Bloco 3

Oficina 2

Etapa 5

O projeto escrito

No Brasil, muitos documentários buscam financiamento por meio de editais públicos ou privados. Em geral, os editais fornecem um modelo para formatação dos projetos, o que facilita o julgamento dos avaliadores, já que as propostas precisam se adequar ao mesmo padrão.

O Programa Escrevendo o Futuro também sugere um modelo para formatação dos projetos de curta-metragem de documentário, a princípio para que os estudantes possam planejar e refletir sobre seus documentários, além de submeter suas ideias a leitores que podem colaborar para o aprimoramento da proposta. No futuro, essa experiência de elaboração de projetos pode ajudar os estudantes que desejarem produzir seus filmes a escrevê-los em editais com vistas a realizá-los. Os projetos têm uma importância muito grande no percurso de realização do filme e no resultado da obra. Por isso, caprichem! A atividade desta etapa visa justamente a elaboração desse projeto, que deve incluir sinopse, argumento e roteiro. 

MODELO DE PROJETO

O modelo de projeto proposto pelo Programa contém sinopse, o argumento e o roteiro. Tomemos como exemplo o curta-metragem Ilha das Flores, objeto de estudo do Bloco 1: 

  1. Título: Ilha das Flores
  2. Sinopse: deixar claro, dentro da área temática na qual o documentário se insere, qual  o assunto específico a ser abordado e qual o ponto de vista a ser defendido (até 10 linhas).

O documentário faz uma denúncia social sobre o modo de funcionamento do sistema capitalista. A partir de estratégias de ficcionalização do real, mostra como à população mais pobre e desassistida restam as sobras do que é consumido pelos mais abastados. Para tanto, foca na trajetória de um tomate, seguindo-o desde o momento de sua plantação até o seu descarte num lixão. Esse tomate passará pelas mãos de um agricultor, uma dona de casa, para finalmente chegar às mãos de mulheres e crianças catadoras de lixo.

  1. Argumento: descrever de forma completa como será a estrutura narrativa do documentário, bem como de que modo os diferentes recursos de linguagem serão empregados, os principais personagens, a justificativa,  o objetivo (cerca de uma página).

Em Ilha das Flores, acompanhamos a história de um tomate plantado pelo japonês, o sr. Suzuki, indo do seu plantio e da sua compra no supermercado em Porto Alegre (RS)  ao descarte no lixo ao ser considerado impróprio para o consumo no momento de preparação do almoço de uma família e, depois, do lixo o tomate vai para um aterro sanitário, onde será liberado para o consumo de mulheres e crianças que catam lixo para sua sobrevivência. A partir dessa história, a proposta é promover uma reflexão sobre o consumo em uma sociedade capitalista, trazendo como a trajetória de um alimento pode também explicar e ilustrar a desigualdade social que marca o Brasil, em que uns podem comer bem, enquanto outros comem as obras daqueles que têm poder de consumo no capitalismo. 

Tendo um agricultor, uma dona de casa e seus familiares, um dono do porco e mulheres e crianças catadores de lixo como personagens, várias informações são apresentadas por meio de uma suposta linguagem didática e científica. Cabe à ironia quebrar a expectativa do público em relação às informações que estão sendo enunciadas, que parecem tão excessivas e descartáveis quanto os alimentos no sistema capitalista, marcado por uma brutal distribuição desigual de recursos e oportunidades.

O documentário apresenta a narração em off, que segue um ritmo acelerado e só se torna mais lento no final. Essa narração é acompanhada ora de colagens de imagens diversas (livros didáticos, jornais, revistas etc.), ora de cenas interpretadas por atores para as câmeras, ora de encenações de atores sociais. Esses recursos visuais ilustram as inúmeras informações que são transmitidas ao longo de todo o curta, o qual, em dez minutos, conta a história do tomate, inserindo não só o vegetal, mas também as personagens, os locais e as relações na dinâmica de produção e consumo da sociedade capitalista, culminando no descarte do tomate e na utilização das sobras por pessoas pobres e desassistidas. 

