O que pode a Literatura? – Uma reflexão sobre a leitura literária na Penitenciária Feminina da Capital

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Fernanda Mendes Soares Barreiros Graduada em Letras pela Universidade de São Paulo e mestranda no Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa também pela USP. Desde 2018, realiza rodas de leitura com as leitoras da Penitenciária Feminina da Capital (PFC - SP).


Quando pensamos a prática da leitura no sistema prisional, os números apresentados impressionam se comparados aos da população livre: uma pesquisa realizada em 20121 pela Universidade de Brasília (UnB) estima que pessoas privadas de liberdade no Distrito Federal lêem até dez vezes mais que o brasileiro livre, que é leitor em média de quatro livros por ano. O acesso aos livros nas penitenciárias, no entanto, é muitas vezes escasso, assim como nos espaços extramuros, retrato não apenas da fragilidade do processo de formação de leitores do país como também da ausência de políticas públicas que promovam e efetivem o direito à cultura.

Desde 2013, a prática da leitura – na condição de atividade educacional complementar – passou a contar como fator para diminuir o tempo da condenação de pessoas julgadas. A remição de pena por leitura permite à pessoa em privação de liberdade ler um livro num prazo determinado de 21 a 30 dias e produzir uma resenha sobre a obra lida. Essa resenha será avaliada por uma comissão e, se aprovada, encaminhada para a vara criminal que acompanha o processo do leitor ou leitora em questão. Cada resenha escrita, quando deferida pelo juiz, reduz 4 dias do período total de condenação. A lei prevê a leitura – para fins de remição – de no máximo 12 livros por ano, podendo a pessoa presa reduzir até 48 dias de sua pena neste período.

Foi seguindo essa recomendação que o Travessia – grupo formado por estudantes de graduação e pós-graduação da Universidade de São Paulo (USP) e coordenado pela professora doutora Vima Lia de Rossi Martin – realizou, no período de março de 2018 até dezembro de 2019, encontros na Penitenciária Feminina da Capital (PFC) nos quais organizava rodas de leitura com mulheres privadas de liberdade. Esta relação entre a universidade e a PFC se deu através de um acordo de cooperação técnica e estabeleceu que o grupo ficaria responsável pelo desenvolvimento de oficinas de leitura e escrita, bem como pela avaliação das resenhas elaboradas pelas participantes antes destas serem encaminhadas para as respectivas varas criminais.

O Travessia, durante o tempo de atuação na PFC, buscou consolidar o direito dessas mulheres à remição de pena por leitura em um trabalho marcado por uma forte experiência de reflexão sobre o ser humano. Isso porque para além da leitura de um livro por mês e da escrita de uma resenha, o grupo construiu em conjunto com as mulheres ali custodiadas um espaço de trocas e afeto, partilha e criação das mais diversas estórias.

É importante lembrar que este trabalho desenvolvido na Penitenciária Feminina da Capital foi atravessado pelo contexto perverso do encarceramento massivo e seletivo praticado pela justiça criminal brasileira. Em linhas gerais, a população preta e parda é a mais afetada pelas políticas de aprisionamento: representam 61,67% contra 37,22% de brancos. Sobre a escolaridade, temos que mais de 75% das pessoas presas possuem até o Ensino Fundamental completo, e 6% do total são analfabetos2.

No entanto, foi diante de um cenário bastante desfavorável que o Travessia presenciou as articulações ocorridas em torno da literatura: a leitura e as partilhas, por exemplo, transcenderam espaço do projeto e foram compartilhadas por nossas leitoras com as suas companheiras de cárcere em encontros por elas mediados quando não estávamos presentes, formando uma rede potente fundamentada no poder de reconhecimento por meio da arte literária.

Enquanto mediadora de leitura de um projeto realizado dentro do sistema prisional, e isso significa dizer, dentro de um ambiente onde as mulheres custodiadas são constantemente subjugadas em suas capacidades e destituídas de suas experiências e subjetividades (espaço esse que muitas vezes se assemelha à própria escola em seus mecanismos de disciplinarização), penso que o papel a ser desempenhado ali para auxiliar na construção dos alicerces de uma comunidade leitora foi o de conceber um espaço que fosse outro, ou seja, o oposto daquele em que nos encontrávamos de fato. E a concepção desse outro espaço passou necessariamente pela desconstrução das relações de silenciamento e invisibilização, comumente estabelecidas no ambiente prisional, recorrendo, muitas vezes, a estratégias relativamente muito simples que envolviam, por exemplo, trabalhar em roda – para que todas nós pudéssemos nos olhar de igual para igual –, estimular a partilha da palavra, a escuta ativa, e o reconhecimento umas das outras enquanto sujeitos de nossas trajetórias. Através de ações simbólicas de oferta da liberdade de escolha, perguntando, por exemplo, “em qual sala do pavilhão escolar iremos fazer as rodas hoje?”, “qual livro você quer ler primeiro?”, “qual é a cor da pasta de papel que você prefere?”, contradizemos a etiqueta de conduta no ambiente prisional e instituímos o diálogo como prática essencial de nossos encontros.

