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Um tronco para chamar de nosso

Um tronco para chamar de nosso

texto - Trudruá Dorrico; ilustração - Aju Paraguassu

30 de agosto de 2023

Na Ponta do Lápis

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Tenho o costume de pedir licença para entrar na cachoeira, no mar, no mato, em todo lugar de floresta e encantamento. Assim, repito o gesto ao entrar nesse território da literatura, para quem sabe semear algumas ideias que compartilhamos em nosso mundo indígena do Circum-Roraima.

Nesse ritual de iniciação me apresento. Sou Trudruá Dorrico, este é meu verdadeiro nome. Eu tenho outro nome que está no Registro Civil e outros documentos, mas ele é somente um apelido. Nasci em 1990, como conta o calendário gregoriano, que é diferente da noção de tempo de existência do povo Makuxi. Como eu me considero continuidade dos meus antepassados, isso significa que tenho mais que 1,7 ou 2 bilhões de anos, ou mais. Sim, sou uma palavra antiga. Todos nós indígenas somos palavra antiga.

O povo Makuxi localiza-se no Brasil, Guiana e Venezuela. Essa região fronteiriça, cujos limites foram criados posteriormente à nossa presença e ocupação, é chamada de Circum-Roraima. Além do meu povo, habitam no mesmo território o povo Wapichana, Taurepang, Ingaricó e Patamona, além de outros que habitam na capital, Boa Vista, e nas outras partes do estado de Roraima. A língua do povo Makuxi chama-se Makuusi Maimu. Para nós, Makunaimã é um deus, um avô, o qual é responsável por configurar o mundo como o conhecemos hoje. Por conta da influência do cristianismo católico e evangélico presentes em nosso território, o avô foi por muitas vezes demonizado. Considerando isso, celebra-se Anikê e Insikiran, que fazem parte do panteão divino de nosso povo. Este último é mais citado e aceito amplamente. Para citar como exemplo, a Universidade Federal de Roraima criou, em 2001, o Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena. Como podemos notar, o nome de nosso avô Insikiran está presente, mas não Makunaimã.

As(Os) escritoras(es) que atuam na literatura são Jaider Esbell e Ely Macuxi, que encantaram; Celino Raposo, Joselita Raposo, que venceram recentemente o Concurso Tamoios de Novos Escritores Indígenas (FNLIJ/UK’A); Sony Ferseck, que além de poeta é editora; e eu, que sou escritora, artista e pesquisadora de literatura indígena no Brasil e em Abya Yala. Há outras(os) escritoras(es) em formação para acessar esta configuração do mercado editorial que é mais uma das facetas de nossa manifestação criativa. No final do ano de 2021, realizei esta curadoria virtual de Literatura Indígena para o Museu do Índio, que pode ser acessada aqui: https://www.musindioufu.org/mostraliteratura.

Os escritores Wapichana que conheço são Kamu Dann, autor da obra que vou analisar nesse ensaio; Ian Wapichana, que é poeta e músico; Cristino Wapichana, cuja jornada literária confunde-se com o próprio movimento literário indígena; e Gustavo Caboco, que é artista visual e escritor.

Descrevo esse cenário artístico-literário para anunciar que compartilhamos, o povo Makuxi e Wapichana, território, cosmologia e luta, ainda que sejamos povos diversos entre nós, como mostra a diferença de nossos troncos linguísticos karib e aruak.

A literatura indígena do Circum-Roraima reivindica muitas coisas: o reconhecimento da autoria indígena; a reapropriação política de Makunaimã apropriado pela literatura brasileira; e as nossas matrizes como referência para nosso sistema literário. E é isso que vemos na obra de Kamuu Dan.

Presente de Makunaimã

A obra Makunaimã taani – Presente de Makunaimã foi publicada no ano de 2020, pela AUA Editorial, de Brasília. A narrativa de caráter bilíngue foi traduzida pela parenta Nilzimara de Souza Silva, que também é wapichana.

O autor Kamuu Dan Wapichana (Filho do Sol) é artista, político, escritor, mas um dia eu conto mais dessas outras facetas múltiplas que ele desenvolve. Por sua biografia sabemos que nasceu na capital de Boa Vista (RR). Em 2015, participou do Concurso Tamoio para escritores indígenas da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) com o conto A Árvore dos Sonhos, sendo premiado em 2º lugar; e com O Sopro da Vida, premiado em 1º lugar em 2017. Em 2019, o conto O sopro da vida foi publicado pela Editora Expressão Popular.

Um outro tempo

Há pouco tempo não podíamos reivindicar a autoria de nossa cultura-nação como fundamento para nossa expressão literária, pois isso implicava diretamente na negação dela. Esse direito veio com a Constituição Federal, nos artigos 210, 231 e 232, que reconheceram o direito à educação diferenciada, à língua, ao território e à autonomia civil brasileira e indígena.

Por conta da política da integração, que perdurou de 1910 até 1988, a premissa de que arte, literatura e autor não existiam em nossas culturas, tal como no modo ocidental, tornou-se uma barreira para que nós pudéssemos acessar o mercado editorial e cultural brasileiro. A limitação e a implicação racista que isso projetava sobre nossas atuações ignorava, e ainda ignora, o atravessamento de todas as matrizes coloniais de poder, da qual disserta Walter Mignolo (2015) sobre nossas vidas. Isto é, o regime colonial-moderno-ocidental-Estado-nação-língua-portuguesa-geopolítica-territorial afeta diretamente nossa sociedade macuxi e dos povos indígenas do Circum-Roraima, e ainda a religião, linguagem, política, economia, cultura e sociedade de um modo geral.

