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Unindo o discurso à prática: não basta ser antirracista. É preciso ler o que as autoras e autores negros escrevem

Unindo o discurso à prática: não basta ser antirracista. É preciso ler o que as autoras e autores negros escrevem

texto - Bel Santos Mayer; ilustração: Valentina Fraiz

01 de novembro de 2022

Sonhar um sonho tão bonito

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Este artigo propõe uma breve reflexão sobre o lugar ocupado pela literatura no enfrentamento do racismo e na promoção da igualdade racial. E um convite para educadoras e educadores refletirem sobre a presença (ou a ausência) da literatura de autoria negra no acervo da escola, na programação de suas aulas e em seu repertório leitor.

Repito para nós a pergunta do coletivo Mulheres Negras na Biblioteca1: “Quantas autoras negras você já leu”? Com o objetivo de incentivar o conhecimento de escritoras negras, a leitura de suas obras e sua inclusão nos acervos das bibliotecas, esse coletivo promove encontros e atividades culturais relacionadas ao tema. À sua pergunta poderíamos acrescentar: Quantas autoras( es) negras(os) você já indicou em suas aulas? Quantos livros de autoria negra você já leu com as(os) estudantes? O que isso representa dentro do número de obras indicadas por você?

Seja qual for sua resposta, ela nos leva à reflexão sobre a presença e a ausência de obras de autoria negra nas escolas, livrarias, bibliotecas, premiações literárias e outros espaços correlatos. É provável que estejamos próximas(os) do que o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, coordenado pela Profa. Dra. Regina Dalcastagnè, vem pesquisando desde 2003. Ao analisar 692 romances publicados por grandes editoras, escritos por 383 autoras(es) entre 1965 e 2014, concluíram que, em 43 anos, o perfil do romancista brasileiro se manteve estável: homens brancos, de classe média, moradores do Sudeste, narram histórias de protagonistas e coadjuvantes brancos com poucas variações:

Apesar de bastante homogêneos, os dados mostram um aumento de 12 pontos percentuais na publicação de romances escritos por mulheres – fato que, por sua vez, não produziu um crescimento significativo na quantidade de personagens femininas. O que salta aos olhos – mas não surpreende – é a falta de mulheres e homens negros tanto na posição de autores (2%) como na de personagens (6%). Mulheres negras aparecem como protagonistas em apenas seis ocasiões, e outras duas como narradoras das histórias. Mulheres brancas, por sua vez, ocuparam essas posições 136 e 44 vezes, respectivamente. Os autores vivem basicamente no Rio de Janeiro (33%), São Paulo (27%) e Rio Grande do Sul (9%) (MASSUELA, Amanda, 2018).

Uma representatividade de autoria negra incipiente, que somada à 5ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2021)2 pode nos levar à confirmação de que lemos pouco, lemos mal e lemos os mesmos. Será apenas isso? Tem gente nadando contra essa corrente.

 

O Brasil que lê!

Em 2020 a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO) e o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), com o apoio do Instituto C&A e do Itaú Social, realizaram uma pesquisa junto às bibliotecas comunitárias para avaliar dimensões de suas práticas de formação de leitoras(es). Os resultados foram publicados pela Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias e pelo CCLF sob o título: O Brasil Que Lê: Bibliotecas comunitárias e resistência cultural na formação de leitores.3

No Brasil que lê há bibliotecas comunitárias gestadas especialmente por jovens que algum dia acharam que não gostavam de ler. Em algum lugar estava escrito que a literatura não lhes pertencia. Tinham aprendido que a literatura era luxo ou algo para quem tem tempo sobrando, coisa rara entre as(os) trabalhadoras( es) braçais.

Porém, essas(es) jovens se encontraram com outras(os) jovens que acreditavam na força da palavra para a construção de mundos. Jovens que se juntavam para compartilhamentos literários, que emprestavam palavras para dizer em seus próprios sotaques, para escrever os seus textos. Para elas e eles, a literatura foi virando espelho para se ver, para olhar para trás e conhecer quem veio antes, para refletir o caminho para quem chegou depois. A literatura em suas vidas, mesmo sem intenção, virou espaço de autoconhecimento, de conhecimento e reconhecimento de histórias que lhes foram escondidas.

Jovens negras(os), jovens periféricas(os), construindo e ocupando bibliotecas comunitárias nas bordas do país, passaram a contribuir ativamente para que os livros continuassem vivos e revelando autoras(es) colocadas(os) à margem. Contrariando as perspectivas mais pessimistas sobre o fim dos livros físicos e da espécie de “jovens leitores” com a imaginária presença maciça dos celulares em suas mãos, vemos o crescimento dos saraus e dos slams, das editoras independentes e das livrarias de rua. Qual seria o segredo?