Como fontes de pesquisa e material de arquivo foram utilizados trecho do poema “O romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles, o trecho da música “O guarani”, de Carlos Gomes, imagens de arquivo audiovisual (II Guerra Mundial, explosão da bomba atômica em Hiroshima etc), além de outros recursos que procuram dar visualidade e materialidade a tudo que o narrador vai interruptamente explicando. 

Considerando o quanto o Brasil ainda é um dos países mais desiguais, embora seja um dos grandes produtores e exportadores de alimentos no mundo, o documentário se torna relevante na medida em que descortina como um ato banal como comprar um tomate se insere no interior de um sistema de produção que se baseia no lucro e que depende da desigualdade para se reproduzir. Acompanhar a história de um tomate é, assim, acompanhar como o capitalismo opera no país no que diz respeito a uma dimensão tão básica em nossa existência: a alimentação. 

  1. Roteiro: descrever as principais cenas que compõem o filme, indicando sua ordem sequencial de aparição. A descrição de cena deve se preocupar em detalhar tanto as imagens que o espectador verá na tela quanto a narração e/ou entrevistas que ele ouvirá (cerca de uma página). Abaixo reproduzimos um trecho do roteiro de Ilha das Flores

(1) Sobre fundo preto surgem, em letras brancas, sucessivamente, as seguintes frases:

ESTE NÃO É UM FILME DE FICÇÃO

ESTA NÃO É A SUA VIDA

DEUS NÃO EXISTE

(2) GLOBO: as frases desaparecem em fade e surge um globo girando, como no início de "Casablanca". Sobre e sob o globo, aparece o título do filme:

ILHA DAS FLORES

(3-5) MAPAS: fusão, ou corte, para mapas do Brasil, do Rio Grande do Sul, até se ler "Belém Novo" no mapa.

FUSÃO PARA

(6) PLANTAÇÃO DE TOMATES: Câmera na mão avança numa plantação de tomates em Belém Novo, em direção a um agricultor, japonês, parado no centro do quadro, olhando para a câmera.

LOCUTOR

Estamos em Belém Novo, município de Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil, mais precisamente na latitude trinta graus, dois minutos e quinze segundos Sul e longitude cinquenta e um graus, treze minutos e treze segundos Oeste. Caminhamos neste momento numa plantação de tomates e podemos ver à frente, em pé, um ser humano, no caso, um japonês.

(7-10) JAPONÊS: Dois japoneses, no estúdio, de frente e de perfil, como nas fotos de identificação policial. Detalhe dos olhos e do cabelo.

LOCUTOR

Os japoneses se distinguem dos demais seres humanos pelo formato dos olhos, por seus cabelos lisos e por seus nomes característicos. (11-13) TOSHIRO: table-Top documentos do Toshiro. Carteira de identidade, certidão de nascimento, impressão digital, exame de sangue.

LOCUTOR

O japonês em questão chama-se Toshiro. (14-15) OS SERES HUMANOS: table-Top "As medidas do homem", do Leonardo da Vinci. Estátua grega.

LOCUTOR

Os seres humanos são animais mamíferos, bípedes... (16) BALEIA: imagem em vídeo de uma baleia. (17) GALINHA: table-Top Desenho do Picasso.

LOCUTOR

... que se distinguem dos outros mamíferos, como a baleia, ou bípedes, como a galinha, principalmente por duas características: (18) AULA DE ANATOMIA: mão enluvada segurando um cérebro, coloca uma bandeirinha cravada no córtex.

LOCUTOR

... o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor. (19-30) TELENCÉFALO: imagens de computador do cérebro. Edição de imagens de informações contidas no cérebro: equações, números de telefone, imagens de livros escolares, etc.

LOCUTOR

O telencéfalo altamente desenvolvido permite aos seres humanos armazenar informações, relacioná-las, processá-las e entendê-las. (31-40) MANIPULAÇÃO DE PRECISÃO: a primeira imagem deve ser relacionada com a última do telencéfalo, por exemplo, dedos virando uma página do livro escolar. Imagens do movimento de pinça, instrumentos cirúrgicos, pincel, baseado, indústria eletrônica, mão depenando galinha.

