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Um breve panorama das línguas indígenas do Brasil

Um breve panorama das línguas indígenas do Brasil

texto - Anari Braz Bomfim (Membro do Grupo Pesquisadores Pataxó ATXOHÃ); ilustração - Aju Paraguassu

30 de agosto de 2023

Na Ponta do Lápis

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Eu sou Anari, sou do Povo Pataxó, Comunidade Pataxó Coroa Vermelha, localizada no Extremo Sul da Bahia. Atualmente somos cerca de 20.000 Pataxó espalhados por 56 comunidades entre os estados de Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiro. Somos da geração de um povo resistente que lutou pela sobrevivência em meio aos impactos do processo da colonização, como a invasão e a exploração pelos primeiros europeus que pisaram em nosso território no litoral Atlântico. A imposição da língua portuguesa como língua dominante trouxe o enfraquecimento da nossa língua ancestral, que aos poucos foi deixando de ser falada, ficando adormecida, restando apenas algumas “línguas” (falantes) que mantinham práticas de usos como forma de resistência. Hoje, o Povo Pataxó é falante do português, mas, graças ao processo de luta da retomada linguística, que vem sendo feito há 23 anos pelo Povo Pataxó no esforço de reaprendizado da língua novamente, o patxohã aos poucos está retornando ao seu lugar. A língua do nosso Povo Pataxó pertence à família Maxacali, tronco Macro-Jê.

Por que falar a língua indígena se no Brasil a língua portuguesa é a língua oficial?

Porque assim como quem tem o direito de falar o português para viver, os Povos Indígenas também têm o direito de falar suas línguas maternas, o direito de recuperá-las. O Brasil nunca foi um país monolíngue, as línguas indígenas sempre existiram e estavam aqui primeiramente. Já houve muitos glotocídios, genocídio de nossos povos, já tentaram e continuam tentando nos silenciar, negar nossa existência e nos invisibilizar. Hoje é uma questão de luta, de garantir que os Povos Indígenas continuem com o direito essencial à vida, à existência e de sobrevivência como qualquer outro falante, seja do português ou de outra língua falada nesse país ou no mundo.

Tratar das línguas indígenas é conhecer a diversidade de cerca de 274 línguas, faladas entre os 305 Povos Indígenas do Brasil (Censo IBGE, 2010), as quais possuem suas grandes riquezas específicas a partir das cosmovisões, cultura dos povos, nas suas relações com outros e nas suas práticas de resistências. Como a língua portuguesa, falada por qualquer cidadã(cidadão) deste país, as línguas indígenas faladas pelos Povos Indígenas devem ser respeitadas nos seus modos de ser, viver e de se comunicar.

O Português não se tornou uma língua oficial por acaso, e muitos desconhecem a própria história. O projeto do colonizador foi pensado e imposto de maneira perversa e excludente, levando à redução de mais de mil línguas indígenas ao longo dos 523 anos, ao massacre de vários povos, o que teve como consequência o glotocídio e o enfraquecimento do uso das línguas entre muitos Povos Indígenas no Brasil, especialmente da região nordeste. Em 1756, o marquês de Pombal implementou a lei do “Diretório dos índios”, obrigando o ensino da língua portuguesa e proibindo o uso das línguas indígenas. Tal política visava integrar os Povos Indígenas à sociedade não indígena, sem respeitar suas línguas e tradições para assegurar o povoamento e a defesa do território para se apossar.

É importante as professoras e os professores trazerem esses aspectos históricos, sociais, econômicos, as memórias das práticas de políticas linguísticas impostas pelo poder dominante desde a colonização até os dias atuais para que as(os) estudantes possam entender o lugar das línguas indígenas na sociedade brasileira e compreender as políticas mais recentes na perspectiva da resistência histórica e na luta dos Povos Indígenas pelo direito às suas especificidades culturais e linguísticas (BOMFIM, 2012).