O editor e livreiro Alexandre Martins Fontes4, indagado sobre os livros continuarem existindo apesar do avanço da tecnologia, apresentou dados sobre o aumento do número, da qualidade da produção gráfica e da diversidade dos lançamentos, apesar da crise desencadeada pela pandemia da covid-19. Segundo Alexandre, embora o processo criativo seja cada vez mais digital e virtual, o livro físico continua sendo um objeto de arte insubstituível. Para explicar a emoção de se ter um livro físico em mãos, ele recorre à imagem da ultrassonografia de uma gestante: por mais impressionante que seja a qualidade da imagem, nada se compara à emoção de se ter a(o) filha(o) no colo no nascimento. Parece difícil discordar dessa metáfora.

Um outro fator para o fracasso do decreto de morte dos livros, arriscamos dizer, seriam os livros-espelhos; livros que possibilitam ver-se no que lê. Quando a(o) leitora(or) encontra narrativas, personagens e palavras que descem ao chão que ela ou ele pisa, tudo faz mais sentido. Quando empresta seus olhos e voz para ler as memórias das e dos que vieram antes, para conhecer as histórias omitidas por meio de romances, crônicas, contos, poesias, Histórias em Quadrinhos que dão nome a suas dores e aos seus sonhos, percebe que não está sozinha(o) no mundo. Essa literatura que acolhe e aconchega, também convoca. Ler passa a ser um ato poético, educativo e político.

Negras histórias: a memória como âncora ou vela

A história da escravização de pessoas negras de origem africana no Brasil é marcada por sequestros, coisificação de corpos, violência física, exploração, hierarquização de saberes, tentativa de destruição do pensamento negro. Um perverso processo de apagamento e distorção das memórias da escravidão fez com que, por muito tempo, o legado da escravidão fosse depositado nos ombros de descendentes de escravizadas(os), deixando a descendentes de escravizadores um certo orgulho por ter abolido a escravidão e esquecido o passado. Algo está fora da ordem nessa história. E os movimentos negros sabem bem disso. Por esse motivo reivindicaram a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação do Brasil (Lei 9.394/1996) para a inclusão da História e Cultura da África e das(os) afro-brasileiras(os) no currículo escolar: o que foi conquistado com a Lei 10.639/20035, visando superar os muitos silêncios sobre a presença negra no Brasil.

Os caminhos para romper o silêncio sobre as relações raciais no Brasil suscita a inquietante pergunta: “a memória é vela ou âncora?” 6. Para algumas pessoas, falar da escravização de pessoas negras africanas em nossas terras nos deixaria fixadas(os) ao passado. Para outras, recuperar essas memórias e histórias é o que pode nos lançar para navegarmos por outros mares. Nesse breve artigo, não temos espaço para uma análise mais profunda sobre a escravidão. Recomendamos, caso não conheça, visitar o Projeto Querino: “um projeto que mostra como a História explica o Brasil de hoje”.7

Falar de memória para as pessoas negras é falar de uma história de silêncios impostos e de silêncios escolhidos como forma de sobrevivência. Quantas tataravós, bisavós, avós negras esconderam seus saberes ancestrais por medo de discriminação, numa cultura que impõe a vergonha por ter cabelo crespo e pele escura, por ser do campo ou conhecer ervas que curam, por professar a fé em religiões de matriz africana?

O contato de filhas(os), netas(os) e bisnetas(os) com essas lembranças transformam a memória em vela. Se num primeiro momento as memórias são âncora que levam à profundeza dos mares onde muitos corpos negros tombaram, em outros a memória é vela que avança ao mar.8

Se no passado negras(os) tiveram que omitir suas autorias por terem “um defeito de cor”9, hoje, é preciso narrar em primeira pessoa. Trata-se do direito humano à memória, a grafar novas palavras e levá-las para os livros sem pedir licença ou desculpas. É uma forma de garantir “o direito de escrever o vivido, de ressuscitar o que parecia sepultado, gravar o ainda por fazer, de preservar o passado e promover rupturas” (QUEIRÓS, 2007, p. 36). A leitura de autoria negra é uma forma de preencher os vazios deixados pela ausência dessa narrativa, que representa mais da metade da população do país, e contribuir para que as gerações atuais e futuras se reconheçam como construtoras de pensamentos e capazes de sonhar e realizar seus destinos.

Por que a literatura?

Para a biblioteconomista colombiana Sílvia Castrillòn (2011), “ler pode ser um meio para melhorar as condições de vida e as possibilidades de ser, de estar e de atuar no mundo”. É certo que a leitura literária sozinha não fará isso, mas sem ela pode ser mais difícil construir um lugar no mundo.

