Uma festa para os livros e para a leitura
livros, feiras literárias, literatura, formação leitora
Olá professora, olá professor!
No nosso último bate-papo aqui neste espaço, ocorrido no mês de julho, eu trouxe algumas reflexões sobre o uso do celular no ambiente escolar no artigo "Celular na escola: ferramenta a favor da aprendizagem ou um transtorno à rotina na sala de aula?". Refleti sobre o fato de que, se estamos em um mundo regido por uma cultura digital, que se espraia pela vida social como um todo, é fundamental garantir aos estudantes o acesso às Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (NTIC). Em um mundo que se organiza totalmente em torno das NTIC, ser um excluído digital tem se tornado sinônimo de ser um excluído social. Por outro lado, destaquei, também, o quão indispensável é estarmos atentos aos desdobramentos do uso dos dispositivos móveis nos processos de subjetivação de crianças e adolescentes que estão em formação. Mencionei que é urgente que pensemos a respeito de como o uso abusivo de telas pode impactar negativamente a saúde mental, o desenvolvimento integral e as aprendizagens dos estudantes. Destaquei ainda que a intervenção diante de um fenômeno social tão complexo como a dependência de telas requer um conjunto de ações articuladas, que envolva o trabalho integrado da escola, da família, da sociedade e a ação do Estado, de forma intencional e organizada.
Postas todas estas questões, uma vez que tenhamos refletido sobre os efeitos deletérios do uso dos dispositivos móveis e das redes sociais para a infância e para a adolescência, como podemos construir estratégias pedagógicas que nos permitam dialogar com os nossos alunos e alunas sobre este tema, em uma perspectiva crítica e cidadã?
Como comentei em parte no texto de julho, testemunhei a chegada das NTIC no espaço escolar e tive que manejar situações que começavam nas redes sociais e transbordavam na sala de aula, trazendo uma série de conflitos entre os estudantes, bem como prejuízos à rotina escolar. Na ocasião, eu tinha duas escolhas: ignorar o que estava acontecendo e seguir com as minhas aulas ou incorporar o assunto à organização do trabalho pedagógico, conectando-o aos conteúdos do currículo.
Entendendo que ignorar aquela situação não faria com que ela desaparecesse ou deixasse de interferir no meu trabalho, eu escolhi incorporá-la à minha prática. E, aqui neste texto vou compartilhar com vocês como eu trouxe o tema do uso consciente, ético e seguro para as minhas aulas. Naquela ocasião eu estava atuando com turmas do 9º ano do Ensino Fundamental e alguns dos objetivos de aprendizagem estabelecidos no currículo de Língua Portuguesa (aqui considero o currículo vigente à época, o “Currículo em Movimento das Escolas Públicas do Distrito Federal) versavam sobre:
Exercitar a oralidade a partir de debates e exposições orais entre os colegas de sala; Expressar o próprio posicionamento acerca de questões suscitadas em sala de aula; Elaborar textos autorais observando questões como: Para quem escrevo? Por que escrevo? Como escrevo? Quando escrevo? Compreender e refletir sobre o uso da língua em diferentes situações de interação; Confrontar opiniões, expressar ideias, despertando a criticidade por meio de argumentos; Apropriar-se de conhecimentos interdisciplinares e aplicáveis na produção de variados discursos; Observar e identificar elementos pertinentes a gêneros textuais; Promover debate, analisar, identificar e elaborar textos argumentativos; Reconhecer e compreender o uso e as funções da pontuação na produção de sentido do texto; Compreender o papel de estruturas linguísticas na construção do texto; Analisar diferentes discursos veiculados nos meios de comunicação, considerando diversas tecnologias; Comparar e relacionar textos de diferentes gêneros, com relação a conteúdo e forma;
Avaliei que muitos daqueles objetivos de aprendizagem que apontavam para conteúdos específicos a serem trabalhados poderiam ser atingidos na medida em que eu desse centralidade ao tema das NTIC e das redes sociais que se mostrava tão importante para os estudantes, naquele momento.
