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Educação Escolar Indígena: Existir para resistir!

Educação Escolar Indígena: Existir para resistir!

texto - Zilma Rosana Acevedo Oliveira; ilustração - Aju Paraguassu

30 de agosto de 2023

Na Ponta do Lápis

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Quando falamos em Educação, primeiramente nos remetemos às normas e padrões sociais. Houaiss (2017) nos diz que Educação “é o ato ou processo de educar [...] Conhecimento e observação dos costumes da vida social; civilidade, delicadeza, polidez, cortesia”. Paralelo a esse conceito, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, 1996, Art. 1º) conceitua Educação como “processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”, ou seja, educação se faz em todo e qualquer espaço de convivência pessoal e social.

Educação Indígena é a ação que se faz no cotidiano da vida da comunidade de cada povo indígena, conforme sua organização social, seus modos e costumes de socialização e convivência diária, por meio do significado de ser e de pertencer ao seu povo, manifestando seu modo próprio de bem viver a partir de suas línguas, crenças, mitologias e conhecimentos ancestrais que são repassados a suas gerações em um processo natural e contínuo.

É importante formalizar a Educação Escolar para os Povos Indígenas, não nos padrões da educação e das escolas convencionais. A implementação da Educação Escolar Indígena advém com a promulgação da Constituição Federal de 1988, estabelecendo a legalidade para um ensino que atenda às necessidades dos Povos Indígenas. Em um primeiro momento sob supervisão e responsabilidade da FUNAI, e a partir de 1991, pelo Ministério da Educação, novas regulamentações passaram a ser constituídas, objetivando princípios e orientando as práticas pedagógicas indígenas, promovendo e construindo instrumentos legais para as propostas pedagógicas com suas identidades educativas, efetivando o ensino bilíngue/multilíngue, inter/multicultural, específico e diferenciado.

Instrumentalizadas, as escolas indígenas passam a ser denominadas “estabelecimentos de ensino, localizadas no interior das terras indígenas, voltado para o atendimento das necessidades escolares expressas pelas comunidades indígenas” (Parecer 14/99, 1999, p.10), sendo-lhes garantidos e assegurados usufruir de todos os direitos para a manutenção do ensino – merenda escolar, transporte, material didático apropriado, infraestrutura e formação de professoras(es) indígenas – devendo o Sistema de Ensino desenvolver programas integrados de ensino e pesquisa para ofertar a educação escolar bilíngue e intercultural aos Povos Indígenas, conforme resguarda o artigo 78 da LDB.

Em 2009, como resultado do diálogo entre o poder público – representado pelo Governo Federal, Estados e Municípios – e os Povos Indígenas e Sociedade Civil, fora promulgado o Decreto n.º 6.861, que versa sobre a Educação Escolar Indígena e define sua organização em territórios etnoeducacionais com a participação dos Povos Indígenas, observando sua territorialidade e especificidade.

Como exemplo de territorialidade e especificidade, trazemos a realidade do Território Etnoeducacional Rio Negro, no Amazonas, que abrange os três municípios ao curso do Rio Negro: Barcelos, Santa Isabel e São Gabriel da Cachoeira, cujas jurisprudências administrativas dos respectivos municípios devem legitimar a oferta da Educação Escolar Indígena, respeitados os níveis e modalidades de ensino das escolas indígenas, atendendo os princípios da educação intercultural, comunitária, específica e diferenciada, assim como a participação direta dos agentes envolvidos, estabelecendo e construindo coletivamente suas próprias pedagogias junto às comunidades indígenas.

Para atender a este anseio, os projetos políticos pedagógicos devem ser construídos de acordo com a real necessidade da escola e da comunidade, de modo que as ações pedagógicas devem compreender que, “sendo distintos os grupos humanos, suas necessidades básicas também o seriam, inclusive suas necessidades de aprendizagem” (SHIROMA, 2004, p. 58).

Deste modo, as escolas indígenas pertencentes ao Território Etnoeducacional Rio Negro nos fazem vislumbrar um avanço significativo. Especificamente no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), observamos um Sistema Municipal de Ensino alinhado às necessidades educativas das comunidades indígenas, apontando que os “percursos dos rios” estão sendo desbravados e os avanços a partir dos apontamentos são: Escolas Indígenas legalmente constituídas por meio de decretos municipais, totalizando 215 Escolas Indígenas e 37 salas de extensão, de acordo com o Censo Escolar de 2022, 04 (quatro) Línguas Indígenas co-oficializadas, Baniwa, Nheengatú, Tukano e Yanonami, por meio de lei municipal (Lei n.º 210, de 31 de outubro 2006), Cargo de Professor Indígena legalmente constituído por lei (Lei n.º 135, de 28 de fevereiro de 2020) e Formação de Professoras(es) Indígenas, por meio da oferta do Curso de Magistério Indígena, parceria entre o município e o Estado (SEMED e SEDUC).

CAMINHAR SOZINHO
NÃO É OPÇÃO. É PRECISO
ENVOLVIMENTO DA
COMUNIDADE, UMA
PARCERIA ENTRE
O MUNICÍPIO, O ESTADO
E A SOCIEDADE CIVIL,
ALÉM DAS(OS) PRINCIPAIS
ATRIZES(ATORES):
OS POVOS INDÍGENAS.

