Saltar para o conteúdo Saltar para o menu Saltar para o rodapé

sua prática / reflexão teórica

Lugares de morar na poesia e na memória

Lugares de morar na poesia e na memória

Marisa Lajolo

12 de setembro de 2008

2322_lajolo_gde.jpg

Onde encontrar: Almanaque Na Ponta do Lápis

Poesia é uma atividade que acompanha o homem há milênios, talvez desde seu surgimento na face da terra. Quem sabe por isso sejam poéticas tantas passagens de livros religiosos como a Bíblia, que falam das relações do ser humano com Deus, com os outros homens, consigo mesmo e com o universo...

Ao olhar a seu redor, ao maravilhar-se com a visão de um céu estrelado ou espantar-se com a força de uma tempestade, nossos ancestrais compuseram poemas, lendas, histórias... Assim, o tema “O lugar onde vivo” que você vai trabalhar com seus alunos tem uma longa tradição nos registros da história humana e da história literária.

Em prosa e verso, prestamos atenção aos lugares em que vivemos, e pelos quais passamos. Apontamos suas belezas, criticamos seus problemas, contamos sua história, trazendo para a literatura impressões, sentimentos, sonhos e queixas. E, nem sempre os lugares celebrados na poesia são lugares verdadeiros, marcados em mapas e em plantas. São, muitas vezes, lugares de sonho, fruto da imaginação, como sugere Manuel Bandeira (1886-1968) – poeta pernambucano – em alguns versos de seu belo poema “Testamento”, onde registra “(...) o que ficou marcado / No meu olhar fatigado, / Foram terras que inventei” (1)

A passagem é muito bonita: proclama a superioridade do que se inventa sobre o que se vive: o que fica marcado é o fruto da imaginação e não aquilo que se viveu de verdade.

Vale a pena pensar sobre o assunto. É assim mesmo? O que você acha? O que imaginamos nos marca mais do que o que vivemos? Eu – por mim – acho que nunca a imaginação é completamente separada do que se vive. Nossas experiências alimentam nossa imaginação; mas, ao mesmo tempo – e de forma muito sutil –, o que imaginamos também contribui para a maneira pela qual percebemos nossas experiências.

Como acontece, por exemplo, quando lemos o poema abaixo, de Mário Quintana (1906-1994):

Cidadezinha (2)

  1. Cidadezinha cheia de graça...
  2. Tão pequenina que até causa dó!
  3. Com seus burricos a pastar na praça...
  4. Sua igrejinha de uma torre só...
  5. Nuvens que venham, nuvens e asas,
  6. Não param nunca nem um segundo...
  7. E fica a torre, sobre as velhas casas,
  8. Fica cismando como é vasto o mundo!...
  9. Eu que de longe venho perdido,
  10. Sem pouso fixo (a triste sina!)
  11. Ah, quem me dera ter lá nascido!
  12. Lá toda a vida poder morar!
  13. Cidadezinha... Tão pequenina
  14. Que toda cabe num só olhar...

O título – “Cidadezinha” – já sugere que o poeta fala de um espaço urbano; o diminutivo tanto aponta para o tamanho acanhado da cidade quanto sugere o carinho que ela inspira.

Trata-se de um soneto, isto é, de um poema de quatro estrofes, as duas primeiras com quatro versos cada uma (quartetos) e as duas últimas com três (tercetos). Versos regulares, todos com nove sílabas e rimas bem musicais.

A primeira estrofe constrói a atitude carinhosa do poeta e marca o tamanho da cidade: nela tudo é pequeno, os burricos e a igreja de apenas uma torre vão mergulhando a paisagem num clima de afeto e de proteção. A ex-pressão cheia de graça parece contagiar a cidade com o misticismo da oração a Nossa Senhora. Embora graciosa, a cidadezinha é frágil: até causa dó.

Na segunda estrofe, a voz que fala no poema parece afastar-se, ver a cidade de longe, talvez do alto: menciona nuvens, pássaros – e mais uma vez a torre da igreja. Parece construir-se assim um novo ponto de vista. A partir dele, a cidade parece encolher-se ainda mais, percebida agora em contraste com a vastidão – da altura dos pássaros, das nuvens e da torre – que a vista descortina do mundo.

É apenas na terceira estrofe que entra na paisagem uma figura humana.

Surge no verso nove o pronome de primeira pessoa. O eu que lá comparece apresenta-se como uma espécie de viajante, de andarilho, talvez um migrante, talvez um estrangeiro: vem de longe, vem perdido, não tem pouso fixo. Para ele, a cidadezinha representa um lar, espaço possível de repouso. Espaço de construção de identidade: quem me dera ter lá nascido, desejo reforçado pela interjeição (Ah) que abre o verso.

A última estrofe retoma o desejo de fixação, de pertencimento. O verso doze, desenha uma espécie de paralelo com o verso onze: ambos são exclamativos e referem-se à cidade como um espaço distante, , reiterando o tamanho da cidade (cidadezinha... Tão pequenina) que ganha uma inesperada medida: cabe toda num só olhar. Que olhar seria esse? É também nesta última estrofe que parece inverter-se a posição protetor–protegido: a cidade que causa dó na primeira estrofe torna-se protetora nos últimos versos.