Decidi estudar sobre o assunto para saber como incidir sobre o problema de forma qualificada e encontrei a obra “Cyberbullying e outros riscos na internet: despertando a atenção de pais e professores”. A obra, de 2011, é resultado das pesquisas de Ana Maria de Albuquerque Lima e me ajudou a refletir sobre as dezenas de riscos envolvidos no uso das novas tecnologias e das redes sociais. Também utilizei como material de pesquisa uma cartilha publicada pelo Ministério Público Federal que trazia informações para educadores e famílias sobre como orientar os estudantes em relação a usar as redes sociais com responsabilidade, disponível aqui.
Tão importante quanto dar centralidade ao tema era necessário fazer de um jeito que atraísse, que envolvesse os estudantes. Entendi que a primeira coisa que eu precisava fazer era analisar as representações sociais e percepções que os estudantes tinham das redes sociais. Assim, formulei uma pesquisa com várias perguntas como: que redes sociais você costuma usar? Que cuidados você toma ao acessá-las? Com que frequência você as acessa? Você já se sentiu violado em seus direitos ao usar as redes sociais? O formulário continha 9 perguntas objetivas e três discursivas, em que os estudantes precisavam responder acerca do quanto conheciam os termos como cyberbullying e pornografia de revanche, entre outros (o termo então usado na área do direito para ser referir ao comportamento de homens que, para se vingar de mulheres e namoradas compartilhavam imagens íntimas delas). Clique aqui para conhecer o formulário aplicado.
As respostas dos estudantes às questões que eu propus foram muito importantes para sistematizar a metodologia que eu queria utilizar. Para citar alguns exemplos, mais de 99% afirmaram usar as redes sociais, 62% disseram que nunca tinham ouvido falar do termo Cyberbullying, 52% admitiram conversar com estranhos nas redes sociais. Percebi que aquela seria uma das primeiras oportunidades que eles e elas teriam para tratar do tema de um lugar mais reflexivo e não queria utilizar aulas expositivas porque sabia que isto talvez tornaria a abordagem menos interativa e menos atrativa para eles.
Decidi, então, articular a situação ao que estávamos estudando em Língua Portuguesa, com foco especial em oralidade e nos objetivos de aprendizagem já apresentados neste texto. Eu precisava trabalhar gêneros orais como o debate, e precisava dar continuidade ao trabalho que vínhamos realizando envolvendo produção de texto.
Assim, resgatei os episódios de conflitos que tiveram origem nas redes sociais e que chegaram à sala de aula, escolhi as 07 situações mais recorrentes e as transformei em pequenas narrativas, casos a serem estudados e debatidos pelos alunos. Para isso, elaborei perguntas que estimulassem o diálogo entre eles. As narrativas envolviam desde uma situação em que uma menina compartilha uma foto da amiga sem a autorização, até a situação em que um menino ameaça espalhar as fotos íntimas da namorada porque ela decidiu romper o namoro com ele. Inclui casos também envolvendo difamação, uso indevido de imagens, invasão de páginas de colegas, entre outros.
Organizei a turma em grupos, distribuí os casos e os orientei quanto aos termos em que o debate aconteceria. Apresentei considerações sobre o gênero debate, sobre explanação oral, argumentação, contra argumentação, réplica, tréplica e combinamos que a metodologia seria a seguinte: primeiro os membros de cada grupo debateriam os casos entre si, partindo das perguntas propostas no material que eles receberiam contendo as narrativas (além do caso a ser debatido, havia entre 3 e 5 perguntas elaboradas para estimular o debate entre eles e elas). Cada grupo deveria sistematizar as conclusões a que chegaram. Seria escolhido um porta-voz do grupo que reportaria as conclusões construídas no debate para toda a turma, em uma plenária aberta em que todos poderiam contestar as conclusões apresentadas pelo grupo ou endossá-las.
