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Nei Lopes e José Craveirinha: poemas de dormir e de acordar amor

Nei Lopes e José Craveirinha: poemas de dormir e de acordar amor

texto - Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota); ilustração - Valentina Fraiz

01 de novembro de 2022

Sonhar um sonho tão bonito

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O carioca Nei Lopes é considerado um intelectual negro multifacetado: grande escritor, compositor e cantor, além de advogado, sambista e carnavalesco, é amplamente reconhecido por seus estudos no campo das culturas africanas, seja na diáspora, seja dentro de África. Sua primeira publicação data de 1981 e, desde então, desenvolveu uma sólida carreira que lhe rendeu prêmios e homenagens, como o Prêmio Jabuti em 2016, na categoria não-ficção com Dicionário da História Social do Samba e o título de Doutor Honoris Causa em ao menos cinco universidades brasileiras.

No poema História para ninar Cassul-Buanga, Nei Lopes, com seu sujeito poético assumidamente negro, se vale de versos livres, mas não completamente brancos, para contar a história de um povo em seu forçado processo diaspórico. Para isso, faz referência a um episódio do passado, descreve o presente e, profeticamente, faz anúncio de um futuro em que crianças negras poderão viver, dormir e sonhar sem o peso da exploração capitalista, escravista e racializada.

Assim como Nei Lopes, o poeta moçambicano José Craveirinha, em Poema do futuro cidadão, também faz uso do texto literário para delimitar seu pertencimento a um povo e, do mesmo modo, organiza os tempos para construir um lugar no futuro – longe das mazelas capitalistas, coloniais e racistas. Indicado por várias vezes ao Nobel de Literatura, em 1997, Craveirinha foi ganhador do Prêmio Camões e é considerado mundialmente, e por seus compatriotas, como “o pai da literatura moçambicana”.

Tanto Nei Lopes quanto José Craveirinha são grandes artistas negros e intelectuais premiados e suas obras dialogam em vários aspectos: desde as similitudes biográficas, passando pela valorização da negritude e dos povos negros, até, como veremos, os aspectos estéticos dos belíssimos poemas História para ninar Cassul-Buanga e Poema do futuro cidadão, de autoria de Nei Lopes e de Craveirinha, respectivamente.

Antes de prosseguir com a análise dos poemas, é importante demarcarmos alguns conceitos, como Diáspora Negra e Povo Negro, assim como relembrar brevemente como se deu o processo colonizatório no continente africano e em território brasileiro.

O termo Diáspora Negra refere-se ao processo de dispersão de pessoas negras, ocorrido de forma involuntária, a partir do século XV, por meio de sequestros, tráfico humano e escravização.

O conceito de Povo Negro, por sua vez, trata- -se de uma generalização atualmente usada para delimitar o conjunto de pessoas negras e afrodescendentes (no Brasil, também chamadas de pretas e pardas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas - IBGE). Equivale, portanto, ao conjunto de pessoas oriundas de diferentes localidades e culturas, mas que mantém em comum traços negróides e raízes no continente africano.

Quando falamos de Povo Negro na Diáspora, ou simplesmente “Diáspora Negra”, estamos nos referindo, portanto, ao forçado processo de deslocamento de pessoas oriundas da chamada África Negra – geograficamente posicionada ao sul do Deserto do Saara – e a suas(seus) descendentes. Essa população, que no Brasil chega a ser a maior do mundo fora do continente africano, encontra-se espalhada por todo o globo, embora concentre-se fortemente em países cujo processo de colonização valeu-se de mão de obra escravizada para suster-se economicamente, como nosso próprio país, Estados Unidos da América, Cuba, Haiti e a maior parte da América Latina.

