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Lê, para se encontrar no mundo: A LITERATURA INDÍGENA NA SALA DE AULA

Lê, para se encontrar no mundo: A LITERATURA INDÍGENA NA SALA DE AULA

texto - Jeane Almeida da Silva; ilustração - Aju Paraguassu

30 de agosto de 2023

Na Ponta do Lápis

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Vou começar um pouquinho lá atrás. Porque busco dar às(aos) minhas(meus) alunas(os) algo que não tive ou tive pouco em minha formação estudantil. Nasci e cresci em Boa Vista, capital do estado de Roraima. É assim que começam muitas histórias de nós, indígenas; saímos de nossas comunidades em busca de saúde ou estudo na cidade. Toda minha formação foi em escola pública, tive muitas professoras e muitos professores muito boas(bons), outras(os) nem tanto, e muito da minha vontade de continuar a estudar, após a conclusão do ensino médio, foi pelo exemplo daquelas(es) boas(bons) professoras(es). Apesar de gostar muito de ler, sinto que hoje, como professora, estou tirando muitas das minhas dúvidas, e vejo que isso acontece com diversas(os) colegas. Muita gente tem medo de ensinar Língua Portuguesa, justamente por ter tido dificuldades no ensino/aprendizado nos tempos escolares. Pode parecer mesmo um bicho de sete cabeças, mas eu gosto desse desafio.

Estou na docência há pouco mais de uma década, atuando no município de Normandia, na região da Raposa, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. No início, como professora seletivada, não tinha escola nem disciplina fixas. Mesmo tendo graduação em Licenciatura Intercultural com habilitação em Comunicação e Artes pela Universidade Federal de Roraima, eu não podia escolher, ia para onde a necessidade chamava. Essa é a realidade de muitas(os) professoras(es) seletivadas(os). Em agosto de 2022, finalmente fui efetivada como professora de Língua Portuguesa, depois de décadas de lutas pelo Movimento Indígena, em que conquistamos um concurso específico para professoras(es) indígenas no estado de Roraima.

Por que literatura?

Falei outro dia em sala de aula que, quando li na escola O Cortiço, de Aluísio Azevedo, eu odiei. Não tinha maturidade leitora. Não sabia qual era o contexto, por que o escritor escreveu aquilo, como foi organizando as personagens. Isso a gente tem que aprender e procurar instigar as(os) alunas(os) a buscar sempre algo mais no texto, aprender a ler nas entrelinhas. Também lhes contei que, quando li A cartomante, de Machado de Assis, tive uma mistura de sentimentos: angústia, solidariedade, raiva, incredulidade sobre as ações da cartomante! Digo às(aos) alunas(os) que esse é o grande segredo: se identificar com o livro, se revoltar, se apaixonar, entristecer, chorar, rir. Esse é o poder que o livro tem, o livro abre portas e janelas para mundos possíveis. Procuro provocar isso nelas(es). E falo: “olha, para que você fale bem, você tem que ler; para você escrever bem, tem que ler”, porque faltam as palavras para expressar as ideias. Tive um professor que sempre dizia que “as palavras são como roupas, quanto mais você amplia seu vocabulário, mais seu guarda-roupas se diversifica”. E conseguimos isso por meio da leitura.

Por que Literatura Indígena?

Segundo o professor Fábio Almeida de Carvalho (2021, p.144), “a literatura indígena é um fenômeno novo no cenário cultural brasileiro [...] intelectual e pedagógico, bem como na condição de promissor filão editorial, a literatura indígena também já começa a despontar como assunto que circula no âmbito da opinião pública” . É comum vermos as(os) escritoras(es) indígenas usando como sobrenome o nome de sua etnia como marca do pertencimento étnico, e isso, para mim, é legal, pois coloca em evidência os grupos étnicos existentes Brasil afora e mostra a nossa pluralidade. Daniel Munduruku (2018, p.81) afirma que, apesar da escrita estar apenas recentemente entre as populações indígenas, é a memória a grande guardiã do conhecimento do ser, “a memória é, ao mesmo tempo, passado e presente, que se encontram para atualizar os repertórios e possibilitar novos sentidos [...]” . É preciso escrever as memórias das pessoas mais velhas e apresentá-las às pessoas mais novas utilizando as novas tecnologias para um público antenado nas novas mídias.