Professora(or), na Oficina 4 do Caderno Docente "Pontos de Vista", você encontra mais sugestões e propostas de atividades para auxiliar na organização um debate regrado com sua turma de estudantes.
Todos os grupos compartilharam com a turma o resultado do que debateram. Recordo-me que a minha grande surpresa foi perceber o quanto os casos mobilizavam os estudantes, o quanto havia uma espécie de demanda reprimida, uma necessidade de debater sobre o tema, de ter com quem conversar sobre ele. Eles tinham muito o que dizer, expressar, manifestar. Foi uma aula intensa, participativa, com fortes disputas pelo turno da fala. Depois que eles e elas debateram trazendo espontaneamente as suas percepções daquelas situações, à luz das perguntas elaboradas para provocar o debate, eu apresentei o material produzido pelo Ministério Público, a cartilha que eu estudei e que trazia orientações e legislações que versavam sobre o uso ético e seguro das redes sociais. A ideia era auxiliá-los quanto a uma maior qualificação dos debates que havíamos realizado.
O resultado foi tão positivo que no ano seguinte compreendemos que seria importante dar continuidade à proposta, expandindo o alcance dela para as outras turmas. Mantivemos a ideia de dar centralidade ao tema “Uso consciente, ético e seguro das redes sociais”, mas incluímos além da questão do debate, a proposta de elaboração de material escrito ou audiovisual em que as(os) estudantes pudessem traduzir o resultado de suas pesquisas e reflexões sobre o tema.
Entendendo a escrita como prática social, dialogamos com as(os) estudantes do 9º ano sobre como seria importante que todo o debate que fizemos em sala de aula chegasse às demais turmas da escola. Como se tratava de um Centro de Ensino Fundamental, os alunos e alunas do 9º ano eram os veteranos e sempre eram olhados pelos estudantes do 6º. 7º e 8º com uma certa reverência e admiração porque eram mais velhas(os). Nós convidamos as turmas do 9º ano a produzirem materiais variados, a partir de gêneros com os quais eles se identificassem, que pudessem funcionar como recursos de orientação aos mais jovens, em relação ao uso das redes sociais.
Oferecemos a possibilidade de que trabalhassem com a produção de curtas metragens e elas e eles amaram a ideia. A proposta é que tivessem a oportunidade de exercitar a escrita autoral, a produção de vídeos, exercendo a criticidade e a criatividade. Combinamos que para produzir um vídeo era fundamental que houvesse o planejamento adequado. Este planejamento envolveu: 1. Estudar os casos que serviriam como apoio para o debate; 2. Estudar a cartilha do Ministério Público; 2. Escolher o gênero do vídeo a ser produzido (poderia ser uma pequena narrativa de ficção, um telejornal informativo, um vídeo que se filiasse ao tipo textual instrucional), e o mais importante é que trabalhassem com um gênero com o qual se identificassem e que, ao produzir este vídeo, tivessem como interlocutores as(os) estudantes do 6º, 7º e 8º ano; 3. Escrever um roteiro que sinalizasse o conteúdo que o vídeo traria. 4. Debater o roteiro com o grupo de trabalho, sob minha orientação. 5. Produzir o vídeo.