Junto a todo esse processo de desprestígios das línguas indígenas na sociedade veio a negação da própria identidade, a discriminação e os preconceitos, no entanto, os Povos Indígenas seguem no intenso caminho de lutas, buscando formas de resistências para lidar diante as adversidades.

Depois de intensas lutas do movimento indígena brasileiro, a Constituição Federal de 1988 garantiu aos Povos Indígenas, conforme os artigos 231 e 232, o direito de viverem a partir da sua diversidade étnica e sociocultural, de continuarem falando suas línguas tradicionais, de viverem em seus territórios tradicionais e o direito a um ensino escolar que respeitasse sem negar suas identidades e suas culturas. O artigo 210 assegura “às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e os processos próprios de aprendizagem”, garantindo que as(os) próprias(os) professoras(es) indígenas ministrem as aulas em suas línguas, valorizando suas práticas e seus conhecimentos tradicionais.

Sempre escutamos: você fala a língua Tupi?

As línguas indígenas foram classificadas e agrupadas pelos estudiosos pelos seguintes troncos e famílias linguística: Tronco Tupi, Tronco Macro-Jê, Família Karib, Família Aruak, Família Pano e ainda nove famílias menores e dez línguas isoladas (BANIWA, 2006). Atualmente, há povos que são falantes monolíngues de suas línguas, outros bilíngues ou multilíngues, outros somente falantes do português, que estamos chamando de português indígena, e também há línguas de sinais faladas por indígenas surdos. Há Povos que estão recuperando suas línguas em contexto de retomadas, vitalizações e revitalizações. Desse jeito, uma rede de usos multilíngues forma o complexo panorama sociolinguístico dos Povos Indígenas no Brasil. (BOMFIM, 2012). Portanto, não só existem línguas pertencentes ao tronco tupi, como outras línguas indígenas totalmente diferentes desse tronco. O termo “Oca”, do tronco tupi, usado para casa ou moradia das línguas do tupi antigo, que ficou muito conhecido no Brasil, variam entre os povos desse mesmo tronco, como: na língua Kokama (família tupi guarani, tronco Tupi), do Povo Kokama (AM) é “Uka”, em Guarani Mbya (família tupi guarani, tronco tupi) do Povo Guarani mbya (RS) é “Oo”, em Tupi Guarani (família tupi guarani, tronco tupi) do Povo Tupi Guarani (SP) é “oy”. Nas outras línguas de outros troncos e famílias linguísticas diferentes são: na língua Terena (família terena ou tereno, tronco Aruak) do Povo Terena (MS) é “Ovokúti”, em Shãwãdawa (família Pano ou Kuĩ) do Povo Shãwãdawa (AC) é “pêshê”, em Hunikuĩ (família pano ou kuĩ) do povo Hunikuĩ (AC) é “hiwe”, em Yaathê (tronco Macro-jê) do povo Fulni-ô (PE) é “Setí”, em Patxohã (família maxacali, tronco Macro-jê) do Povo Pataxó (BA) é “kijemi”, na língua Dzubukuá-kipea do Povo Kariri Xokó (AL) (tronco macro-jê) é “erá”, na língua Puri (tronco macro-jê), do povo Puri que estão entre os estados São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais é “Nguara”, entre o Povo Kadiwéu do Mato Grosso do Sul há a língua dos homens e das mulheres – na fala feminina diz “igeeladi” (minha casa) e na fala masculina, “igeladi” (minha casa).

A luta pelo fortalecimento das línguas indígenas e as políticas linguísticas

Nesses últimos anos temos visto a redução de falantes de línguas indígenas entre alguns povos e com a pandemia da covid-19 houve muitas perdas dos guardiões dos saberes tradicionais e de suas línguas, a exemplo dos últimos anciãos falantes Walapiti (MT), Karitiana (RO), Puruborá (RO), entre outros. Conforme informação da pesquisadora indígena da Língua Kokama, Altaci Rubim, só entre os kokama foram a óbito 75 anciões, os quais contribuíam com o projeto local de fortalecimento e vitalização da língua.