Cadê as nossas narrativas?

Eu conheci a Literatura Indígena na universidade de forma materializada; não tive contato antes, não lia. Ouvia muito falar de Makunaima1, um personagem forte em algumas etnias, principalmente da região conhecida como circum-Roraima, lugar da tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana. Desde que comecei a lecionar, em 2012, tinha essa pergunta “Quem é Makunaima?” Já ouvia sobre ele, sobre o Kanaimé ou rabudo, a Mãe D´Água, a Mãe do Campo, e pensava “Cadê as nossas narrativas? Por que a gente não as lê, apesar de a Lei 11.645/2008 tornar obrigatório o estudo da cultura indígena nas escolas?”. Fui começando a encontrar alguns textos, muitos do professor Devair Fiorotti, que traziam o que é mítico da nossa cultura. Textos teóricos que me ajudaram a ter outro olhar sobre as narrativas indígenas, não apenas como contos infantis, mas como narrativas que apresentam uma cosmovisão de suas populações.

Isso foi me despertando para trabalhar com as narrativas indígenas, mas uma das minhas preocupações era como inseri-las nas aulas. Sei que as(os) estudantes falavam nisso longe dali, contando como se fossem causos quando iam pescar ou fazer roça. Existe ainda um empecilho para que essas histórias estejam na escola e nós, professoras e professores, ainda temos muito a fazer. Falta oportunizar, criar atividades de leitura para que essas narrativas também cheguem até as(os) alunas(os) pela escola. E quanto mais as comunidades indígenas estão próximas de algum centro urbano, mais difícil fica, por conta da influência da televisão, do celular, dos joguinhos e do desinteresse pelas histórias das pessoas mais velhas.

Além dessa questão, há uma sobrecarga de trabalho nas(os) professoras(es), que muitas vezes têm várias turmas e diferentes disciplinas. Fica complicado atuar como professora (professor) pesquisadora(pesquisador) e propor algo diferente nesse contexto. Outro ponto que também merece atenção é que muitas(os) educadoras(es) ainda consideram que a Literatura Indígena é mais voltada ao Ensino Infantil. É importante desmistificar isso e entender que essa narrativa de fundo etiológico, que conta o início do mundo, como surgiram os povos, como o dia se separa da noite, não é só historinha para criança, mas é a forma que esses grupos étnicos tinham para explicar o miraculoso. Antes de os portugueses chegarem, essas histórias estavam fazendo parte da formação daqueles povos. É preciso partilhar isso e fazer com que nossas(os) alunas(os) indígenas se percebam nessas narrativas.


DICAS PARA A SELEÇÃO DE LIVROS


 1. Escolha obras de escritoras e escritores de diferentes etnias, principalmente do próprio estado ou região em que as alunas e alunos moram;

 2. Apresente as etnias das escritoras e escritores e a forma correta de se pronunciar;

 3. Conheça a biografia das autoras e autores para apresentá-la(lo);

 4. Faça uma leitura prévia das obras e elabore questões norteadoras para registrarem no caderno, ajudando na compreensão do texto (nome da(do) autora(autor) e da obra; do que trata; breve resumo; o que mais chamou a atenção no texto; se fosse a(o) autora(autor), escreveria algo diferente?, etc).

Projeto Jamaxin Cultural

Em 2021, participei de um curso de extensão pelo Núcleo de Ensino a Distância (NEad) da Universidade Federal de Roraima, intitulado Literaturas indígenas: oralidades, línguas e escrita. Conheci um pouco mais sobre textos e sobre autoras e autores indígenas. A partir da interação com as(os) professoras(es) do curso, nasceu o projeto Jamaxim2 Cultural, com o objetivo de levar obras de escritoras e escritores indígenas às escolas indígenas de Roraima. Esse momento foi muito importante. Eu já tinha vontade de trabalhar com isso, mas para colocar em prática, precisava ter livros. Comecei a fazer um acervo próprio de autoras(es) indígenas, tanto locais quanto de outras regiões do Brasil. Juntei os 12 livros que recebi do projeto com outros que sigo adquirindo. Meu objetivo é montar um acervo maior voltado para a Literatura Indígena Brasileira, principalmente a Literatura Indígena de Roraima.

