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Entrevista: Estela Renner

Entrevista: Estela Renner

Documentário potência e mobilização

Documentário potência e mobilização

texto - Esdras Soares e Tereza Ruiz

07 de agosto de 2023

Tempo de mudança

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Esdras Soares e Tereza Ruiz

Estela Renner, cineasta e sócia fundadora da Maria Farinha Filmes, reflete sobre as motivações que inspiram os filmes da produtora e afirma a capacidade de transformação do documentário.

 

■ Como surgiu a Maria Farinha Filmes e por que a opção por trabalhar com temas de interesse público e relevância social? Esse propósito está presente desde a origem da produtora?

A Maria Farinha Filmes nasceu em 2008, a partir de um desejo de Ana Lúcia Villela, presidente do Instituto Alana, que existe há vinte anos, mas, há dez, tinha um projeto, o “Criança e Consumo”, sobre os males da publicidade para a criança. Ana Lúcia percebeu que precisava de uma ferramenta audiovisual para poder comunicar essa causa, pois ainda era vago falar de criança e consumo, as pessoas não compreendiam o tamanho do problema que era um anunciante falar diretamente com uma criança. Então, ela me chamou para fazer um documentário, o Criança, a Alma do Negócio, e com isso a Maria Farinha nasceu. Esse filme foi muito importante para o Alana, é uma ferramenta de sensibilização até hoje, usada muitas vezes por juízes que ainda assistem ao filme para a resolução de processos. Assim, resolvemos fazer uma produtora que só fizesse filmes que ajudassem na transformação ambiental e social, e o nosso volume de trabalho começou a aumentar, porque começamos a fazer filmes também para outras fundações que têm um trabalho tão sério quanto o Alana: Cenpec, Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Bernard Van Leer, Unicef, e tantas outras. Acho que muitas delas já entenderam que o audiovisual proporciona escala para suas causas, mas ele não oferece só escala, ele sensibiliza. E quando a pessoa é movida pelo coração, ela age não enquanto instituição, mas como ser humano. A Maria Farinha nunca trabalha apenas com o produto audiovisual em si, mas como essa ferramenta vai impactar a sociedade.

■ Por que a escolha pelo documentário? Qual é o potencial desse gênero para trabalhar os temas que vocês elegem?

Não temos esse recorte de fazer só documentários, mas acho que fizemos os primeiros documentários por um desejo do Alana, porque no documentário você reúne grandes especialistas que estão há décadas trabalhando um assunto, e ficam fechados em suas revistas científicas. Eles escrevem para a Nature, eles escrevem para a Science, cujo linguajar é compreensível entre eles e não para a maioria das pessoas. Tem uma história sobre a primeira infância, de quando fiz O Começo da Vida: estava entrevistando o James Heckman, que é Nobel de Economia, e ele começou a falar desse investimento na primeira infância, que diminui a desigualdade social, faz com que a alfabetização fique muito mais tranquila, a saúde da criança melhore no futuro. Foi aí que caiu a ficha e falei: “Você está falando de amor?”. Ele falou: “Estou. Estou falando de amor”. Então acho que um dos trabalhos do documentarista é traduzir essa linguagem, que é tão familiar aos acadêmicos, mas para o grande público não é tão simples assim. O documentário reúne, como se a gente colocasse na mesma sala, dados de pesquisa, infográfico e frases inspiracionais, além de pessoas que estão espalhadas pelo mundo inteiro, grandes especialistas, poetas, músicos. Ele consegue viajar para outros espaços e trazer outras realidades para as pessoas que não têm meios de conhecer essas outras realidades. E quantas pessoas não gostariam de ter conhecido as pessoas que eu conheci na China, na Índia, no Quênia, e de repente eles estão ali na sua sala. É uma ferramenta de empatia maravilhosa, poder sentir que você, por aquele momento, está ali junto com aquela pessoa.

■ Como vocês selecionam os temas sobre os quais desejam falar?

