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Sankofa visita minha janela

Sankofa visita minha janela

texto - Ana Carolina de Souza Silva e Jakeline Pereira Nunes; ilustração - Criss de Paulo

15 de agosto de 2023

Palavra de educador(a): viver para contar e contar para viver. Experiências da 7ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa

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Eu tenho 31 anos e moro em Ceilândia (DF).  Sou uma mulher negra que cresceu e se  formou em contexto de periferia. Sendo  o fruto de muita peleja, sou também  a primeira pessoa a ser intitulada Doutora  em minha família. Posso dizer que a  educação sempre me salvou e possibilitou  que eu contrariasse os dados vinculados  às pessoas negras e pobres de nosso país.  Além disso, sou também escritora,  e procuro inserir os contextos de minha  trajetória e das pessoas ao meu redor em  meus escritos. Daqui da capital, do interior  de minha casa, através da tela de meu  computador, conheci adolescentes  de todo o Brasil. Conheci possibilidades  de mudança, de futuro, de conhecimento.  Daqui também compartilho essa vivência.

Carolina de Souza     

Do outro lado da tela e do outro lado  do mundo, na China, onde vivo, eu, com  31 anos, lancei-me nesta jornada, que é  a Olimpíada de Língua Portuguesa. Sou  natural de Brasília (DF) e vivi até os meus  24 anos no entorno da capital, em Valparaíso  de Goiás (GO). Para mim, é impossível  falar sobre qualquer experiência enquanto  formadora sem mencionar minha origem,  pendular, entre o centro e a periferia do  entorno. Se hoje minha ocupação principal  é ser professora em uma instituição de nível  superior chinesa, a Universidade de Estudos  Estrangeiros de Sichuan, isso só foi possível  porque diversos caminhos foram trilhados  de forma criativa para ir contra as estatísticas  tradicionais para mulheres negras  e periféricas do nosso país.

Jakeline Nunes    

Nós, Carol e Jake, fomos formadoras de estudantes na 7ª- edição  da Olimpíada de Língua Portuguesa pela primeira vez.  Foram quatro dias de encontros e partilhas com estudantes  que concorriam à categoria Crônica. A nossa turma era composta  por pessoas de todo o canto do país. As regiões foram contempladas  pelos Estados da Paraíba, do Espírito Santo, do Mato Grosso do Sul,  do Rio Grande do Sul, do Amazonas, entre outros, além de nossas  presenças no centro do país (DF) e fora dele (China). Nossos semifinalistas,  estudantes de escolas públicas e em torno dos 13 anos. 

Os nossos encontros se deram ao vivo, por meio da plataforma  Google Meet, e por meio de diversas atividades no  ambiente virtual de aprendizagem (AVA). Antes mesmo do  nosso primeiro contato com a turma, nossos semifinalistas  utilizaram o AVA, intermediados por criativos bilhetes orientadores.  Eles postaram seus perfis virtuais com informações  sobre seus interesses e seus locais de origem e puderam interagir  a partir de fóruns, discutindo, por exemplo, o que mais  lhes chamou atenção após as leituras dos perfis de seus colegas.  Destacamos a intervenção de Eduarda Neves de Souza,  de Bacabal (MA), que escreveu: “Iremos ficar todos esses dias  juntos, então é crucial mantermos o respeito”. Chamou-nos  a atenção esse posicionamento de liderança em prol do bem-  -estar de todos os interagentes nos fóruns, que se ampliaria  às interações síncronas. O estudante Gabriel Figueiredo da  Matta, de Anchieta (ES) falou: “Eu me vi refletido nos olhos  verdes da minha colega”. A sensibilidade para a relevância do  “olhar” desse estudante ampliou as possibilidades de conectar  suas percepções com a nossa visada didática-pedagógica, já  que a primeira atividade da sequência didática proposta pela  equipe da Olimpíada provinha da exploração do poema  “Olhos parados”, de Manoel de Barros (in: Poesia completa.  São Paulo: Leya, 2013). Mal sabíamos que nos seria tão oportunizado  revisitar realidades com novas perspectivas. 