LOCUTOR

O polegar opositor permite aos seres humanos o  movimento de pinça dos dedos, o que, por sua vez, permite a manipulação de precisão.

BENEFÍCIOS DO PLANETA: (41) mão colhendo uma maçã na árvore, (42) gravura da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, (43) gravura da torre de Babel, (44) Pirâmides, (45) Parthenon, (46) Loba romana com os gêmeos, (47) capela Sistina, (48) 14 Bis, (49) bomba de Hiroshima, (50) Coca-Cola com tampa rosca, (51) mão colhendo um tomate.

É importante observar que o roteiro de Ilha das Flores reproduzido não consiste meramente numa sugestão de filmagens de cenas. Com exceção de um ou outro ajuste feito posteriormente, ele já descreve integralmente aquilo que o espectador vê/ouve quando da exibição do documentário.

Só foi possível roteirizar Ilha das Flores dessa forma completa e minuciosa porque este é um documentário que não está sujeito aos “riscos do real”. Tudo nele foi planejado minuciosamente e, embora baseado em fatos reais, a narração em voz over e as estratégias de ficcionalização usadas permitiram o controle absoluto das cenas, ou seja, esse roteiro pode ser planificado cena a cena de forma similar aos roteiros de ficção.

O roteiro de Ilha das Flores traz alguns termos técnicos, que assinalamos em destaque. Para saber o significado de cada um deles basta consultar o Glossário. Por fim, esclarecemos que a numeração que aparece entre parênteses corresponde aos planos do filme.

Relação entre o projeto e o documentário

Como comentado ao longo dessa oficina, o projeto escrito do documentário e o documentário em si são constituídos por linguagens diferentes, mas possuem uma relação de interdependência, uma vez que devem estabelecer entre si uma relação de coerência entre aquilo que foi concebido, proposto e planejado e o que foi efetivamente produzido e desenvolvido.  

O documentário Meu lugar, Ubaranas, analisado ao longo desse Bloco, apresenta o que foi descrito na sinopse, bem como as locações, personagens, estratégias e ideias trazidas no argumento. O roteiro, apesar de não estar dividido em cenas/sequências, não conter as perguntas que foram feitas nas entrevistas nem descrever as imagens e sons utilizados de maneira mais pormenorizada, aponta também de maneira clara a construção do discurso do documentário.  

Em Meu Lugar, Ubaranas, somos levados a conhecer o Córrego de Ubaranas a partir de cenas do cotidiano de André, como momentos em família, sua ida à escola, seu cuidado com a Igreja, que são acompanhadas também por cenas de outros moradores, sobretudo os que são entrevistados pelo estudante. Desde o início apresenta-se, então, uma relação de coerência com o que está posto no argumento e no roteiro: a relação indissociável entre as histórias dos moradores e a comunidade. 

Utilizando a narração over, a sensação é de que André está conversando com o espectador, apresentando não apenas sua vida em Ubaranas, mas também de outros moradores que também fazem aquele lugar. Eles, por sua vez, não são falados por André, cuja narração é interrompida e intercalada pelos depoimentos de Seu Pelé, Dona Ana e Dona Madalena, o que nos permite ouvi-los e conhecê-los por meio de sua própria ótica. Com o depoimento de Dona Ana, vem à tona uma informação importante sobre Ubaranas: trata-se de uma comunidade remanescente de quilombo, um dado que confere ainda mais singularidade a esse lugar. Ilustrando esse aspecto, é mostrado um livro da área da antropologia sobre a comunidade. 

Assim, André soma ao seu ponto de vista os olhares e falas dos moradores que entrevista, constituindo uma narrativa que é, ao mesmo tempo, pessoal e coletiva sobre Ubaranas, contada ao longo de todo o documentário a partir das histórias pessoais de cada um dos entrevistados, além do próprio estudante. Ao final, André aparece andando de bicicleta e, com a narração over, declara que ainda não sabe seu caminho, mas que onde quer que vá nunca esquecerá de sua comunidade, o que parece ilustrar como sua caminhada na vida se constitui, de qualquer forma, a partir desse lugar, fazendo jus ao título “Meu lugar, Ubaranas”.