Os nossos primeiros grandes temas estavam sempre relacionados às crianças, porque trabalhamos em parceria com o Instituto Alana. Fizemos muitos filmes, em Território do Brincar, Renata Meirelles e David Reeks viajaram dois anos pelo Brasil, pesquisando o brincar e trazendo o quanto ele existe e oferece base para uma criança ser autônoma, ser curiosa, criar hipóteses, se comunicar melhor com o outro, com o próximo. Depois começamos a trabalhar com temas variados, fizemos Jovens Inventores e Nunca me Sonharam, um filme sobre Ensino Médio, dirigido pelo Cacau Rhoden; Tarja Branca, começou com a vontade de o Instituto Brincante falar: é importante brincar na vida adulta. Por que depois de um tempo parece que fica errado brincar, que só criança brinca? Por que a gente não pode levar esse espírito lúdico para as nossas vidas? Por que depende de entorpecentes para você sair desse lugar-comum? Quando deixo meu filho brincar, estou fazendo o certo. Brincar não é uma coisa menor. Muitas pessoas já chegaram aqui na Maria Farinha falando: “Tarja Branca mudou minha vida. Tive que questionar tudo que fiz até hoje, por isso que mudei de profissão”. Ele faz com que o adulto busque um questionamento profundo.

■ Definido o tema, como vocês começam a trabalhar nele? Como é esse processo?

A primeira coisa realmente que fazemos é selecionar o material já pesquisado [sobre o tema]. Então nunca começamos do zero. A gente passa uns seis meses pesquisando, e cria um argumento que é basicamente um olhar novo para aquele material. O que ainda não foi dito? O que precisa de uma ferramenta audiovisual para dar escala para esse assunto? Porque alguns assuntos já foram retratados. Quando fiz O Começo da Vida, assisti a todos os filmes que já tinham sido feitos sobre a primeira infância e descobri que não precisava de nenhum filme falando sobre o desenvolvimento motor da criança. Quando descobri que nenhum filme falava sobre a importância dos primeiros relacionamentos na vida de uma criança, tive certeza que era esse o foco: o relacionamento da criança com o pai, com a mãe, com a mão, com seu espaço, com seu chão, com a natureza, com as histórias que são contadas para ela, com os abraços, com a comunidade, com a música. Se isso forma a criança, por que não estava fazendo um filme valorizando isso? E isso, descobri durante um processo longo de pesquisa, mas lógico que tive que me debruçar, porque ainda assim era um material muito extenso, para descobrir um coração ali. Qual o coração desse filme? Buscamos colocar nos nossos filmes o que ainda não foi dito e o que achamos que vai de fato abrir um horizonte, não só para a sociedade civil, como para a política pública. O Começo da Vida, por exemplo, foi usado no Estado de São Paulo e exibido para todos os juízes, conselheiros tutelares, assistentes sociais, e sabemos que isso os influencia ainda hoje nas decisões a tomar: uma vitória recente de algumas instituições que estavam há um tempo tentando tirar [da cadeia] mulheres que são mães e tiveram seus bebês enquanto estavam encarceradas. Esses filhos estavam perdendo suas mães, elas não tinham sido julgadas e poderia demorar anos ainda. A criança ia perder a primeira infância dela sem a mãe em casa, os filhos estavam indo para adoção. E as ONGs estavam todas olhando para essa questão defendendo a mulher, que é muito importante. Mas quando o Alana veio defendendo a criança, que é prioridade absoluta, segundo o Artigo 227, isso foi o pulo do gato, teve um habeas corpus coletivo e duas mil presas foram soltas e agora estão respondendo em liberdade condicional nas suas próprias casas com seus filhos. Quando fizemos Criança, a Alma do Negócio, foi com muito pouco dinheiro, filmado com uma camerazinha supersimples, uma equipe superpequena, mas ele fez diferença, inclusive gerou o tema do Enem em 2014, milhões de jovens escreveram sobre criança e consumo. Enfim, não existe audiovisual pequeno, existe verdade grande.

■ E depois da pesquisa, quais são os próximos passos?