A garantia da demarcação dos territórios indígenas é imprescindível para o fortalecimento das línguas indígenas. Nos últimos anos os ataques contra os Povos Indígenas têm se intensificado perante a política governamental, contrariando a Constituição Federal de 1988, que garantiu o direito aos Povos Indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens. Manter as línguas indígenas é também garantir a proteção dos 1.298 territórios indígenas existentes, especialmente daqueles que ainda estão em processos demarcatórios, os quais chegam a 63% do total, conforme dados do Relatório de Violência contra os Povos Indígenas (2020)1.

Na luta pela sobrevivência das línguas indígenas, muitos Povos Indígenas têm desenvolvido iniciativas para o fortalecimento e vitalizações de suas línguas por meio de projetos locais e em parcerias com universidades, instituições governamentais e não governamentais. É uma luta constante, por outro lado ao contrário das perdas e extinção das línguas, muitas dessas iniciativas têm contribuído para fortalecer outros caminhos de resistências para retomadas das línguas ancestrais, como tem feito o Povo Pataxó, Pataxó Hãhãhãe, Tuxá Kirir (BA), Kariri Xokó (AL), Puri (SP/RJ/MG), Tupiniquim (ES), entre outros.

Em 2019, a ONU celebrou o Ano Internacional das Línguas Indígenas, no sentido de alertar o mundo sobre a importância da preservação e a promoção das 7 mil línguas indígenas, especialmente daquelas que estão sob risco de “desaparecimento”, o que resultou na elaboração do Plano de Ação Global da Década Internacional das Línguas Indígenas (IDIL 2022-2032). Essa chamada tem como lema “Nada para nós sem nós”, que estabelece como princípio o protagonismo dos Povos Indígenas, a participação efetiva na tomada de decisão, consulta, planejamento e implementação de políticas e ações voltadas para a valorização das línguas indígenas. A partir de então foi feita uma articulação a nível nacional para a mobilização da Década das Línguas Indígenas constituída por um Grupo de Trabalho a Nível Nacional, protagonizada por representantes com participação de indígenas acadêmicos ligados a instituições de ensino superior, estudantes de pós-graduação e graduação, professoras(es) indígenas e coletivos indígenas que realizam atividades em suas comunidades para o fortalecimento de suas línguas, além de representantes de instituições parceiras governamentais e não governamentais que atuam com os Povos Indígenas. O GT Nacional é constituído por 3 GTs para tratar dos seguintes contextos linguísticos: línguas indígenas, línguas indígenas de sinais e português indígena. Nesses GTs foram discutidos um Plano de Ação da Década das Línguas Indígenas do Brasil cujo objetivo foi propor ações de políticas linguísticas que leve em consideração as condições sociais, econômicas, ambientais e de saúde dos falantes indígenas e articular com as instituições governamentais para sua implementação e efetivação. Almejamos construir, nessa década, políticas linguísticas que se baseiam nas epistemologias indígenas a partir de como os Povos Indígenas pensam suas línguas, culturas, modos de ser, sentir e dar visibilidade a sociedade envolvente da importância da diversidade e do uso das línguas indígenas para os Povos.

No Brasil ainda não temos uma política linguística ampla no âmbito nacional consolidada para incentivo, valorização e preservação das línguas indígenas. A  legislação existente está voltada somente para a valorização das línguas indígenas no âmbito da Educação Escolar Indígena, que foi o mínimo que o Estado teve de reconhecer. Ao mesmo tempo, tem sido uma luta constante a garantia e sua efetivação nas escolas das comunidades indígenas mediante os conflitos das imposições do sistema educacional nacional.