Recoloca-se a questão.

Que olhar seria esse que olha a cidade, ora de dentro ora de fora, ora de cima, ora de baixo, ora protegendo, ora pedindo proteção?

O leitor medita: pode ser o olhar do adulto que volta à terra de sua infância, do migrante que retorna à sua terra, do exilado que finalmente encontra onde fixar-se... Cada leitor, com base em suas experiências, vai emocionar-se de uma ou outra maneira lendo os versos que Mário Quintana compôs, não é mesmo?

Cidades pequenas ou grandes, pobres ou ricas, antigas ou modernas, com seus habitantes e suas histórias, são elementos constantes na literatura. Alguns poemas celebram a conquista de um pedaço de chão, outros registram histórias de comunidades, como, por exemplo, fizeram alguns finalistas de versões passadas do Prêmio Escrevendo o Futuro.

Laize dos Santos Gama, (semifinalista, 2004) celebra o assentamento Nova Conquista, em Rancharia (interior de São Paulo). O título “Conquista” já prepara os leitores para o tom do poema, que comemora uma vitória.

Uma bela vitória e um belo poema:
(...)
A vida debaixo da lona,
É difícil de agüentar,
Quando o sol é muito quente,
E a noite é de gelar,
Sem contar com os despejos,
Que tivemos que enfrentar.
(...)
Mas depois de 6 anos
Conseguimos a vitória
E a nossa comunidade
Com 104 famílias
Entrou para história.
Hoje somos assentados,
Não temos mais despejos não,
Estamos em um paraíso,
No nosso pedaço de chão.

Os versos curtos, as estrofes irregulares (isto é, com número diferente de versos em cada uma) celebram a conquista de um pedaço de chão, conquista que beneficiou muita gente (104 famílias), que antes levava uma vida difícil (a vida debaixo da lona é difícil de agüentar), porque sujeita às intempéries (o sol é muito quente... a noite é de gelar), e a trâmites judiciais (os despejos que tivemos de enfrentar).

Assim como a segurança de um pedaço de chão que alguém pode chamar de seu é motivo para celebração, o afastamento de seu pedaço de chão pode causar tristeza e ansiedade, como registram os famosos versos de Gonçalves Dias (1823-1864). Vivendo em Portugal, o poeta maranhense lamenta o afastamento da pátria evocando sua paisagem no antológico poema Canção do exílio (3), cuja primeira estrofe muita gente sabe de cor:

Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá
(...)

Nem sempre, no entanto, é para celebração do lugar em que vivem que os poetas emprestam sua voz. Muitas vezes a poesia se torna um discurso de crítica, de denúncia, de reivindicação. No final do século XIX, o maranhense Artur de Azevedo (1865-1908) – morador do Rio de Janeiro – escreve um divertidíssimo “Ofício em verso” para reclamar ao prefeito dos buracos da cidade:

Ó tu
Que és presidente
Do Conselho Mu
Nicipal,
Se é que tens Mu
Lher e filhos
Manda tapar os bu
Racos da rua dos Junquilhos (4)

É interessante observar como o poeta usa a imaginação e a familiaridade com a língua portuguesa para brincar com as palavras e ser original a partir de um gênero tão cristalizado como um ofício.

Já pela disposição gráfica na página, o poema rompe a aparência da correspondência oficial. Para conseguir rimas, o poeta – em três passagens – divide as palavras, fazendo com que as primeiras sílabas de municipal, mulher e buracos fiquem isoladas, como sílaba final de versos que rimam entre si. Observe ainda como é original mencionar, em um ofício, membros da família da pessoa à qual o ofício é dirigido: não parece que os “filhos” entraram no poema apenas para rimar com “Junquilhos”, nome da rua em que o poeta efetivamente morou durante algum tempo?

Acho que parece.

Mas... a menção a “mulher e filhos” também não pode representar uma espécie de ameaça (ou de apelo) à autoridade à qual é dirigido o ofício? Ao mencionar-lhe a família, o poeta não parece querer empurrar a autoridade para uma posição de maior sensibilidade para os problemas dos munícipes?

Acho que essa leitura também é possível. E você, o que acha? Bastante distinta destas é a maneira encontrada por Nicolas Behr para falar de sua cidade:

estou (5)

  1. dentro de mim
  2. entre quatro paredes
  3. num apartamento
  4. dentro de um bloco
  5. entre outros blocos
  6. numa cidade
  7. dentro do cerrado
  8. entre árvores
  9. num país
  10. dentro da américa do sul
  11. entre dois mares
  12. no mundo

O título do poema já constitui uma forma instigante de abrir um texto: que expectativas de significado um leitor desenvolve para um texto que se intitula estou? para mim, as expectativas foram de um poema confessional, que apresentasse um )estado_ – ou vários estados – do eu: alguém que está triste, ou está alegre, ou está sozinho...