É importante destacar que a metodologia que serviu de base para todo o trabalho foi a Pedagogia de Projetos, ou seja, aquela a partir da qual o aluno “(...) o aluno aprende no processo de produzir, levantar dúvidas pesquisar e criar relações que incentivem novas buscas, descobertas, compreensões e reconstruções do conhecimento. Portanto, o papel do professor deixa de ser aquele que ensina por meio da transmissão de informações- que tem como centro do processo a atuação do professor- para criar situações de aprendizagem cujo foco incida sobre as relações que se estabelecem nesse processo, cabendo ao professor realizar as mediações necessárias para que o aluno possa encontrar sentido naquilo que está aprendendo a partir das relações criadas nessas situações” (PRADO, 2009, p. 4) Assim, os objetivos de aprendizagem relacionados ao gênero debate, à escrita e reescrita do roteiro, aos aspectos morfossintáticos e ortográficos das produções que eles construíram foram trabalhados ao longo das interlocuções que cada grupo tinha comigo no processo de orientação. Era neste momento que eu podia pontuar questões como: “na elaboração do roteiro, estamos usando a linguagem adequada para nos comunicar com estudantes de 11 a 13 anos? A mensagem que nós queremos passar está colocada de forma compreensível no vídeo? O conteúdo do vídeo é coerente com o gênero escolhido? Nas situações em que os vídeos utilizam textos escritos, estamos atentos a fazer a revisão ortográfica e morfossintática? Há coesão e coerência no texto proposto?
Levamos um bimestre neste processo, utilizando três aulas por semana. As produções das(os) estudantes ficaram excelentes. Alguns grupos optaram por vídeos que traziam uma representação da narrativa proposta, outros grupos optaram por vídeos informativos e houve ainda um grupo que optou por fazer uma campanha de conscientização na escola, utilizando informações que foram colocadas no mural e folhetos informativos escritos para as(os) estudantes. Este grupo específico optou por produzir uma espécie de making off, apresentando os bastidores da campanha. Ao final do processo, os vídeos produzidos por cada grupo foram exibidos nas respectivas turmas e, posteriormente, organizamos a “I Mostra de Vídeo sobre o uso consciente e ético das redes sociais”. Todas as turmas da escola foram convidadas a prestigiar os vídeos e votar naqueles com os quais mais se identificassem. Todos os vídeos foram apresentados a todas as turmas da escola. Eu me recordo de que as(os) estudantes do 9º ano, as(os) veteranas(os) da escola, não cabiam em si de felicidade porque diferente de outras situações, o material que produziram não ia ficar engavetado e nem servir apenas para gerar uma nota, o material circularia, seria apreciado pelos seus pares.
Foi uma experiência transformadora para todos, porque percebemos como é importante que temas como direitos humanos, formação cidadã e crítica, no contexto do ensino de Língua Portuguesa podem e devem atravessar toda a organização do trabalho pedagógico. O percurso que criamos foi uma oportunidade de eles e elas exercerem a escrita e a reescrita, a criatividade e o pensamento crítico. O que percebi com esta experiência foi que a escola só tem a ganhar quando coloca no centro do processo pedagógico as questões que dizem respeito à vida das(os) estudantes e às práticas sociais dos seus territórios.
Referências
LIMA, Ana Maria de Albuquerque. Cyberbullying e outros riscos na internet: despertando a atenção de pais e professores. Editora Wak, 2011.
MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Ética e Segurança Digital Cartilha Orientativa: recomendações e dicas para a família sobre o uso correto das novas tecnologias. Brasília: MPDFT, 2015. Disponível em: <https://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/imprensa/cartilhas/Cartilha_Orientativa_Etica_Seguranca_Digital_MPDFT.pdf> . Acesso em: 27/09/2024.
PRADO. Maria Elizabette Brisola Brito. Pedagogia de Projetos: fundamentos e implicações in: Press, 2007.
Sobre a autora
Gina Vieira Ponte de Albuquerque é ceilandense, atuou como professora da educação básica na Secretaria de Educação do Distrito Federal por mais de 30 anos. É graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Pela Universidade de Brasília (UnB), é mestra em Linguística, com ênfase em Análise de Discurso Crítica, especialista em EAD, em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar e em Letramentos e Práticas Interdisciplinares nos Anos Finais. Autora do Projeto Mulheres Inspiradoras, agraciado com 15 prêmios, entre eles, o I Prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos.
Uma festa para os livros e para a leitura
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Letramentos e as práticas de linguagem contemporâneas na escola
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