Nesse sentido, a nossa ausência na literatura brasileira foi e ainda é uma condescendência racial para que nossos conhecimentos filosóficos, cosmológicos fossem apropriados pela identidade brasileira que se expressa na literatura nacional brasileira.

Quando o parente Kamuu Dan publica a obra Makunaimã taani – Presente de Makunaimã sem invocar nossas conhecidas histórias no lavrado, ele afirma nossas certezas referenciais, radicadas no umbigo de nosso mundo que deram origem às nossas existências enquanto povos Macuxi e Wapichana: Makunaimã vive.

Um tronco antigo para chamar de nosso

Presente de Makunaimã não traz as aventuras makunaímikas de nossos avós, mas alude e reitera a dimensão cosmológica, espiritual e sagrada de nosso a’moko (avô em macuxi) Makunaimã.

A narrativa em terceira pessoa anuncia que o maziki, milho em língua wapichana, foi um presente de Makunaimã. Esse anúncio demarca o espaço de espiritualidade e nação, que também é diferenciada pela tradução bilíngue.

O oposto de iribienau (parente, em wapichana) é karaiwenau. Em uma tradução literal, seria não Wapichana. Porém, a colonização, em suas urdiduras, configurou outra relação para esta diferenciação. Assim, para o povo Wapichana, o nome karaiwenau significa homem branco, na dimensão identitária e na mentalidade que o Estado-nação Brasil forja ao longo de cinco séculos.

O narrador conta que os karaiwenau entraram nas aldeias com um outro tipo de milho. Esta apresentação da monocultura revela como a própria organização social indígena é afetada pela forma dominante e unívoca de se relacionar com o alimento, com o milho karaíwe, pois o pajé se afasta da comunidade e se recusa a abandonar as sementes sagradas.

O enredo trata de um tema ainda não trabalhado na literatura indígena: o agrotóxico. A partir do enredo entendemos porque o agrotóxico e a monocultura são tão tóxicos para as culturas indígenas. No trecho a seguir lemos:

“Descontente com os karaiwenau, o Tuxaua chamou vários pajés para saber o que estava acontecendo com os milhos. Naquela noite, os pajés fizeram um ritual, bateram folha e chamaram os espíritos do milho para saber qual era a sua doença. Mas o espírito não veio!

Os pajés descobriram que aquele milho karaiwenau não tinha espírito! Desiludidos, eles não sabiam o que fazer” (DAN, 2020, s/p).

A substituição de sementes nativas por sementes transgênicas que dependem de agrotóxicos para serem semeadas revela que a monocultura do plantio fere a própria terra e o princípio da coexistência plural que a floresta nos ensina desde sempre. A diversidade de sementes não drena e não contamina o solo, pelo contrário, mantém, com as técnicas ancestrais, sua força.

A narrativa também compartilha outro princípio indígena: todos os alimentos têm espírito. Quando os iribienau apelam ao ritual de bater folha, eles querem saber por que está doente, como curar o espírito. Esse é um dos principais rituais dos povos do Circum-Roraima, bater folha. Quando a(o)pajé (piasan/ piasan’pa) bate folha, ela(e) invoca os antigos vovôs do primeiro tempo, os que sabiam curar, os que mesmo depois do mundo ficar do jeito que conhecemos resolveram ficar plantas para continuar nos cuidando e protegendo. Por isso as plantas são tão importantes para nós.

Já ouvi muitas vezes da minha mãe, minha avó, dos meus parentes acerca do sonho. O sonho enquanto instituição e orientador de nossas vidas. Um dia estava almoçando com Davi Kopenawa, a ko’ko Vanda, a parenta Márcia Mura e o sobrinho do Davi, o Enio. Fazia um tempo que não comia alecrim, por algum trauma, algum dia adoeci e fui tomar uma sopa com alecrim que não caiu bem. Desde esse dia não consegui mais comer alecrim, na carne ou em qualquer lugar. O Davi olhou pra mim e me disse: “Se você não comer essa folha, você não vai sonhar”. Eu comi, óbvio. E sonhei.

É esse o valor que os alimentos têm para nós. Quando eles têm espírito, e nos alimentamos deles, eles conversam com a gente, nos colocam em conexão com quem somos, com a nossa raiz, com a relação que a cidade tenta frequentemente anular pelo consumo, pela linguagem barulhenta da cidade, pelo alimento sem espírito.

Se não sonhamos, adoecemos. Saúde, tenho aprendido, é tudo e toda boa relação com toda a floresta e gentes que nela coabitam. A obra alerta, portanto, via escrita alfabética e língua portuguesa, um princípio antigo da relação direta dos sonhos com a nossa saúde. Compartilhar é um princípio legado por nosso avô.

 

 

 

 

 

Sobre a autora

Trudruá Dorrico pertence ao povo Makuxi. Doutora em Teoria da Literatura pela PUC (RS). É escritora, artista, palestrante e pesquisadora de Literatura Indígena. Venceu em 1° lugar o concurso Tamoios/FNLIJ/UKA de Novos Escritores Indígenas em 2019. Administradora do perfil @leiamulheresindigenas, no Instagram. Curadora da I Mostra de Literatura Indígena no Museu do Índio (UFU). Autora da obra Eu sou Macuxi e outras histórias (2019). Curadora do FeCCI – I Festival de Cinema e Cultura Indígena, Brasília (2022). Foi residente no Cité Internationale des Arts (Paris, 2023). Atualmente está no pós-doutorado no Programa de Desenvolvimento da Pós-Graduação Emergentes e em Consolidação PDPG – Pós-Doutorado Estratégico/UFRR (2023-2024).

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