Mas... o primeiro verso – bem como os outros onze que o seguem – obrigou-me a corrigir a hipótese inicial: em vez de estados do eu ,o poema enumera lugares do eu. Desde dentro de mim (verso 1) até no mundo (verso 12) o poema vai num crescendo, apresentando um eu que progressivamente se alarga, distendendo-se de si mesmo até a dimensão do mundo.

Será que não é assim mesmo, isto é, nosso espaço não contribui para construir nossa identidade?

Re-lendo o poema e prestando atenção aos elementos de que ele se vale para construir o eu, encontro imagens extremamente espaciais: paredes, apartamentos, bloco, blocos, cidade, cerrado, árvores, país, américa do sul, dois mares e mundo. Alguns desses elementos me sugerem o perfil urbano dos espaços que constroem o eu. Com base neles posso começar a imaginar algumas identidades geográficas para este espaço; trata-se de um país latino-americano, de uma região de cerrado, numa urbanização definida por blocos.

Quando aprendi que seu autor – Nicolas Behr – é um mato-grossense que vive na capital do Brasil, aumentaram as chances de acerto, na aposta de que o espaço que o poema desenha é a cidade de Brasília.

Não é mesmo?

Observando com mais atenção o poema, anoto a construção paralelística de seus versos, que repetem todos a mesma estrutura (dentro/entre/em) e, aprofundando a observação (ou será que exagerando-a ...?) vejo que o som da preposição em (indicativa de lugar) inclui-se tanto na preposição entre quanto no advérbio dentro, montando um outro nível de reiteração no interior do poema.

Fico encantada com o engenho do poeta que assim surpreende seus leitores. E arrisco explicitar o pacto essencial entre leitor e escritor, re-escrevendo – como humilde homenagem ao poeta – o texto de forma a registrar o sentido que para ele construí: Brasília representada como um espaço que permite ao eu expandir-se progressivamente, de forma que a ele incorporam-se todas as dimensões – materiais, naturais, e políticas – do espaço que ele ocupa e que, pela voz do poeta, passa a constituí-lo:

Estou
dentro de mim
entre quatro paredes num
apartamento dentro de um bloco entre
outros blocos numa cidade dentro do cerrado
entre árvores num país dentro da américa do
sul entre dois mares no mundo

Vendo o resultado de meu exercício, meus botões hesitam e argumentam: esta nova forma de escrever o texto de Nicolas Behr não “apaga” a idéia de confinamento, de mesmice que os versos dispostos em estrofes de três linhas – “blocados em tercetos” – sugerem?

Ouço meus botões e sorrio...

Poesia tem dessas coisas, não é mesmo? Por isso é que há tantas formas de trabalhar esse e os demais poemas que aqui vão inspirar as atividades que você vai desenvolver com seus alunos para a Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.

Combinado?

Acompanhe as novidades

Imagem de capa de Volta às aulas: a importância do planejamento docente
especiais

Volta às aulas: a importância do planejamento docente

Veja materiais selecionados para te apoiar na organização do trabalho letivo

planejamento de aula, gestos didáticos, sequência didática, planejamento docente

Imagem de capa de Poemas de Luiz Gama
textos literários

Poemas de Luiz Gama

Leia três poemas do escritor que introduziu a voz negra na literatura brasileira

texto literário, poesia, poema, Luiz Gama

Imagem de capa de Campanha: atualize seus dados de raça/cor no cadastro do Portal
sobre o Programa

Campanha: atualize seus dados de raça/cor no cadastro do Portal

Veja como atualizar suas informações e saiba mais sobre o processo de autodeclaração

Imagem de capa de Na Ponta do Lápis: revista chega ao número 40 com edição especial sobre culturas indígenas
sobre o Programa

Na Ponta do Lápis: revista chega ao número 40 com edição especial sobre culturas indígenas

Confira os conteúdos sobre línguas e literaturas indígenas de autoras(es) de diversas etnias do país

formação docente, literatura indígena, línguas indígenas, educação para as relações étnico-raciais, revista NPL

Comentários


Ninguém comentou ainda, seja o primeiro!

Ver mais comentários

Deixe uma resposta

Olá, visitante. Para fazer comentários e respondê-los você precisa estar autenticado.

Clique aqui para se identificar
inicio do rodapé
Fale conosco Acompanhe nas redes

Acompanhe nas redes

Parceiros

Coordenação técnica

Iniciativa

Parceiros

Coordenação técnica

Iniciativa


Objeto Rodapé

Programa Escrevendo o Futuro
Cenpec - Rua Artur de Azevedo, 289, Cerqueira César, São Paulo/SP, CEP 05.404-010.
Telefone: (11) 2132-9000

Termos de uso e política de privacidade
Objeto Rodapé

Programa Escrevendo o Futuro
Cenpec - Rua Artur de Azevedo, 289, Cerqueira César, São Paulo/SP, CEP 05.404-010.
Telefone: (11) 2132-9000