A bomba da leitura e a leitura da bomba – arte e literatura na escola

Por Luiz Percival Leme BrittoMaria José de Oliveira Nascimento

 

A Bomba

não liquidará o homem.

O Homem

(tenho esperança) liquidará a bomba

(Carlos Drummond de Andrade)

Reescrita de “A bomba: educação artística e leitura”, texto originalmente produzido em parceria com Maria José de Oliveira Nascimento, publicado em Leitura: Teoria & Prática, ALB, ano 10, dez. 1991, n. 18.

Bomba é, num dos sentidos usuais de uso cotidiano, algo que não vale nada; mas é também palavra usada para qualificar uma situação, fato ou coisa capaz de gerar impacto.

A arte é uma bomba porque não vale nada, é resto, atividade recreativa, coisa para a qual ninguém dá muito importância. Mas é igualmente uma bomba porque traz uma carga explosiva muito forte, carga que, detonada, permite a experimentação de emoções intensas e a crítica do conhecimento.

No mundo atual, em que imperam os paradigmas de produção e consumo alienantes e que o valor se mede em função da eficiência, produtividade e competitividade, a arte se transforma em mercadoria e esvazia-se. Associada com o entretenimento, a decoração e a propaganda, a arte já não provoca nem ameaça, é distração, enfeite, monumento, sugestão de consumo. A arte agora serve ao esquecimento.

Contudo, por mais que se queira, não há como esquecer a dor e a morte. E, por isso, não há como a arte desaparecer. Ela se se faz no e do espanto do viver, perguntando como a vida seria, se outra se fosse a vida. A Arte é fabulação, produção de mais sentidos sobre os sentidos dados, expressão de um desejo de construir mundos, vidas. Ela supõe o gesto de voltar-se para dentro de si e indagar a existência e realiza-se pela contemplação e indagação descomprometida da vida, valoriza o deslocamento e o estranhamento, buscando o inusitado. Por isso tanto se aproxima do inconsciente, não importa o quanto de consciência o artista tenha no momento da produção!

Este texto propõe, por meio de um relato de uma atividade escolar realizada por uma professora de Educação Artística e outro de Língua Portuguesa, apresentar uma dimensão essencial da educação escolar e da educação para a vida.

 

A arte faz parte da gente – Educação Artística na escola

A escola é lugar de vivência e de descobertas; lugar de conhecimento e de formação de identidade.

A arte é como a vida: não está a serviço de nada de ninguém, é experiência.

A Educação Artística – um espaço de indisciplina na disciplinaridade escolar – pode ser um espaço privilegiado para vivenciar e conhecer a dor e a alegria de viver; um espaço em que cada um vê-se instigado a olhar para o mundo e para as coisas de outras maneiras além da maneira prevista, aguçando o senso de observação e forçando a imaginação. Por meio da reflexão sobre a realidade e suas representações provocada pela experiência estética, a pessoa pode desenvolver o sentido da crítica, da criação e da emoção.

Admita-se a arte como um modo de expressão e de experimentação do limite da condição humana. Nessa perspectiva – possível e necessária, ainda que fugidia –, ela não se presta apenas à socialização ou à diversão, assumindo um lugar importante na formação intelectual e emocional das pessoas; é, assim, tão importante quando o alfabetismo e a educação matemática e devia ser matéria do núcleo curricular escolar (na verdade, é margem, quando é alguma coisa). A Educação Artística levada a sério promove a emersão das subjetividades, gera o autoconhecimento, a autodescoberta, a percepção do corpo e do tempo, de suas possibilidades e constrangimentos.

Ao restabelecer a função da arte na formação, a escola vê-se obrigada a repensar o lugar e o sentido da Educação Artística, passando a compreendê-la como algo que é fim e meio ao mesmo tempo: enquanto fim, tem um objetivo específico, que é o de oportunizar ao aluno o acesso às diversas formas de expressão de arte e sua convivência com elas, com seus gêneros, estilos e contextos; enquanto meio, contribui para o desenvolvimento  intelectual e espiritual de cada um, alargando os olhares, aguçando os ouvidos, sensibilizando os tatos e, assim, aumentando a capacidade de perceber e de atuar no mundo em que está inserido.

Vale aqui reproduzir a advertência de Ana Mae Barbosa sobre como compreender o ensino da arte na escola: “Aqueles que defendem a arte na escola meramente para libertar a emoção devem lembrar que podemos aprender muito pouco sobre nossas emoções se não formos capazes de refletir sobre elas. Na educação, o subjetivo, a vida interior e a vida emocional devem progredir, mas não ao acaso. Se a arte não é tratada como um conhecimento, mas somente como um "grito da alma", não estamos oferecendo nem educação cognitiva, nem educação emocional”[1].

