma: “Itacajá, uma cidade pacata do interior do Estado do Tocantins”, para demonstrar a grande ansiedade em expor o nome do local, como se isso já fosse responsável por particularizá-lo. Na realidade, é a lupa do cronista, em uma determinada direção, que singularizará uma situação.

O aluno situa o local e destaca o que lhe chama a atenção: velório e empatia. Mas o que singulariza esses elementos? Pessoas bem e mal faladas estão presentes em qualquer local, assim como empatia. Seria preciso delimitar melhor o assunto, isto é, lançar “uma luz” em determinada direção.

Quando o cronista diz: “Diferente de grandes centros urbanos, [tenda] significa o luto de uma família”, como leitores, sentimos o seu pertencimento àquele local. Ele poderia ter se prendido a essa especificidade e guiado o leitor para o singular, para o surpreendente daquele evento.

Além disso, falta um intimismo maior com o leitor, como se o cronista narrasse algo, não se restringindo ao registro de acontecimentos locais, a recair no relato. O cotidiano precisa ser reconstruído pelas marcas linguísticas de tempo (principalmente, o passado) e lugar (uma rua, uma casa etc.), falta, no texto lido, essa narração do acontecimento cotidiano.

Ainda que sob a forma de amostragem, a crônica, brevemente analisada, mostra-se como enunciado histórico e social, ao revelar a palavra do outro (Bakhtin, 2003[1979]) sobre o lugar onde vive, o seu olhar único, mas que, ao mesmo tempo, revela o olhar de outros tantos participantes daquele local. Que nossos alunos possam ressignificar situações, olhando-as com uma lupa, a focar o miúdo e mostrar nele uma singularidade (Candido, 1984), atuando, assim, como reescritores de suas realidades.

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1 - Textos disponíveis em <https://www.escrevendoofuturo.org.br/biblioteca> e em <https://www.escrevendoofuturo.org.br/blog/especial-cronica/>. Acesso em 01/10/2019.

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Referências

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. “Os gêneros do discurso”, in: Estética da criação verbal. Tradução do russo por Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003[1979].

CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés-do-chão”. Para gostar de ler: Crônicas. São Paulo: Ática, v. 5, 1984, pp. 13-22. Disponível em <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4706915/mod_resource/content/1/A_VIDA_AO_RES-DO-CHAO%20%281%29.pdf>. Acesso em 2/10/2019.

COSTA, Sérgio Roberto Costa. “A construção de ‘títulos’ em gêneros diversos: um processo discursivo polifônico e plurissêmico”, in: ROJO, Roxane. A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. Campinas: Mercado de Letras, 2000, pp. 67-90.

PRATA, Antonio. “Uma das graças de escrever é ver onde aquilo vai dar”. Entrevista concedida a Luiz Henrique Gurgel. In: Na ponta do Lápis, ano XI, nº 26, jul., 2015, pp. 6-11.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Artmed, 1998.

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