A partir desse contexto, compreendemos que o município se dispôs a organizar seu sistema de ensino. No entanto, seria possível efetivar as práticas pedagógicas da escola indígena diferenciada, comunitária, inter/multicultural, bi/multilingue por meio de uma educação intercultural?

Para responder a esse anseio, podemos dizer que sim, é possível fazer uma educação intercultural. É desafiador, mas é possível; como diz Garcia (2010, p.172), são necessários os “desafios de criar, experimentar, ousar caminhar por caminhos ainda não caminhados, a fazer incursões pelo ainda não conhecido”, ou seja, é necessário desenraizar conceitos e construir novas possibilidades “de” e “e” para construir novos conhecimentos.

Não é fácil, mas quem disse que fazer educação é fácil? Em São Gabriel da Cachoeira, ao longo dos anos, vem melhorando a oferta de vagas e a metodologia de ensino das Escolas Indígenas. Professoras e professores constroem coletivamente, junto com a comunidade indígena, os preceitos, os conteúdos e os direcionamentos do ensino.

Caminhar sozinho não é opção. É preciso envolvimento da comunidade, uma parceria entre o município, o Estado e a sociedade civil, além das(os) principais atrizes(atores): os Povos Indígenas. Com esse logro, surgiu a Matriz de referência para as Escolas Indígenas.

Na Matriz Curricular Intercultural para as Escolas Indígenas, regulamentada pela Resolução n.º 02 de 2014 do Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena do Estado do Amazonas, as disciplinas ofertadas abraçam os conhecimentos indígenas e os conhecimentos não indígenas, de modo que a(o) estudante tenha em sua formação tanto as práticas específicas e culturais como os conhecimentos universais da escola não indígena.

As Escolas Indígenas que ofertam a Educação Infantil e a primeira etapa do Ensino Fundamental vão oferecer às(aos) suas(seus) estudantes disciplinas equiparadas em carga horária tanto para o currículo não indígena quanto para o indígena. A mesma carga horária disponibilizada para a disciplina de Língua Portuguesa será disponibilizada para a Língua Indígena, sendo 4 horas para cada componente curricular, de modo que a(o) aluna(o) terá acesso aos conhecimentos da língua indígena, de uso de sua comunidade, como também à língua portuguesa.

Em algumas escolas, como é o caso das escolas Yanomami, a comunidade optou por primeiramente ser ofertado o ensino somente em língua indígena Yanomami. A língua portuguesa é ofertada somente a partir do 3º ano do Ensino Fundamental.

No currículo diferenciado, observa-se que nas áreas das Linguagens também são incorporados componentes como: Arte, Cultura e Mitologia, Práticas Corporais e Esportivas. A língua estrangeira é ministrada a partir do 6º ano do Ensino Fundamental, sendo a 3ª língua ofertada. Para as áreas de Matemática e Ciências da Natureza, são ministradas as disciplinas de Ciências e Saberes Indígenas e Matemática e Conhecimentos Tradicionais ou Etnomatemática. Para as áreas de Humanas, Geografia e História são ofertadas e a elas são acrescidos os Contextos Locais e a Historiografia Indígena.

FAZER ACONTECER A EDUCAÇÃO
ESCOLAR INDÍGENA É IR ALÉM
DOS PROCESSOS PEDAGÓGICOS
CONVENCIONAIS.

Cada família linguística tem sua especificidade e aqui nos referimos a quatro famílias distintas: Aruak (Baré, Werekena, Baniwa, Koripacos e Tarianos), Tukano Oriental (Tukano, Desana, Kubeo, Kotiria, Tuyuka, Pira-tapuya, Miriti-tapuya, Arapaso, Karapanã, Bará, Siriano, Makuna, Barasana (Panenoá)), Nadahupy (Hupda, Yuhupde, Dow, Nadöb) e Yanomami (Yanomami). Assim, cada escola é pensada dentro da sua particularidade, não somente nas questões pedagógicas, mas também nas questões administrativas – a seleção de professoras(es) deve retratar a representatividade linguística das escolas e o pertencimento comunitário, respeitados os princípios providos em lei para a Educação Escolar Indígena.

É complexo, mas não é impossível. Porém, para efetivar essa prática, é preciso “ousar”, desde a oferta da(o) professor(a) indígena, originária(o) preferencialmente da própria comunidade, falante da língua indígena, para que, deste modo, a criança efetive sua aprendizagem por meio de conhecimentos contextualizados com vivências e experiências locais e globais, ressignificando sua aprendizagem para as distintas sociedades.

Fazer acontecer a Educação Escolar Indígena é ir além dos processos pedagógicos convencionais. As Escolas Indígenas estão a serviço da comunidade e a comunidade, a serviço das escolas.

A escola Eeno Hiepole propõe no seu currículo, além dos componentes já apresentados, projetos curriculares voltados a Educação Financeira (empreendedorismo), onde as(os) alunas(os) aprendem a vender, comprar, trocar e negociar seus produtos com a participação efetiva da comunidade, incentivando e promovendo a sustentabilidade e proporcionando uma aprendizagem diferenciada do uso do capital monetário.

