Masculinidades na literatura e no contexto escolar: proposta de abordagem

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José Victor Nunes Mariano é bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e mestrando na área de Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa, pela mesma instituição, com bolsa CAPES de fomento.


O termo masculinidades vira e mexe tem aparecido trazendo muita discussão. Entretanto, apesar da recorrência, pouco sabemos sobre o tema. Afinal, do que se trata os estudos das masculinidades? Como essa temática pode ser abordada em sala de aula?

O conceito, conforme o utilizamos hoje, aparece de forma sistemática nos estudos de gênero posteriores às décadas de 1960, a partir do movimento feminista norte-americano. As autoras que começavam a escrever sobre o assunto na virada dos anos 1960 para 1970 viam-se em um entrave conceitual: se as relações de poder construídas entre homens e mulheres organizam a ordem de gênero da sociedade, como podemos analisar as diferentes práticas masculinas nessas complexas dinâmicas sociais? 

Apesar de ser tentadora a utilização do famoso jargão “todos os homens são iguais”, a expressão é, no mínimo, incorreta. Tentadora, pois de fato existe uma série de práticas sociais que colocam homens em um determinado espaço de poder, coletivo e legitimado; incorreto, pois não podemos afirmar que todos os indivíduos que se identificam como homens agem, pensam e sentem de formas iguais. 

Ficou difícil de entender? Vamos pensar de forma prática então: você, professora e professor, com certeza tem contato com diferentes homens diariamente em sua vida. E eles muito provavelmente agem, gesticulam, vestem-se e conversam de formas totalmente diferentes entre si. Para aqueles que estão fora do modelo social, muitas vezes são relegados nomes da pior estirpe - afeminado, frescurento e tantos outros insultos homofóbicos - que só reforçam uma coisa: o não pertencimento de um sujeito aos modelos e padronizações sociais do universo masculino.

Chegamos, então,  ao principal ponto teórico do conceito de masculinidade: trata-se, essencialmente, de práticas sociais que se vinculam à legitimação ou não de sujeitos às ordens de poder da sociedade. As relações de poder que sistematizam as opressões da ordem de gênero só ocorrem porque existem práticas sociais, historicamente e culturalmente constituídas, próprias do universo masculino.

Ainda ficou difícil? Tenho outro caso, também em contexto escolar, retirado de minha vivência quando estava no Ensino Fundamental. Um aluno chamado Rafinha tinha todas as características do famoso “aluno desajustado”. Lembro de uma vez em que o professor tentou retirá-lo da sala para encaminhá-lo à diretoria. Rafinha então jogou uma cadeira e uma mesa no chão, olhou fundo para o professor e começou a insultá-lo.

Rafinha assumiu uma prática masculina de violência e enfrentamento às ordens com o objetivo de ocupar uma posição de domínio na instância de poder da sala de aula. Gritou e exaltou-se assumindo um papel social que o colocou, minimamente, como um sujeito atrelado ao universo masculino. O que está em questão, aqui, é o privilégio de escolher sair ou não da sala de aula pelo uso da força – força esta relacionada ao uso sistemático de gestos e falas corporais que instauram posições de poder .

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É muito importante perceber que o poder masculino, em qualquer espaço social, não se vincula somente à dominação masculina do universo feminino. O poder na ordem do gênero é constituído tanto pelas relações de poder masculino para com as mulheres, quanto das figuras masculinas para com as próprias figuras masculinas.

Os exemplos são infinitos e se fizermos um pequeno exercício de reflexão, encontraremos muitos mais. No entanto, acredito que conseguimos até agora desvendar minimamente o conceito de masculinidade a partir das práticas sociais construídas historicamente e culturalmente. Mas as professoras e os professores de português devem estar se perguntando: e onde entra a literatura nessa bagunça toda?

 

As relações de poder na literatura

O romance Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, narra, em terceira pessoa, a história de uma família de retirantes, tentando sobreviver e fugir da extrema pobreza trazida pela desigualdade social e pela crise climática do sertão nordestino. Fabiano, sua esposa Sinhá Vitória, seus filhos e sua cachorra Baleia são expostos às mais diversas violências – desde a fome até a violência policial.

Vocês já pararam para pensar nessa obra por um prisma que privilegie os estudos de gênero e o dado social da masculinidade? A obra apresenta elementos e conflitos da ordem do universo da masculinidade, ou seja, das práticas sociais próprias do universo masculino que modelam e alteram as relações de poder entre indivíduos na sociedade. 