Nessa perspectiva, a Educação Artística toma como tema tanto as Artes (cênicas, plásticas, musicais, literárias, táteis, visuais) quanto as Ciências, a História, a Filosofia, a Linguagem... É com essa dimensão interdisciplinar que ela se percebe, se move e se faz. E assim aprendendo, o aluno tenderá a manifestar mais interesse e curiosidade pelas coisas que o cercam, mais abertura para com o novo e o desconhecido, com uma atitude de maior protagonismo.

Contudo, há que se dizer claramente que não é nem privilégio nem responsabilidade exclusiva da Educação Artística estimular o aluno a se identificar com suas próprias experiências, a conhecer os modos de expressar o sentimento, a emoção, a sensibilidade estética. A arte não é uma redoma em que se vivem as grandes emoções, ela esta no seio de vida, em toda a parte. A responsabilidade de promover a experiência estética é de toda a educação escolar. Não interessa instruir o indivíduo no Belo, interessa propor-lhe a experiência da vida por meio da arte. E para que assim seja é preciso o concurso de todos os envolvidos no processo pedagógico: professores, alunos, supervisores, funcionários, diretores... Que não vive não sente, e quem não sente não sabe da arte nem da vida!

 

A bomba da arte na escola

Para desenvolver um trabalho com arte, tem-se de identificar as bases de orientação. Sem querer definir arte, podem-se assumir certos critérios de ação e compreensão do processo. Na perspectiva que aqui se adota, os mais relevantes são:

  1. A arte implica intenção subjetiva explícita: há da parte do autor uma atitude deliberada de expressar um sentimento de mundo, o qual se materializa numa forma reconhecida como arte.
  2. A recepção da arte se faz pelo investimento subjetivo: valem aqui as palavras de Marina Colasanti para a experiência da leitura do texto literário: “O que dá valor ao livro literário é o conteúdo filosófico, a análise de mundo, o estudo da alma humana que, muitas vezes, não estão explicitados na história, mas estão por ela contidos. É a leitura do não dito. Abre-se com ela, para o leitor, a possibilidade de uma leitura individual, paralela àquela coletiva, mas conduzida por suas necessidades interiores e pelo momento que ele atravessa”[2].
  3. A arte implica singularidade e originalidade: cada obra se produz uma única vez e é única a cada vez que é fruída. As modernas técnicas de reprodução colocam questões desafiadoras para esse critério[3], mas não o anulam: um filme será sempre o mesmo filme, independentemente de quantas forem suas cópias. Singularidade está na condição de ser da obra mais que em sua materialidade.
  4. A arte se faz com trabalho: como produto social (ainda que experimentado individual de forma diferente), a arte pressupõe o conhecimento e o uso de um conjunto de regras, técnicas, movimentos e julgamentos sobre o Belo, o novo, o inusitado; elo, o novo, o inusitado; nesse sentido, uma obra de arte se define, se identifica e se percebe relativamente a um ou mais padrões estéticos.
  5. A arte compreende processos de legitimação social; isto é, um certo alguém (que não é uma pessoa) estabelece que uma certa obra é uma obra de arte. Dentre os legitimadores da arte estão os críticos, a academia, a mídia, os formadores de opinião, os colecionadores... Nessa perspectiva o valor de uma obra pode estar determinado não pro algo que lhe é intrínseco, mas pela forma com é percebido e reconhecido pela sociedade.

É com base nesses critérios que se defende a importância de investir num trabalho consistente de Educação Artística. Para fazer com que os alunos fiquem sensíveis às diferentes formas já existentes, constituídas ao longo história (critérios 1, 3 e 4) e, ao mesmo tempo desenhe sua forma de apropriação e fruição estética (critérios 2 e 5), sugerimos o contato e a experimentação com obras de arte de variados matizes, vivenciando-as, estudando-as, avançando a reflexão do fazer artístico.

Todos os modos de expressão artística participam desse movimento: as artes plásticas oferecem imagens que devolvem a gente para o mundo com outros olhos; a música permeia todo o trabalho, convidando o ouvido a perceber os sons e a fazer sons – sentir a música é deixá-la conduzir corpo em movimentos; a dança e a representação cênica disciplinam o corpo em liberdade, aguçam a sensibilidade e a expressão, proporcionando novos saberes das formas nossas e dos outros. A palavra, em sua poesia, provoca emoção e razão, devolvendo violenta ou gentilmente o leitor ao mundo.