Os próximos passos são um trabalho de criação, de escolha de elementos narrativos. Eu tenho uma nuvem de temas com os quais quero trabalhar: puerpério, depressão pós- -parto, amamentação, aprendizado, brincar, vulnerabilidade, alimentação. A partir daí a escolha do diretor é entender através de que elementos narrativos que essa história vai ser mais bem contada. E isso varia de diretor para diretor, de pessoa para pessoa. No meu caso, em O Começo da Vida, escolhi falar com especialistas, famílias, debates entre pessoas. 

Agora, tem outro filme que fiz ano passado, Repense o Elogio, que escolhi fazer projeções nas ruas; coloquei um grupo de jovens conversando, não eram especialistas, não tinha nenhum especialista no filme. A partir do coletivo de jovens e das frases que iam surgindo do conhecimento que eles iam produzindo juntos, eu fazia projeções noturnas em espaços públicos querendo dizer: “Olha, está aqui, esse conhecimento vem desse lugar, vem desse jovem”. Porque tem um empoderamento importante do jovem que está falando e que tem de ser escutado. Esses elementos narrativos variam um pouco, podem ser recursos gráficos, animação, entrevista com especialistas, entrevista de rua, coletivas, nas quais pessoas debatem, ou fazem reconstituições. Tem pessoas que falam: “Olha, eu não estava lá para filmar quando isso aconteceu, mas eu vou reconstituir de alguma forma”. Como? Através de uma animação, ou através de uma reconstituição com atores. Gostei muito de ter feito Repense o Elogio, falar sobre a importância da palavra na infância, as palavras que são ditas para você, focando nos elogios. As meninas são muito mais elogiadas de bonitas, delicadas, princesas, e os meninos de fortes, inteligentes e corajosos, e isso tem uma ressonância para o resto da vida. Não dá para separar palavra de comportamento, então ser bonita significa também se comportar como bonita e ficar bonita para alguém. Para quem? Para o forte, para o corajoso e para o inteligente, que é o homem. As palavras vão te rotulando e modulando. O filme fala um pouco sobre isso: vamos tentar elogiar com uma gama maior de elogios, chamar os meninos de bonitos, belos e delicados. Qual o problema de um menino ser delicado? Não é bonito que uma menina seja inteligente e corajosa? E daí vem a escolha dos personagens, eu queria muito mostrar como a palavra viajava e permanecia. Então para mim era muito importante escolher uma palavra que começasse com uma criança, passasse por um adolescente, por um jovem, por um adulto, e terminasse num idoso.

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Buscamos colocar nos nossos filmes o que ainda não foi dito e o que achamos que vai de fato abrir um horizonte, não só para a sociedade civil, como para a política pública.

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■ Como vocês definem a estrutura do documentário? Há um planejamento?

Temos uma estrutura prévia que acontece durante a pré-produção e a escrita do roteiro. Eu vou dar dois exemplos: em O Começo da Vida, sabia que queria fazer um filme sobre relacionamentos, então fiz a ordem cronológica que a criança se abre para os relacionamentos. Primeiro, é ela com ela mesma, com o seu corpo, seu brincar, seu chão; depois com mãe e pai, avô e avó; depois com a escola; depois com a comunidade; e depois tem um terceiro ato que é complicado, que é: o que acontece quando nada disso é dado a ela? Cadê essa comunidade? Cadê esse vizinho, essa tia, esse pai, essa mãe? O mais óbvio seria: nascimento, um ano, dois anos, três anos, mas isso já foi feito, e muito bem feito, por muitas pessoas, nós não precisávamos fazer mais um filme sobre isso. Em Muito Além do Peso, o roteiro tinha uma preocupação maior com a força que eu ia dar para cada fator que faz com que uma criança tenha obesidade e sobrepreso. Quanto tempo vou dar para a composição de produto? Quanto tempo vou dar para o sedentarismo? Quanto tempo vou dar para a genética dos pais? Quanto tempo vou dar para a publicidade da criança, de telas? Era uma balança de temas e quanto tempo eu ia dar para cada um para que ficasse justo e não tendencioso. O roteiro do documentário é bem diferente do roteiro de ficção, é mais solto, ele acontece sendo. Se você está fazendo um filme, é porque você tem uma verdade, uma voz, ou porque você está fazendo uma investigação e vai descobrir as respostas durante o processo, ou é uma combinação dos dois. Então esse primeiro roteiro de documentário é abrangente e traz todos os temas que você quer trabalhar e muito provavelmente qual o olhar que você tem para isso, mas de repente você quer colocar esse tema em debate, então você vai trazer opiniões contrárias, para que o espectador tenha ferramentas para ele mesmo refletir sobre qual resposta daria para aquilo. O roteiro de ficção é muito mais fechado; quando você filma uma ficção, os diálogos estão escritos.