Apresentação do projeto às(aos) alunas(os)

Ao retornar à escola após a pandemia, apresentei o projeto a duas turmas do 9º ano do Ensino Fundamental, com um total de 39 alunos, da Escola Estadual Indígena Índio Marajó, na Comunidade Indígena Guariba, localizada na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Normandia (RR). Quando perguntei sobre suas experiências com as narrativas indígenas, se sabiam de alguma história, como a dos encantados3 ou a dos kanaimé4, ficaram caladas(os), tímidas(os). Mas à medida que fomos distribuindo os livros e falando a respeito, as(os) alunas(os) foram se soltando. “Professora, meu tio contou uma história mais ou menos como essa”, disse um aluno. Alguns até me corrigiam ou apresentavam outra versão das narrativas.

Cantinho da leitura e caderno de notas

Fiz um banner de forma artesanal identificando nosso “cantinho da leitura” para compartilhar as experiências literárias. Cada aluna(o) recebeu um pequeno caderno que ela(e) mesma(o) ornamentava e imprimia sua marca. Na minha época de estudante, eu encapava meus cadernos – essa é uma memória afetiva tão grande para mim que sempre que possível faço isso com as(os) alunas(os). Quando reencontro algumas alunas e alunos, elas(es) me dizem que guardam esses cadernos até hoje. Eu me emociono porque é uma parte de mim que ficou nelas(es), ficou uma sementinha de uma leitora, de um leitor.

Neste caderno, as(os) estudantes colocaram observações sobre a leitura, criaram seu próprio glossário e responderam a questões norteadoras que os guiavam nas leituras. Em algumas aulas, nós fazíamos uma grande roda para ouvir as(os) colegas e o texto escolhido por elas(es). No final do ano, as(os) alunas(os) ainda usaram o caderno para deixar mensagens umas(uns) às(aos) outras(os). Esta atividade foi muito significativa, pois foi uma forma de incentivá-las(os) a se expressarem por meio da escrita, seja por pequenas mensagens ou poemas.


MONTANDO O ACERVO


Entre as obras adquiridas pelo Jamaxim Cultural e as particulares, destaco:


RORAIMA


CRISTINO WAPICHANA
A oncinha Lili
Sapatos trocados
A cor do dinheiro da vovó
Chuva, gente

DEVAIR FIOROTTI E BERNALDINA RAMOS
Cantos e encantos: Meriná Eremukon

DEVAIR FIOROTTI E TERÊNCIO
Panton Pia’: Eremukon do circum-Roraima

KAMUU DAN WAPICHANA
O sopro da vida
Makunaimã taanii – presente de Makunaima
Ivo Sólon Wapichana
O homem velho e a Lua
A origem do Kanaimé
A cobra grande

SONY FERSEK
As mulheres que fazem Wei
Movejo

TRUDRUÁ/JULIE DORRICO
Eu sou macuxi e outras histórias


OUTRAS LOCALIDADES


AILTON KRENAK - Itabirinha, MG
Ideias para adiar o fim do mundo

AURITA TABAJARA - Ipueiras, CE
Pés no mundo coração na aldeia

DANIEL MUNDURUKU - Belém, PA
Meu vô Apolinário – um mergulho no rio da (minha) memória
Crônicas para os jovens

ELIANE POTIGUARA - Rio de Janeiro, RJ
Metade cara, metade máscara

ELLEN LIMA - Cocal, AL
Ixé ygara voltando pra ‘y’kûá

GRAÇA GRAÚNA - São José do Rio Campestre, RN
A flor da mata
Fios do tempo – quase haicais

