Paralelo 11: Do cocar vermelho ao pé de jatobá

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Karoline Vitória de Souza


A estudante rondoniense Karoline Vitória foi uma das quatro vencedoras da 6a edição da Olimpíada de Língua Portuguesa, na categoria Memórias literárias. No texto a seguir, a jovem escritora traz cenas de um evento trágico ocorrido na década de 1960 em sua região: o atentado contra o povo indígena Cinta-Larga. Para isso, ela se baseou na entrevista realizada com o indígena Anemã Irun, de 50 anos.

Reunidos, sentados sobre a terra, eu e meus sete irmãos ouvíamos as histórias de Pangunsukup, um velho cinta-larga. Eram histórias que faziam nossos olhos brilharem, tão grande era a criatividade de meu pai. Eu era apenas uma criança e dormia sempre com a imaginação povoada das cenas ouvidas. Anemã é meu nome, que, de acordo com a minha origem, significa “o sonhador”.

O lugar era incrível. Na floresta densa e fechada, o Aripuanã servia seu povo com abundância de peixes e o refrescava nos banhos diários, além de ser o principal meio de transporte para juntar as tribos próximas. Papai um dia me contou da Festa do Porcão, que era realizada para celebrar o plantio do milho. Nossos vizinhos Suruís, Zorós e Apurinãs seguiam em canoas pelo rio, eram famílias inteiras, dos mais velhos aos bebês pendurados nos “angujap”. Havia brincadeiras para todas as idades, desde o cabo de guerra até a caçada mais ligeira do porcão. No fim do dia, era a hora de agradecer pelo plantio, mas apenas os adultos participavam, as crianças eram levadas às malocas para dormir. Era uma festa regada a chicha.

Nessa história, meu pai dizia que já era quase dia quando os adultos começaram a seguir rumo às suas aldeias, porém, ainda sob efeito da bebida, começaram um ritual de agradecimento.

Logo que percebeu o silêncio do lugar, meu pai levantou-se cuidadosamente e espantou- se com a quantidade de cinzas ao chão. Apenas cinzas e o cocar vermelho e, a pouca distância dele, a lâmina ensanguentada. Acima dela, o corpo da índia. Estava tudo muito confuso… A resposta veio logo em seguida, quando ao olhar novamente para o rio, dois casais de índios caminhavam em sua direção. Não se tratava de nenhuma alucinação. A chicha os salvou.

Hoje sei que essa história é conhecida como o “Massacre do Paralelo 11”, ocorrido na década de sessenta, em uma manhã de pavor. Foram os garimpeiros os invasores da aldeia, no início pelo ar, pois achavam que suas moscas grandes ao lançarem açúcares envenenados e roupas com o vírus da gripe iriam acabar com a minha gente. Não conseguiram. Invadiram pelo chão.

Acharam que acabando com nossos antepassados, tomariam conta de nossas terras e retirariam de lá todo o ouro e diamante. Pensaram eles que teriam nossas riquezas, mas nosso amigo Aripuanã nos salvou. Atualmente, meu povo mora numa reserva de nome Roosevelt, local que continua a juntar nossos vizinhos que ainda realizam celebrações para relembrar a importância daquele rio para a história do povo cinta-larga. Agora, adulto, sei que não eram histórias inventadas e a única coisa imaginária que ainda restou daquele tempo é a linha que corta o lugar onde eu nasci.

Texto baseado na entrevista realizada com Anemã Irun Cinta-Larga, de 50 anos


Professor Alan Francisco Gonçalves Souza

EEEF Jerris Adriani Turatti, Espigão do Oeste-RO

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