História para ninar Cassul-Buanga é, nesse sentido, um poema narrativo imbuído da trajetória do povo negro na diáspora: formado por quarenta e dois versos livres divididos em seis estrofes, o poeta logra imprimir neles, na sua concretude formal, a liberdade que foi historicamente negada a esse povo. Para isso, o poeta recorre a estratégias que remontam às tradições orais, à poesia moderna contemporânea e ao que Bloch (2005) chama de “sonho diurno”. A oralidade está expressa no tom de conversa, na sugestão de interlocução entre o sujeito poético e um menino, Cassul-Buanga, que, segundo o título do poema, ouve a contação da história.

Os versos que abrem cada uma das estrofes, por sua vez, trazem marcações temporais por meio de expressões verbais e nominais que denotam a passagem do tempo. É o caso das expressões destacadas em negrito, posicionadas cada qual no primeiro verso das cinco primeiras estrofes:

Um dia, Cassul-Buanga, alguns chegaram: (...) E fomos. (...) Chegamos: (...) Mas vivemos, Cassul. E cantamos um blues!

Todas essas estrofes remontam ao passado – e isso fica evidente pela conjugação dos verbos, no pretérito, e pela referência à chegada de povos europeus à África Negra, ao tráfico humano que se sucedeu, à exploração da vida e da mão de obra escravizada, que foi, por séculos, motor da economia brasileira. O texto também explicita aspectos bonitos do povo negro, como a arte produzida por essa população – a qual se configura como uma das formas de resistência que pessoas provenientes de África e suas(seus) descendentes encontraram para se manterem vivas(os) e ressignificar suas existências.

Essa arte, concretizada no poema de Nei Lopes, o qual deve ser declamado ao som de um instrumento musical, a marimba, nos surge como guia para um novo tempo. A última estrofe, por exemplo, muda o tempo verbal e histórico, trazendo Cassul-Buanga e nós, leitoras e leitores, ao presente. Essa alteração que se dá no campo gramatical interfere no campo do nosso imaginário e nos obriga a olhar para o futuro:

Hoje, Cassul, nossas mulheres – os negros ventres de veludo – Manufaturam, de paina, de faina Os travesseiros Onde nossos filhos, Meninos como você, Cassul-Buanga, Hão de sonhar um sonho tão bonito... Porque Zâmbi mandou. E está escrito.

O futuro que Nei Lopes nos obriga a olhar é profético (“Porque Zâmbi mandou. E está escrito”) e nele está embutido o conceito de “sonho diurno” de Bloch (2005), ou “sonho que se sonha acordado”. Trata-se da antecipação do possível, com vistas a atender aos desejos e necessidades legítimas e imediatas. A liberdade do povo negro, um lugar de paz é o sonho diurno do poeta, e, nesse sentido, o poema de Nei Lopes aproxima-se ao de José Craveirinha, poeta moçambicano cuja obra testemunha, amorosamente, a luta pela libertação de seu povo contra a colonização portuguesa. Para conhecer o Poema do futuro cidadão, consulte o link na bibliografia.

Como em História para ninar Cassul-Buanga, o poema de José Craveirinha apresenta elementos relacionados à valorização do povo negro (nesse caso, o que se manteve dentro do continente) ao trazer à tona um sujeito que se coletiviza ao se autodeclarar “homem qualquer/ cidadão de uma nação que ainda não existe”. Essa “nação que ainda não existe” é Moçambique, que, na década de 1960, encontrava-se sob domínio português. A história do Brasil e de Moçambique são ambas atravessadas pela metrópole portuguesa, pois, grosso modo, Portugal estabeleceu relações comerciais e relativamente amigáveis com os povos tradicionais e reinos africanos durante os séculos que durou o tráfico negreiro e o sistema monárquico e escravocrata brasileiro. Após 1888, com a abolição da escravatura, e 1889, com a Proclamação da República do Brasil, houve uma amplificação do processo de dominação sobre os chamados “Territórios Ultramarinos”, que eram, na prática, colônias portuguesas no continente africano. Embora a nação moçambicana ainda não existisse, ela já fazia parte dos sonhos diurnos de José Craveirinha e de pelo menos um grupo de intelectuais africanas e africanos que tiveram a oportunidade de se reunir em um estabelecimento chamado Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, assim como existe na imaginação do poeta Nei Lopes o lugar bom que Zâmbi, o rei, mandou e que “está escrito”.