MÁRCIA WAYANA KAMBEBA - Belém do Solimões, AM
O saber ancestral

Títulos que foram sucesso

O livro mais disputado foi o cordel de Ivo5 Sólon Wapichana, A Origem do Kanaimé. Primeiro por conta da curiosidade em torno do próprio Kanaimé, temido por muitas pessoas que, em certos períodos do ano, evitam andar sozinhas, principalmente à noite, com medo de seus ataques. Algumas pessoas dizem que o Kanaimé surgiu entre os Ingaricós, outros entre os Patamonas, e ainda que foram trazidos pelos parentes6 do país vizinho, República Cooperativista da Guiana. Outro ponto que atraiu as(os) alunas(os) foi o ritmo, as rimas, tudo era novidade. A maioria não fazia ideia de como ler um cordel; passei alguns vídeos e isso lhes ajudou a ler o cordel, algumas(alguns) alunas(os) até queriam ler mais cordéis. Outro livro muito comentado pelas(os) estudantes foi o Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória, de Daniel Munduruku. No início, elas(eles) riram do sobrenome do escritor. Expliquei sobre a etnia dele, fiz uma comparação com as etnias locais e perguntei se gostariam que rissem da nossa etnia, e a resposta, é claro, foi não. No livro, as(os) alunas(os) puderam perceber situações que vivenciaram em algum momento da sua vida. Preconceitos arraigados na memória social, como o de a(o) indígena ser preguiçosa(o), suja(o) e até mesmo falar errado, a menina que Daniel gostou e a forma preconceituosa que ele sofreu nos períodos de escola, todas essas experiências relatadas por Daniel fizeram as(os) alunas(os) perceberem a própria história. As(Os) estudantes gostaram também dos poemas, como os de Márcia Wayana Kambeba, Graça Graúna e Sony Ferseck.

Meu lugar no mundo

Ao lerem as obras, principalmente as(os) escritoras(es) indígenas locais, muitas(os) alunas(os) puderam se reconhecer nas histórias e reconhecer a fala de suas(seus) parentes. Para elas(es), ver a obra de alguém de Roraima impressa era algo quase inacreditável. Isso as(os) encantou, pois muitas(os) ainda traziam o estigma de que a(o) indígena não é boa(bom) com as “palavras”, não teria a formação necessária para se destacar. As leituras do projeto Jamaxim Cultural ajudaram a elevar a auto-estima das(os) alunas(os) indígenas, pois elas(es) descobriram que, com um livro na mão, podem experimentar infinitas coisas e não precisam sair de suas comunidades para enxergar novos horizontes. É muito gratificante perceber que as(os) alunas(os) estão cada vez mais abertas(os) à Literatura Indígena.

 


1. Makunaima é a forma usual de se pronunciar pelos roraimenses de modo geral e entre as etnias de Roraima há uma forma própria de se escrever e pronunciar. Makunaimî, na língua Makuxi; Makunaimö, na língua Taurepang e Makunaimã, na língua Wapichana.

2. Jamaxim: cestos cargueiros que dispõem de duas alças para carregar às costas, tipo mochila.

3. Encantados é a forma de chamar pessoas falecidas que tomaram outra forma, ou ainda pessoas que desapareceram na mata ou rio; dizem que foram morar em outro lugar não visível.

4. Kanaimé ou rabudo é uma pessoa que ficou tão mau a ponto de matar outro parente por meio de magia. Dizem que o kanaimé/rabudo pode se transformar em outros animais, como porco do mato, morcego, tamanduá, etc. A grafia kanaimé ou canaimé pode ter variações dependendo da região e etnia.

5. Ivônio assina muitos de seus cordéis como Ivo Sólon Wapichana.

6. Parente não se refere apenas a parente consanguíneo, mas também a outro indígena da mesma etnia.

 

Sobre a autora

Jeane Almeida da Silva é professora indígena da etnia Makuxi, atua como professora desde 2012 nas escolas indígenas do estado de Roraima. É graduada em Licenciatura Intercultural – com habilitação em Comunicação e Artes. Possui especialização em Língua Portuguesa e Literatura, é mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), pesquisando sobre o herói mítico Makunaima sob a ótica dos escritores indígenas do circum-Roraima.


Referências

CARVALHO, Fábio Almeida de. Descentralização da vida literária: teoria, crítica e autoria em tempos de diversidade. Rio de Janeiro, RJ: Edições Makunaima: Boa Vista, RR: EdUFRR, 2021.

MUNDURUKU, Daniel. Escrita indígena: registro, oralidade e literatura o reencontro da memória. In: DORRISCO, Julie; DANNER, Leno Francisco; CORREIA, Heloísa Siqueira; DANNER, Fernando. (Orgs). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018.

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