Esses assuntos que estariam reclusos aos livros de história podem entrar na sala de aula, nas conversas, nos saraus pelo encontro com a fome descrita em Quarto de Despejo, por Carolina Maria de Jesus, no diálogo entre avós e netos em Os nove pentes d’África, de Cidinha da Silva, com as Heroínas Negras, de Jarid Arraes, nas lutas por liberdade em Ganga Zumba, de Marcelo D’Salete, nas escrevivências em Ponciá Vicêncio ou nas mulheres contadas em Olhos d’água, ambos de Conceição Evaristo, nas estratégias para ler e enfrentar o racismo vivido no próprio corpo como Na minha pele, de Lázaro Ramos.

Ao ler a literatura de autoria negra há o reconhecimento de que pessoas negras não são redutíveis a duas ou três características estereotipadas. A literatura de autoria negra coloca negras(os) como sujeitos, produtoras(es) de pensamento, de saberes, de cultura. É a possibilidade de construir um imaginário mais humano sobre si, de se sonhar no mundo como manifestou a escritora e estudiosa da literatura negra, Neide de Almeida:

Acredito que a literatura assim como as outras formas de arte (escultura, gravura, todas as outras linguagens) tem este papel fundamental de apresentar outras possibilidades de representação. Quando você tem acesso a diferentes representações de um sujeito, do mundo, da forma de você agir, da forma de você pensar, aí que se cria a possibilidade de construir um posicionamento seu; um posicionamento que coincida com aquilo que você é. Então eu acredito que a literatura tem um papel fundamental na construção das identidades, nos processos de representação (ALMEIDA, vídeo LiteraSampAfro lê Um defeito de cor, 2016)

Ao conhecer e apresentar autoras(es) negras(os), contribuímos para o (re)conhecimento de que negras e negros são parte do eixo criativo da literatura e dos livros. É uma oportunidade para todas( os) de superação de preconceitos e enfrentamento do racismo. Para jovens negras e negros, porém, ler autoras(es) negras(os) e saber que sua gente resistiu e resiste às práticas e profecias de sua extinção (assim como os livros), talvez seja questão de sobrevivência e construção de uma identidade coletiva.

 

Notas de rodapé

1. Para conhecer mais sobre o Mulheres Negras na Biblioteca, criado por Carine Souza, Camila Araújo, Juliana Sousa e Mariane Santos, acesse <https://www.instagram.com/mulheresnegrasnabiblio/>.

 2. A íntegra da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil pode ser acessada cadastrando-se no site <https://www.prolivro.org.br/5a-edicao-de-retratos-da-leitura-no-brasil- 2/a-pesquisa-5a-edicao/>. Acesso em: 30 set. 2022.

3. Publicação disponível em: <http://cclf.org.br/project/o-brasil-que-le-bibliotecas-comunitaria-de-resistencia-cultural-na-formacao-de-leitores/>. Acesso em: 30 set. 2022

4. Alexandre Martins Fontes foi recebido por Jair Marcatti no programa Café com repertório #12 - 31 de agosto de 2022. Disponível em: <https://youtu.be/aCRRrj10QxE>. Acesso em: 15 set. 2022.

5. A Lei 10.639/2003 acrescenta os artigos 26-A, 79-A e 79-B a Lei no 9.394/1996 para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira. A íntegra está disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em: 15 set. 2022.

6. Pergunta feita por Eric Nepomuceno no programa Sangue Latino e que deu título a evento de reflexão sobre os 200 anos da independência do Brasil e centenário da Semana de Arte Moderna, promovido pela Pró-reitora de Cultura e Extensão da USP (PRCEU/USP) em 14/09/2021.

7. Disponível em: <https://projetoquerino.com.br>. Acesso em: 15 set. 2022.

8. Referência a fala realizada por Bel Santos Mayer no evento virtual 3x22 | Memória é vela ou âncora?, promovido pela PRCEU/USP em 14/09/2021.

9. Um decreto no período colonial exigia que pessoas negras interessadas em ingressar no clero ou no serviço militar pedissem licença“.

 

Sobre a autora

Bel Santos Mayer é educadora social, coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – IBEAC, co-gestora da Rede de Bibliotecas LiteraSampa, formadora de jovens mediadoras(es) de leitura, docente da pós-graduação Literatura para Crianças e Jovens do Instituto Vera Cruz. Licenciada em Ciências/Matemática e Bacharel em Turismo, tem especialização em Pedagogia Social, é mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Turismo (EACH/USP), pesquisando a contribuição das bibliotecas comunitárias para o estudo das mobilidades.


Referências

CATRILLON, Silvia. O direito de ler e de escrever. Pulo do Gato, 2011, p. 20.

FERNANDES, Cida.; MACHADO, Elisa.; ROSA, Ester. O Brasil que lê: Bibliotecas comunitária e resistência cultural na formação de leitores. Centro de Cultura Luiz Freire, RNBC, 2018.

MASSUELA, Amanda.; Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro, In: CULT, 5 fev. 2018. 05/02/2018, Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/> Acesso em: 15 set. 2022.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Para ler em silêncio. São Paulo: Moderna, 2007.

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