A construção desse novo território partiu, por um lado, das perspectivas de Paulo Freire sobre os círculos de cultura enquanto prática educativa. A formação desse círculo pressupõe a participação livre e crítica de educandas e educandos, bem como um trabalho comum de conquista da linguagem.

Também recorremos às reflexões de bell hooks, buscando colocar em exercício uma pedagogia radical que insiste no reconhecimento da presença de todos para a edificação de um espaço comunitário de troca e de aprendizagem, levando sempre em conta que o movimento de elaboração desse espaço é um esforço coletivo, e não apenas de educadoras e educadores.

Confiamos, ainda, na dimensão reparadora da arte narrativa que, nas palavras de Michèle Pettit, se manifesta “no fato de que a leitura convoca uma atividade de simbolização, de pensamento, de narração de sua própria história entre as linhas lidas, uma costura de episódios vividos de maneira fragmentada” (PETIT, 2009, p.83).

Nos momentos de escrita das resenhas, os intercâmbios entre mediadoras e mediadores e as leitoras se davam de forma mais intensa no campo linguístico para possibilitar a composição de textos que atendessem aos critérios de “estética, limitação ao tema, clareza/compreensão e fidedignidade”, exigidos pelos dispositivos legais que regulamentam a remição de pena por leitura.

As trocas ocorridas no decorrer dos encontros de acompanhamento dos processos de escrita eram igualmente valorosas àquelas que vivenciávamos durante as rodas de leituras literárias, pois ficava evidente o exercício de criação de uma escritura atravessada pelas experiências individuais de cada uma delas. As leitoras, que agora experimentavam uma posição de autoria, procuravam responder em seus textos às tramas estabelecidas pelas relações sociais representadas nos pólos opostos de autoras – “mulheres encarceradas” – e destinatário – “o juiz”, valendo-se, por exemplo, de discursos críticos já estabelecido e avalizado pela literatura para dar voz às próprias opiniões e visões de mundo sem correrem o risco de serem condenadas novamente pelas instâncias julgadoras por onde seus textos supostamente circularão.

Em um espaço onde papel e caneta são objetos escassos e, portanto, muito valorizados, assistimos a palavra transitar em rascunhos, bilhetes e resenhas. Elas são criadas dentro de um universo habitado por diversas linguagens e nascenças, e estão presentes nas cartas para os familiares, nas petições endereçadas aos magistrados ou em sacos de pão que se transformam em suporte para algum devaneio. A possibilidade de elaboração dessas palavras assegura a essas mulheres a sobrevivência de uma necessidade profunda: o direito de fabular realidades para além dos muros.

A literatura se constituiu como matéria primordial que alimentou a nossa passagem pela Penitenciária Feminina da Capital. Por intermédio de personagens, tempos ficcionais e fios narrativos estabelecemos uma ponte de comunicação e expressão. Testemunhamos, desta forma, como o espaço do cárcere mediado pela literatura tornou possível a existência de pequenos momentos de resistência frente à desumanização promovida pelo sistema prisional. Por fim, vivenciamos na prática que não há humanidade possível sem o universo ficcional.


1- A pesquisa pode ser consultada em https://www.conjur.com.br/2013-abr-07/70-presos-distrito-federal-leem-dois-livros-mes

2- Estes são os dados sobre o perfil da população prisional brasileira segundo o InfoPen de 2019.

Bibliografia:

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

PETIT, M. A arte de ler ou como resistir à adversidade. São Paulo: Editora 34, 2009.

8 thoughts on “O que pode a Literatura? – Uma reflexão sobre a leitura literária na Penitenciária Feminina da Capital

  1. Me senti profundamente representada nesse trabalho literário com as mulheres privadas de liberdade. Desenvolvo um projeto literário desde 2012 e meu maior desejo é vê-lo coordenado para homens privados de liberdade. Parabéns, Fernanda Mendes!

  2. Gostei muito de ver essa iniciativa. Farei com alunos para aprimorar a leitura (projeto leitura) para levarem para casa pequenos textos para que leiam na sala para todos e ainda poderemos definir o quantitativo de textos por dias. Depois faremos classificação entre eles qual teve melhora na leitura durante esse período. Como recompensa daremos mimos como forma de parabenizar o seu desempenho. Caso tenha uma dica para me enviar sobre o que irei fazer, agradeço de coração.

  3. Excelente projeto! Como seria bom que as escolas praticassem durante o ano letivo projetos diversificados de leitura, instigando crianças e jovens ler por prazer. Com concursos de leituras, nos diversos gêneros textuais. Parabéns pela bela iniciativa.

  4. O incentivo pela leitura se faz urgente, porém hoje estamos diante de um discurso limitado. Há necessidade do acesso à leitura via meio tecnológicos. Acredito que vamos fazer essa transição, embora lenta, mas em breve. Parabéns por compartilhar brilhante trabalho!!!

  5. Muito interessante esse conteúdo e artigo.
    Mais interessante ainda é entrando no site proposto, encontrar os dados em gráfico da quantidade de livros e quais livros foram mais lidos por cada tipo de crime cometido. Se observarmos, analisarmos, os tipos de livros, o conteúdo de livros, o tipo de crime cometido, dá para ter uma grande reflexão, psicológica.
    A leitura além de libertar, ela revela a mente humana.

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