Para que produza sua arte, o aluno, conhecendo e vivenciando os dizeres alheios (a Arte produzida pela humanidade), precisa experimentar intensa e extensamente cada situação, participando como ator e experienciador desta mesma situação; na busca da expressão, vai ler, ver, tocar, assistir, desenhar, conversar, opinar, debater, dramatizar (em qualquer ordem). [4]

Não pode aqui haver ilusão: é preciso ter a consciência do limite para fazer o quase ilimitado trabalho com a Arte na escola: dos cinco critérios acima arrolados, a Educação Artística no âmbito escolar pode dar conta com tranquilidade do primeiro e do segundo, parcialmente, do terceiro e do quinto e circunstancial e limitadamente do quarto. Isso, contudo, não descaracteriza nem diminui o trabalho da Educação Artística de oferecer aos alunos a experiência estética, fruindo e produzindo arte.

 

A bomba da leitura

A literatura, por razões históricas, impressionantemente não aparece no currículo escolar como conteúdo da Educação Artística, sendo raramente levada em consideração pelos trabalhos dessa área. E não é que ela não esteja no currículo; está, mas no conteúdo de Língua Portuguesa.

Todos perdem com isso: o texto literário reduz-se aos ditames pragmáticos da aprendizagem instrumental da escrita, as demais artes porque se transformam em forma sem palavra e são ficam relegadas a um canto esquecido da sala e da alma. A aproximação de todas as dimensões estéticas é um imperativo epistemológico e cultural, sendo impossível ensinar com propriedade uma delas sem considerar as outras. Isso significa um enorme esforço na formação pedagógica, tonando uno o que hoje é dividido.

Apresentamos a seguir um trabalho integrado de Educação Artística e Português com alunos de primeiro ano do ensino médio. O objetivo inicial estava em desenvolver com os alunos uma atividade de leitura de poesia de que participassem com seus corpos e vozes e que culminasse com a apresentação pública do trabalho; o objetivo principal não estava enunciado de início e se mostrou muito maior: a afirmações das subjetividades pela experiência estética.

Conhecer um poema, sabê-lo, tê-lo como seu, é mais que conhecer as palavras e versos, os sentidos e os ritmos... É percebê-lo com a razão e a emoção, é dizê-lo de dentro e buscando fazer tocar a alma de quem o ouve. Com essa ideia, procurávamos a leitura expressiva e a leitura dramatizada, em grupos, buscando a interpretação corporal e de voz do texto (isso depois de ter tido o domínio suficiente, ainda que não completo, do texto e de seu contexto).

Limitadas pela dinâmica escolar, as duas disciplinas corriam em paralelo. Nas aulas de Educação Artística se realizavam atividades de sensibilização corporal, percepção musical, jogos de confiança, de expressão orgânica, de equilíbrio, experimentos com máscara (maquilagem); nas aulas de Língua Portuguesa, desenvolviam-se atividades de análise e produção de texto, leituras expressivas, estudo do texto. Uma vez por semana as duas disciplinas reuniam-se fora do horário de aula (no contra-turno) para uma atividade conjunta; deste momento, participação apenas os alunos se tinham disposto a este trabalho.

Dois poemas foram selecionados pelos professores sem nenhum vínculo com os critérios de previsão de conteúdo: Trem de ferro, de Manuel Bandeira, e A Bomba, de Carlos Drummond de Andrade. Trem de Ferro, um poema vivo, gracioso, foi escolhido por ser naturalmente cantado e muito conhecido; mas, curiosamente, a reação dos alunos foi negativa, demonstraram pouco interesse e motivação: preferiam a bomba!

A escolha de A bomba teve motivação distinta: a densidade da mensagem, a força da palavra de afirmação da ética e do valor humano numa história de barbárie e dor. É um poema longo e difícil, que fala literalmente da ameaça atômica (ou, alegoricamente, da ameaça do fim da vida pela produção de máquinas de destruição). São 57 dísticos, todos iniciados por um primeiro verso sempre igual – “a bomba” – seguido por um segundo que traz um predicado da bomba, à exceção do último, que inicia com o homem e traz a esperança que a bomba será derrotada.

 

A bomba 

é uma flor de pânico apavorando os floricultores

A bomba

é o produto quintessente de um laboratório falido

A bomba

é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles

A bomba

é grotesca de tão metuenda e coça a perna

(...)

A Bomba

não liquidará o homem

O Homem

(tenho esperança) liquidará a bomba[5]

 

Apesar de ser impressionante, intenso, de alta dramaticidade, o poema não é musical ou recitável, exige muita informação de mundo e apresenta um léxico difícil, distante da fala cotidiana. Não parecia ser um poema de adolescência.