A Casa dos Estudantes era uma espécie de república estudantil, criada com o intuito de abrigar, apoiar e controlar estudantes vindos dos “territórios ultramarinos portugueses”. Do encontro de intelectuais de origem africana nasceram grandes lideranças, as quais lutaram efetivamente contra a dominação portuguesa por meio da luta armada, da arte e da política – como é o caso de Craveirinha, um grande poeta que passou alguns anos de sua vida preso, justamente por seu compromisso político com a liberdade do seu país.

Ambos os poemas subvertem o tempo, fazendo do passado/memória e do futuro/sonho diurno, formas de resistência. No poema de José Craveirinha, há uma sobreposição do espaço-tempo, um paradoxo temporal em que o sujeito poético já é, no presente, cidadão de um país que ainda não existe e em que esse mesmo sujeito apela para a memória coletiva dos povos que coabitam o mesmo território para sentir-se pertencente a eles, como um só povo, uma nova nação. No poema de Nei Lopes, há a criação de um lugar bom que ainda não foi concretizado, mas que já existe no plano do imaginário e do desejo.

No caso de Poema do futuro cidadão, são apenas dezenove versos divididos em quatro estrofes e que giram em torno de três ideias principais: uma pessoa qualquer que, no presente, ama um país/nação do futuro, formando a tríade “indivíduo/ amor/nação”. Dos dezenove, quatro versos são variações do mesmo tema (nação futura), repetindo, inclusive, a sintaxe em três deles: “de uma nação/país que ainda não existe” (versos 1, 2, 14 e 19). Outros seis versos são centrados na explicitação de uma figura, um homem anônimo que pode ter nascido em qualquer lugar, carrega sofrimento comum a outras pessoas e que, por essas características, se irmana a outras cidadãs e cidadãos de uma nação que ainda virá (versos 4, 5, 6, 13, 17 e 18). Por fim, o sentimento de amor fraterno dá o tom dos versos que restam (7, 8, 9, 10, 11, 12, 15 e 16).

Entre o indivíduo, o amor e a pátria figura um som característico da língua portuguesa que, após ser instrumento de dominação colonial, passa ao status de espólio de guerra e unifica essas três categorias por meio da aproximação sonora dos termos cidadão/nação/não/irmão/ mãos/coração/são. Como em História para ninar Cassul-Buanga, o futuro se apresenta e é pela via do amor que ele se concretizará, apesar do presente opressivo. Se concretizará porque há um passado e um presente de resistência e porque o Rei Zumbi (Zâmbi) disse. O futuro será bonito para meninas e meninos como é para o menino Cassul-Buanga e também será para pessoas comuns de Moçambique, para negras e negros em África, no Brasil e no mundo.

O futuro será bonito porque canções e poemas cantam por isso. Será de paz porque é para isso que se luta. Será de amor porque os poetas disseram e, portanto, está escrito.

 

Sobre a autora

Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, editora independente, mestra e doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa e Pós Doutora em Literatura e Sociedade pela Universidade de São Paulo.


Referências

BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Tradução de Nélio Schneider. EDUERJ: Rio de Janeiro, Contraponto, 2005, v.1.

CRAVEIRINHA, José. Obra Poética. Direccao de Cultura Universidade Eduardo Mondlane: Maputo, 2002.

CRAVEIRINHA, Josá. “Poema do futuro cidadão”. Disponível em: <http://debatesedevaneios.blogspot.com/2011/02/poema-do-futuro-cidadao.html>. Acesso em: 19 nov. 2022. MOTA, Maria Nilda de C. João Cabral de Melo Neto e José Craveirinha: Literatura contra a Desumanização. 2017. 162f. Tese (Doutorado) – Curso de Letras, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-10052018-105858/publico/2017_MariaNildaDeCarvalhoMota_VOrig.pdf>. Acesso em: 30 set. 2022

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