A escola EIBC Pamáali, em seu projeto pedagógico, propõe o ensinamento exploratório por meio da metodologia de ensino via pesquisa e o manuseio de técnicas voltadas para o desenvolvimento comunitário, alinhando as suas atividades pedagógicas ao plano de gestão territorial e ambiental. Embora nos últimos anos tenha tido dificuldade de executar suas atividades, a comunidade e a escola lutam para promover e retomar a validação de sua proposta pedagógica inicial.

A escola Tuyuka Uitapinapona, em seu projeto político pedagógico, versa por uma educação voltada para a sustentabilidade comunitária e participativa, sendo definidas práticas pedagógicas que validam sua autonomia na construção de pedagogias indígenas voltadas para o povo Tuyuka, que vão desde a metodologia do ensino até o manuseio de equipamentos e técnicas para a produção sustentável das comunidades. Para tal feito, parcerias entre instituições governamentais e não governamentais foram efetivadas, de modo a promover a ação mais eficiente junto às comunidades envolvidas.

Desse modo, observamos que estamos rompendo as barreiras das “mesmices”, do “tradicional”, do “sempre foi desse jeito”. Isso é necessário não somente para as Escolas Indígenas, mas também para as escolas não indígenas. É necessário atrever-se a promover um currículo diferenciado, desmistificar conceitos e preconceitos arraigados que valorizam um conhecimento uniforme, homogêneo. Em um país multiétnico, com várias sociedades, a promoção do diferenciado deve ser pauta de discussões para uma mudança significativa em toda a engrenagem da educação.

Passos importantes foram dados, no entanto, a jornada é longa e ainda há muito a ser percorrido, transformado e ressignificado. As Escolas Indígenas já são uma realidade e, sendo “instrumento conceitual de luta” (FERREIRA, 2001), provém garantir e legitimar suas pedagogias diferenciadas. Para isso, há de se validar o específico e o diferenciado sem segregação e exclusão, e com investimentos financeiros disponibilizados por meio das políticas públicas educacionais para sua inclusão e concretização, pois os Povos Indígenas ao promoverem e projetarem seus projetos de ensino visam compreender, atender e envolver não somente os seus conhecimentos culturais e linguísticos, mas também os conhecimentos da sociedade envolvente, para que as(os) suas(seus) alunas(os) possam transitar entre os dois contextos: o do indígena e o do não indígena.

As Escolas Indígenas, ao promoverem um modelo de ensino diferenciado, conseguem efetivar suas práticas pedagógicas junto aos sistemas de ensino? O planejamento e a autonomia dos povos são respeitados diante dos cenários burocráticos das secretarias de educação e sistemas educacionais? Diante da organização política, cultural e social da comunidade, como estão organizadas as Escolas Indígenas?

Mediante estas indagações problematizadoras, compreendemos que a Educação Escolar Indígena está, todavia, em processo organizacional, porém caminhando; muito já se percorreu, mas ainda há muito a ser percorrido. Precisamos melhorar? Sim, como em todos os campos educacionais da escola pública. A Escola indígena – pública, específica, diferenciada, inter/multicultural, bi/multilingue – existe e resiste!

 

Sobre a autora

Zilma Rosana Acevedo Oliveira, natural de São Gabriel da Cachoeira, é pedagoga da SEMED, atuando no município desde 2009. A partir de 2021, é responsável pela Assessoria de Educação Escolar Indígena. É mestranda do PPGEEI em Educação Escolar Indígena pela UEPA. Trabalha com políticas públicas voltadas para a Educação Escolar Indígena, acompanhando e assessorando cursos de formação de professores indígenas e discussão de currículos específicos e diferenciados nas escolas indígenas.


Referências

Amazonas. Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena do Estado Amazonas, Resolução Nº 02/2014 – CEEI-AM, aprovada em 28.08.2014.

Brasil. [Constituição (1988)] Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações determinadas pelas Emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 91/2016 e pelo Decreto Legislativo no 186/2008. – Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2016.

BRASIL. Referencial Curricular Nacional para a Educação Indígena – RCNEI. Brasília: MEC/SEF. 1998. 339p.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases-LDB: que estabelece as diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília. Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais Da Educação Escolar Indígena. Parecer Nº 14/99, aprovado em 14.09.99. Parecer 14/99. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/leis2.pdf.

GARCIA, Regina Leite. Um currículo monocultural numa escola pluricultural – impasses de uma escola que pretende emancipatória. In: SANTOS, Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos et al. (Org). Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. 734p. 

FERREIRA, Mariana Kawall Leal. A educação escolar indígena: um diagnóstico crítico da situação no Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes; FERREIRA, Mariana Kawall Leal (Orgs). Antropologia, história e educação: a questão indígena e a escola. 2ª Ed. São Paulo: Global, 2001.

SHIROMA, Eneida Oto. Política Educacional. 3ª Ed. Rio de Janeiro: DPA, 2004.

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