O trabalho em Língua Portuguesa tratou de enfrentar essas dificuldades, pesquisando o vocabulário, deslindando as alusões históricas, os neologismos e as metáforas; ao mesmo tempo, explorava-se a leitura expressiva, enfatizando a entoação, o ritmo, a velocidade, força enunciativa, enfim a força enunciativa do poema. Apesar de um tanto cansativo, o trabalho prosseguiu.

Em Educação Artística, explorou-se a expressão corporal, visando dar forma à imagem, preparando o que viria a ser a coreografia da apresentação. Nem todos os jovens se dispunham a esse exercício; alguns preferiram colaborar com atividades de infraestrutura (som, cenário, figurino, maquilagem).

Conforme se avançava o trabalho e os ensaios, ia-se acrescentando novos elementos: os passos, a definição do ritmo, a entrada música, os movimentos do corpo. Primeiramente, aproveitado a estrutura do poema, cada dístico era enunciado por uma voz diferente, que às vezes se mesclavam; depois se percebeu que uma só voz enunciaria a Bomba, enquanto os predicados iam surgindo de todos os lados, em ritmo crescente e assustador; alguns eram ditos por vários ao mesmo tempo. Enfim, o anúncio da esperança viria em sobre tom, após uma hecatombe.

Depois de muitas idas e vindas e um semestre de trabalho, chegou-se a um produto interessante, ainda que inacabado, provisório (e que, sabiam todos, numa seria terminado), que foi apresentado na semana cultural de uma outra escola. Em todas as etapas, as decisões e soluções estéticas e práticas foram realizadas conjuntamente por todo o grupo.

A apresentação pode ser dividida em quatro partes.

Na primeira, uma fada coroada de flores, toda de branco, pés descalços, rosa na mão e o símbolo da paz impresso no rosto, fala, sem nenhum acompanhamento o poema Congresso internacional do medo, também de Drummond. Depois deitava para dormir.

Começa a segunda parte ao som de Powaqqatsy, de Philip Glass. Entra o grupo, todos de branco e com máscaras maquiadas no rosto; curiosos e assustados percebem a paz em seu silêncio e, após uma breve indecisão, carregam-na para seu leito. Enquanto isso, três rapazes vestidos de negro e os rostos pintados de máscaras negras vigiam. Ao gritarem “a bomba”, todos caem assustados e temerosos.

A terceira parte começa com o Bolero, de Maurice Ravel. Os atores caminham para o palco num movimento constante e sincopado de quem procura e teme algo. No fundo da cena, de modo compassado e uniforme, caminham em uma linha horizontal em relação à plateia, indo e vindo, os três emissários da morte anunciando forte e alto “a bomba”; após cada anúncio, um dos de branco vai á frente do palco e diz um de seus predicados, sucessivamente até o 56° dístico. O final da enunciação do poema (dístico 57) coincide com o fim do Bolero; enquanto a música se desfaz, todos soltam seu grito de esperança: “o homem liquidará a bomba”, derrotando os emissários da morte.

Na quarta parte, ao som de “Rosa de Hiroshima”, poema de Vinícius de Moraes musicalizado pelos Secos & Molhados, todos os participantes, à exceção da morte, põem-se em linha e aproximação lentamente do público.

Todo o trabalho foi evidentemente amador, cheio de defeitos, usos de chavões, equívocos. Dos cinco critérios que se apresentaram para balizar o trabalho com a Arte, talvez só os dois primeiros tenham sido satisfatoriamente contemplados. Mas houve um profundo aprendizado de mundo e de vida; os alunos estudaram a bomba, compreenderam seu sentido na história, a força da guerra e da tecnologia para a destruição, conheceram quadros, imagens, música, movimento, palavras. Fizeram vida e arte.

Sem saber exatamente onde iriam chegar, professores e alunos forma fazendo a Bomba, enfrentando bombas. Como já se observou, o resultado demonstrou que o objetivo alcançado foi e muito maior do que o imaginado. O trabalho só existiu e teve sucesso porque houve a adesão sincera e plena dos alunos, porque houve empenho e afeto, inclusive daqueles que normalmente são tidos como alunos difíceis.

Não há como medir em que resultou definitivamente esse trabalho. Não há regra de avalição. Mas é certo que a poesia, a arte e a esperança ficaram em e para todos.


[1] BARBOSA, Ana Mae. Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

[2] COLASANTI, Marina. Múltiplas leituras, múltiplos saberes. Notícias 4, abr 2014. FNLIJ, p. 06.

[3] Cf. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In:_______. Magia e Técnica: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 165-196.

[4] Essa perspectiva casa com o princípio da Metodologia Triangular no ensino da Arte proposta por Ana Mae Barbosa. Cf. BARBOSA, Ana Mae. Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

[5] DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. A Bomba. In Lição de coisas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 83-88. (Edição original 1962)