No Brasil as co-oficializações das línguas indígenas só têm acontecido em nível municipal, o que tem sido também uma alternativa para fortalecer a valorização das línguas indígenas, embora seus efeitos positivos e contraditórios. No entanto, isso tem ocorrido em apenas alguns municípios conforme as iniciativas dos Povos Indígenas e apoio de parceiros das instituições. As primeiras línguas co-oficializadas foram Baniwa, Tukano e Nheengatu, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), por meio da Lei nº. 145, de 11 de dezembro de 2002.2 Em abril de 2023, o município de Porto Seguro co-oficializou o Patxohã, a língua do Povo Pataxó. A co-oficialização é o reconhecimento de línguas nativas no âmbito dos municípios, no entanto, se não for construir ações e garantia de recurso para o fortalecimento das línguas indígenas, isso não tem muito efeito.

Conclusão

Procurar conhecer a realidade das línguas indígenas, a história dos Povos Indígenas e dar visibilidade dessa diversidade e promovê-la com justiça é contribuir na quebra de barreiras que foram engessadas a partir dos preconceitos, dos estereótipos, da discriminação e das injustiças causadas aos Povos Indígenas ao longos dos anos.

Atualmente há uma luta grandiosa enfrentada pelos Povos Indígenas em pleno século XXI, pois há uma grande tentativa severa de impedir as demarcações dos territórios indígenas, assim como reduzir e explorar especialmente os recursos naturais, como foi o caso recente dos yanomami que estão sendo afetado pelas consequências das invasões do garimpo no seu território, o que impacta também nas línguas indígenas. Promover as políticas voltadas à valorização, manutenção e fortalecimento das línguas indígenas é um ato de justiça, e nesse propósito vamos continuar lutando.

Há várias iniciativas protagonizadas por diversos povos que têm mostrado que, a partir de seus projetos de revitalização, vitalização e processos de retomadas, é possível os povos continuarem resistindo. Valorizar as nossas línguas é honrar aquelas(es) que lutaram por nós e levar em frente aquilo que deixaram em nossas mãos para continuar como forma de resistência.

 


Notas de rodapé

1. Fonte: Relatório Violência Contra os Povos Indígenas, 2020. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2020/10/relatorio-violencia-contra-os-povos-indigenas-brasil-2019-cimi.pdf

2. Depois, houve a co-oficialização da língua guarani no município de Tacuru em Mato Grosso do Sul, por meio da Lei nº. 848, de 24 de maio 2010, além do Guarani em Paranhos, Mato Grosso do Sul, ainda em processo de tramitação; o Akwê Xerente no município de Tocantínia (TO), Lei nº 411, de 25 de abril de 2012; Macuxi e Wapichana, no município de Bomfim (RR), por meio da Lei nº 211, de 04 de dezembro de 2014 e no município de Cantá (RR), Lei nº 281/2014, de 25 de março de 2015. É de 18 de setembro 2019 a co-oficialização do Mebêngokre (Kayapó) no município de São Félix do Xingu (PA).

 

Sobre a autora

Anari Braz Bomfim é do Povo Pataxó, Comunidade Pataxó Coroa Vermelha – Santa Cruz Cabrália. Possui graduação em Letras pela UFBA. Mestra em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA. Atualmente é doutoranda em Antropologia Social pela UFRJ, membro do Grupo de Pesquisadores Pataxó – Atxohã há 23 anos e do GT Nacional da Décadas das Línguas Indígenas. Atua principalmente nos seguintes temas: retomada ou revitalização da língua Pataxó, educação escolar indígena, produção de material didático e política linguística.


Referências

BOMFIM, Anari Braz. Patxohã: a retomada da língua do povo Pataxó. Revista Linguística do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro, v. 13, n.1, jan 2017, p. 303-327. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rl.

MORELLO, Rosângela. Língua Guarani: políticas linguísticas e pluricentrismo. In: Relatório do Grupo de Trabalho da Década das Línguas Indígenas Brasil 2023.

LUCIANO. Gersem dos Santos. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, 2006.

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