Então, no dia 13 de outubro de 2021, tivemos nosso primeiro  encontro via Google Meet. Naquela altura, já tínhamos  verificado o perfil de nossos(as) estudantes, lendo um  a um o que demarcavam como parte de sua personalidade,  de seu lugar no mundo. Em diálogo, ao questionarmos sobre  suas atividades cotidianas favoritas, uma de nossas estudantes,  Ana Cristina Batista de Oliveira, de Careiro da Várzea  (AM), respondia: “pular na água”. Perguntávamos: o  que ela quer dizer com isso? Ela já havia expressado isso em  seu perfil e, em uma reunião que fizemos dias antes, não  encontrávamos resposta. Por três dias, ela continuou a nos  dizer que uma atividade que a deixava feliz era pular na  água. Até que, no penúltimo dia de reunião (16 de outubro de 2021), ela nos explicou que morava em frente ao Rio  Amazonas e que, por suas águas, ia à escola e brincava com  seus amigos. Ela se relacionava com o Rio diariamente. Aquela  sua afirmação – pular na água –, então, passou a fazer todo  o sentido. Por dias buscamos encontrar sentidos nas palavras  que descreviam o lugar de partida das e dos estudantes. No  momento em que, finalmente, experimentamos a completa  compreensão do espaço de Ana Cristina, pudemos perceber  que as palavras revelam pontos de vista que são influenciados  também pelas nossas origens geográficas. 

Diante dos dias que se passaram, nada nos tocou tanto  como a atividade que propunha escrever uma “legenda cronística”.  Com ela, fomos encaminhadas à reflexão central  deste relato: assim como propõe o símbolo africano Sankofa  (melhor explicitado adiante), continuamos à frente pensando  nos passos que vêm antes de nós. 

A atividade de produção da legenda propunha que os  estudantes tirassem uma fotografia de suas janelas e a legendassem.  Aqui, da tela de nossos computadores, acompanhamos  meninos e meninas compartilharem suas impressões  sobre o mundo, sobre seus lugares, sobre a vista de suas  janelas. A essa altura, já estavam conscientes do sentido  conceitual da crônica, e pudemos comprovar isso ao verificarmos  os resultados do processo. Foi de espetacular primor  ler as legendas propostas, tamanha a afetuosa redação de  nossos estudantes. O desafio maior que identificamos foi o  de que fossem capazes de “parar seus olhares” a fim de uma  perspectiva extraordinária, ou seja, era preciso olhar para  suas janelas de modo menos corriqueiro e procurar no registro  fotográfico o além-óbvio. 

No AVA, havia um mural do Padlet (uma ferramenta  digital para construção de murais virtuais colaborativos) em  que eles deveriam postar suas imagens seguidas de uma  legenda. Periferias, zonas rurais, interiores, litorais. De tudo   um pouco visitamos. Ana Cristina fotografou sua janela, e  nela víamos o Rio Amazonas. Ela afirmou: “Antes tinha  água, hoje não tem mais! Mas em breve terá”. Parece que,  com simplicidade, essa jovem expressa tão bem o ciclo do  rio. Mais do que isso, ela mostra otimismo em saber que o  rio novamente se reconstituirá. Isso só é possível quando  esperamos o seu tempo. Ailton Krenak, palestrante para  professores semifinalistas do gênero Poema da 7ª- edição da  Olimpíada, liderança dos povos Krenak, filósofo, ambientalista  e escritor, representa muito bem essa reflexão que apontamos  em O amanhã não está à venda (Companhia das  Letras, 2020). Diante da possibilidade da morte do Rio Doce  (ES), ele certa vez deu uma alternativa de recuperação:  “A minha sugestão é muito difícil de colocar em prática.  Pois teríamos de parar todas as atividades humanas que  incidem sobre o corpo do rio, a cem quilômetros nas margens  direita e esquerda, até que ele voltasse a ter vida”. Diante  dessa afirmação, ele foi questionado, pois aquilo seria impossível,  uma vez que o mundo não poderia parar. E o mundo  parou na pandemia. Um choque para todos nós, que fomos  convidados a revisitar nossas práticas. 