Já temos um caminho para o trabalho com as(os) estudantes! É essencial mostrar para a sua turma que as relações de poder da ordem do gênero estão em todos os lugares, e que elas moldam o mundo social. É impossível falarmos de relações humanas, crises pessoais, conflitos entre sujeitos, sem falarmos necessariamente das relações de poder entre homens. Sabemos que a masculinidade se move por alguns eixos básicos já explicitados e, neste caso, é cabível e desejável um acompanhamento literário com estudantes para que identifiquem, mapeiem e problematizem esses eixos no próprio processo pedagógico.

 

Homossociabilidade e as relações entre os homens pela obtenção simbólica do poder

Homens podem entrar em relações diretas entre si, sejam de conflito ou de ajuda mútua, para estabelecerem posições na ordem do gênero. Nas práticas sociais escolares, isso é visto com muita frequência: ora aquele aluno que se junta com outro para tirar sarro de um terceiro, ora aquele outro que, por uma série de diferentes motivações, utiliza a força física para estabelecer sua posição. O que está em jogo, no final das contas, são as práticas sociais de concordância ou conflito entre homens como forma de aquisição de espaços de poder no mundo. 

Vocês, professoras e professores, podem propor para a turma, como sugestão, uma leitura da obra que identifique e nomeie essas relações de poder. Acredito ser muito positivo olharmos exatamente para o protagonista masculino da história: o próprio Fabiano. É possível fazer uma pergunta reflexiva para alunas e alunos: quais são as figuras masculinas com quem Fabiano tem contato direto? Acredito que, logo de início, muitos falarão de primeira: o Soldado Amarelo. Ótimo, segunda pergunta a ser feita é: o conflito ou não desses personagens entre si podem gerar alguma posição de poder legitimada no romance? Será que existe a correlação entre conflito e posição social? 

Lembremos o emblemático caso do Soldado Amarelo. Fabiano entra em conflito direto com o personagem duas vezes: uma, em que Fabiano é atacado pelo soldado sob a suposta acusação de vadiagem, e outra em que Fabiano idealiza um ataque direto ao Soldado Amarelo em vingança, ao vê-lo andar pela rua sozinho. Incite sua turma: o que estava em jogo no conflito entre esses dois personagens masculinos? É evidente que, possivelmente, surgirão respostas como: “ele queria se vingar”, “ué, o soldado humilhou Fabiano!”, “Fabiano queria defender sua honra”. No entanto, professora e professor, é necessário trazer para a leitura coletiva o dado da masculinidade e do poder masculino pois um fato é incontornável: essas relações constituem-se no universo da masculinidade e das práticas masculinas, portanto é impossível deslocarmo-nos das relações de poder da ordem do gênero.

 

A incomunicabilidade masculina

Você já percebeu que a família de Fabiano comunica-se de forma extremamente violenta e lacunar? Assim sendo, que tal analisarmos a incomunicabilidade frente aos debates críticos da masculinidade?

Primeiramente, vocês devem incitar alunas e alunos a analisar os processos de silenciamentos de sensações e sentimentos do universo masculino. Para isso, fazer a turma refletir um pouco sobre como os homens expressam seus sentimentos pode ser um bom início. O essencial é demonstrar às(aos) estudantes como a sociedade pressupõe que sujeitos masculinos não demonstram muitas vezes suas fraquezas sentimentais. Quem nunca ouviu o famoso “homem não sente dor” ou o “homem não chora''? As consequências desse processo violento de silenciamento do sujeito é muito bem encontrado também na obra Vidas Secas, sendo passível de análise e interpretação junto com sua turma de estudantes. 

Durante todo o romance, percebemos as sensações e sentimentos de Fabiano através do discurso indireto livre. Esse recurso é essencial para que identifiquemos o universo particular e subjetivo de Fabiano, seu campo de sensações e angústias. Porém trata-se também do eixo que estabelece uma comunicação entre nós, leitoras e leitores, e o universo masculino de Fabiano – este marcado pela incomunicabilidade, pela violência e pelo silenciamento.

É possível também colocar em pauta e utilizar como exemplo casos da vida real. Pergunte aos alunos se já existiu algum momento em que sentiram algo e que não expressaram. Pergunte também se eles têm amigos e conhecidos que dizem pouco sobre seus sentimentos. O importante é mostrar a eles que os romances podem sim expressar e reproduzir sensações e sentimentos humanos, mesmo que esses sentimentos sejam baseados no silêncio e na dor. Se a falta de comunicação para expressar os sentimentos é uma das características das formas masculinas hegemônicas, com certeza o exemplo de Fabiano servirá como gancho para fazermos, novamente, uma análise das posições de poder masculinas da sociedade.