Você tem que pensar o que quer mostrar: quer realmente se aproveitar do ordinário, ou vai mostrar o extraordinário que tem na vida daquela pessoa?

No documentário, eles vão acontecendo, tem ali um ponto de partida, mas eles não têm um fim. E têm [também] uma pré-concepção das imagens, por exemplo, queria muito filmar no Zoológico de São Paulo, eu nem sei quantas pessoas sacaram isso, mas queria mostrar que só tinha animais comendo coisas verdes no zoológico. A gente estava dentro de uma cadeia alimentar na qual as crianças todas estavam comendo salgadinho, refrigerante, bebidas açucaradas e alimentos ultraprocessados, industrializados, e só os animais estavam comendo coisas verdes. Muito Além do Peso nasceu da imagem da barca da Nestlé, uma barca toda adesivada, incrível, maravilhosa, entrando na Amazônia, vendendo leite Ninho e falando que o leite daquelas mães de repente não era forte. Já existia uma campanha muito forte falando que o leite materno não é bom o suficiente. Hoje em dia isso é superproibido, não acontece mais, mas essa barca na época estava acontecendo. O filme nasceu dessa imagem, que não foi uma imagem simples de conseguir e é muito icônica.

■ Pensando na relação do indivíduo com o território, como vocês escolhem retratar o lugar?

Precisamos ter muita responsabilidade quando abrimos uma câmera e entendemos o que ela está filmando, porque todo elemento é semiótico, vai entrar na cabeça da pessoa de alguma forma e é uma oportunidade de dizer alguma coisa. Quando entrevistamos uma pessoa, por exemplo, numa comunidade, é uma escolha: você pode mostrar um grande lixo atrás, ou você pode mostrar o ambiente que ela de fato mora, que é organizado, uma casa simples. Você tem que pensar o que quer mostrar: quer realmente se aproveitar do ordinário, ou vai mostrar o extraordinário que tem na vida daquela pessoa? As pessoas se aproveitam demais da miséria alheia, porque sabem que isso dá audiência. Nunca fazemos isso, porque, primeiro não é verdade, as pessoas são todas muito extraordinárias, dentro de qualquer ambiente, então a gente busca trazer o que é de inspiracional para os nossos filmes. Acreditamos que não é a partir do feio e do desesperançoso que vamos construir um mundo melhor, é o contrário. Inclusive, me preocupa demais tantos filmes que mostram um futuro cinza, distópico, com o pior do ser humano e o melhor da tecnologia. Se continuarmos lançando essas imagens no nosso coletivo, talvez a gente vá chegar a esse futuro horroroso, porque estamos juntos sonhando com isso. Eu acredito muito no belo, acho que o belo tem uma força incomensurável. E acho que os nossos filmes têm uma grande beleza.

Para saber mais, Estela Renner indica:

Videocamp
Plataforma que reúne e disponibiliza gratuitamente filmes que transformam.

Política Modo de Usar
Programa televisivo que aborda iniciativas inovadoras na prática política na América Latina.

Criativos da Escola
Projeto que incentiva propostas criativas para transformação social, elaboradas por estudantes e educadores.

Believe.Earth
Movimento que reúne histórias inspiradoras sobre os mais diferentes temas.

Vimeo
Plataforma de vídeos com produções dos mais diferentes gêneros, onde é possível encontrar bons documentários para ampliar o repertório.

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