O conceito de Adinkra Sankofa, ícone africano, nos  orienta a construir o futuro olhando para o passado. O símbolo  é retratado pela imagem de um pássaro que tem os pés  fincados no chão e o pescoço voltado para trás, segurando  um ovo no bico. O ovo representa o passado, simbolizando  que, embora o pássaro voe adiante, para o futuro, não se  esquece do que foi. 

Quando nos inspiramos em Sankofa, nos questionamos:  o que nossos ancestrais deixam de experiências possíveis  para termos um futuro? Em todo instante, sentimos que a  pandemia nos fez revisitar o passado, imaginando o que  éramos e como poderíamos ser, caso o vírus nunca estivesse  aqui. Embora não seja possível “voltar ao normal”, como a todo momento a mídia tem sugerido, acreditamos que há  ensinamentos ancestrais que nos permitem criar possibilidades  de futuros mais sustentáveis e igualitários. Os semifinalistas  que compunham nossa turma nos ajudaram nessa tarefa e,  como consequência, somos guiadas a perceber a importância  da simplicidade, da vivência com o natural. Essa integridade  em reconhecer-se no todo, que é a natureza, foi despertada  pelas palavras (ditas e escritas) dos jovens que nos acompanharam  nesse trajeto. Uma de nossas estudantes (Eduarda)  ampliou o ambiente de sua janela para incluir uma foto sua  acompanhada da mãe em um parque de diversões. Na legenda,  ela escreveu sobre a novidade que fica temporariamente  na cidade: “O parque de diversões, uma alegria quando chega  na cidade. Não demora muito, mas, quando vem, o tempo  é suficiente”. Tempo suficiente. Uma afirmação trivial que  evoca infindáveis possibilidades, sobretudo no campo da sabedoria  em observar a vida e seus encantos, em um mundo que  dita limitações, até para o bem-estar, constantemente. 

Embora o contato virtual com estudantes de diferentes  partes do Brasil nos limite na proximidade, consideramos que  expandiu a sensação de estar à vontade, afinal, havia estudantes  acessando os encontros virtuais de casa, da escola, da  igreja. Era nítida a habilidade para descrever os percursos  da travessia que eles próprios queriam construir. Para isso, se  mostraram conscientes de sua voz e do poder da escrita de  suas palavras na história, o que ficou evidente na fala de Helena  Maciel Araújo, de Santo Antônio das Missões (RS), ao afirmar  que “as palavras de um escritor nunca morrem”. 

Parar o olhar. Aproveitar o tempo. Ressignificar a vida.  A pandemia deixa essas ensinanças aos que estão atentos.  Nossos semifinalistas, embora ainda muito jovens, foram  capazes de captar essas mensagens e, mais do que isso, nos  ensinar. E nada podemos sozinhos; apenas com o coletivo,  por ele e para ele que temos possibilidades de futuro.   


Ana Carolina de Souza Silva (Carolina de Souza) e Jakeline Pereira Nunes  realizaram, juntas, a formação dos estudantes que estavam na categoria Crônica durante o Encontro de  Semifinalistas da 7ª- edição da Olimpíada. Carolina de Souza é graduada em Letras, Português do Brasil  como segunda Língua pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Linguística (UnB) e doutoranda em  Linguística (UnB). É educadora, escritora, pensadora e ativista. Jakeline Nunes é bacharela e mestra  em Estudos da Tradução pela Universidade de Brasília (UnB) e licenciada em Pedagogia pelo Instituto  

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