 

Onde estão as figuras femininas

Para educadoras e educadores que buscam refletir sobre o elemento da masculinidade em obras literárias é de suma importância que olhe atentamente para as formas como o poder social masculino desenvolve-se pelo controle e domínio sobre o corpo feminino no mundo.

Na obra Vidas Secas, devemos olhar atentamente para uma das únicas personagens femininas do romance: Sinhá Vitória. Trata-se de uma personagem estruturada em uma ordem patriarcal: é a mãe de dois filhos que lida, diariamente, com as tarefas vinculadas ao universo feminino. Além disso, vê-se constantemente sob o julgamento e as vontades maiores de Fabiano – lembremos, por exemplo, do capítulo centrado na figura de Sinhá Vitória em que, mais de uma vez, a personagem coloca que suas vontades de ter, por exemplo, um novo móvel para casa. No entanto, essa vontade passa, necessariamente, pela vontade do próprio Fabiano. Da mesma forma, ela mesma inveja o Seu Tomás da Bolandeira, por este possuir uma cama de couro – objeto este reservado ao homem que representa o modelo masculino do conhecimento na obra. 

Dessa forma, o que está em jogo em torno de Sinhá Vitória é sua importância na construção das relações de poder entre as figuras masculinas na obra. O social feminino apenas reforça e redimensiona relações já enraizadas na sociedade e que, com a ajuda da produção ficcional, problematiza o poder masculino no mundo.

Caso você queira aprofundar essa temática mais ainda com sua turma, que tal pegar um exemplo prático? Novamente, incite: quantas figuras femininas elas e eles conhecem que trabalham e servem diariamente homens? Ainda mais, quantas mulheres que elas e eles conhecem estão inteiramente ligadas a práticas de trabalho doméstico reservadas às mulheres? O link de conexão entre a vida real, a experiência própria de cada estudante e a própria experiência da personagem Sinhá Vitória é essa eterna posição em que a feminilidade é colocada a postos para ser controlada e dominada. Uma posição de servilidade que reforça as posições e hierarquias já consolidadas na sociedade. É útil à prática pedagógica perceber que essas posições de poder reforçadas no romance são compartilhadas também com a turma de estudantes. 

A masculinidade ou a feminilidade não é algo que podemos simplesmente apontar materialmente no mundo. Trata-se de atos simbólicos que, no mundo social, ganham valor e poder de controle sobre sujeitos e atos. Buscar na feminilidade uma forma de se compreender a masculinidade pode ser um gancho inicial para colocarmos em debate um assunto já estudado durante muito tempo: a posição de subalternidade da mulher na sociedade brasileira. E, novamente, Vidas Secas é um bom caminho para isso.

 

Algumas considerações finais

Busquei apresentar formas de se compreender a presença do tema masculinidades na produção literária em sala de aula. Acredito que a leitura abra caminhos não apenas para trabalhar um romance já consagrado como Vidas Secas. Essa não é a proposta deste pequeno artigo. Procuro mostrar, aqui, a urgência do tratamento das relações de poder entre homens e mulheres na escola. Para a hierarquia de gêneros ser devidamente enfrentada na sociedade, é necessário um projeto pedagógico que olhe e problematize as práticas legitimadoras dessa mesma hierarquia. A pequena sequência de exemplos é apenas uma sugestão de como tratar a leitura literária à luz dos estudos das masculinidades. Assim, espero que esse texto chegue em vocês como uma inspiração para diferentes trabalhos que tematizam a relação entre literatura e masculinidades.

 


5 thoughts on “Masculinidades na literatura e no contexto escolar: proposta de abordagem

  1. Muito interessante a abordagem sobre as diversas faces da masculinidade, embora ache que esse tema não seja para a faixa etária da minha turma, posso trabalhar vivências familiares, o poder, a atuação de cada indivíduo na sociedade, entre outros. A temática é amplamente interessante, abre vários leques para reflexões, entendimento e aceitação.

  2. É muito importante trazermos essas reflexões à luz da verdade, e falarmos sobre esse tema (masculinidade), bastante complexo em nossa sociedade contemporânea.

  3. Muito importante essa proposta, podemos trabalhar vários temas utilizando a literatura e, dessa forma, incentivar o aluno a ler. Vou colocar em prática na minha sala de aula.

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