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biblioteca / educação e cultura

33ª Bienal – Uma deriva por ilhas afetivas

Camila Prado

07 de agosto de 2023

Rosângela viu um quadro. Viu um poço. Uma moça no poço. Viu os pássaros cantando e uma cobra escondida. Voou longe. Foi buscar a infância sem saber bem por quê. Lá estavam a favela, a mãe guerreira e a rotina de ir buscar água com latas de tinta junto dos sete irmãos. Toda essa percepção, registrada na fala de Rosângela Silveira Jerônimo, ajudante geral de limpeza da Bienal, sobre sua identificação com a pintura da artista Vânia Mignone, ilustra bem o propósito da 33ª edição da mostra (que acontece de 07/09 a 09/12/18, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo). A experiência com a arte, fundada em afinidades que estabelecemos, e que das mais diversas formas nos afetam, é o espírito desta edição da maior exposição de arte contemporânea da América Latina.

Contemplar uma obra, como fez Rosângela, pode também ser uma escuta sobre o percurso do próprio artista. Afinidades e afetos de Vânia Mignone estão delineados na intensidade de seus desenhos narrativos, como ela conta no depoimento sobre seu primeiro contato com o trabalho de Gaugin, que só conhecia por fascículos de banca de jornal. “[...] Eu achava aquilo tudo tão maravilhoso, colorido forte, os traços pretos, que hoje em dia aparecem no meu trabalho. Achava aquilo lindo, mas absolutamente inacessível. Mas quando eu, fazendo faculdade de publicidade, vim conhecer o MASP e dei de cara com um trabalho do Gaugin, levei um susto. [...] Vi a tela que era um tecido muito rústico. Talvez até um saco que ele tenha usado para pintar. Lugares onde a tinta estava muito empelotada, várias camadas, uma em cima da outra, lugares em que a tinta estava ralinha. [...] Gosto dessa dificuldade, dessa irregularidade, me parece que o trabalho fica mais quente, mais próximo, cria esse laço de afetividade.”

A proposição das afinidades e dos afetos permeia não só a fruição dos espectadores mas também todo o trabalho dos artistas e curadores. “Se pudermos pensar na arte e em suas exposições essencialmente como experiências, e não como declarações, talvez possamos imaginar uma Bienal em que os artistas, curadores e espectadores são tratados como iguais, todos capazes de construir suas próprias afinidades afetivas com a arte e com o mundo além dela.”, declara o curador-geral espanhol Gabriel Pérez-Barreiro. Diferente de edições recentes, esta não traz um tema geral, que direciona a exposição; o título Afinidades Afetivas é um conceito que norteia a organização desta Bienal a partir de afinidades artísticas e culturais entre os envolvidos. Pérez-Barreiro revela ter se inspirado no romance “Afinidades Eletivas” (1809), de Johann Wolfgang von Goethe, e na tese “Da natureza afetiva da forma na obra de arte” (1949), do ativista e artista Mário Pedrosa, para chegar nesse conceito. Vale dizer que “afeto”, nesse contexto, remete àquilo que nos afeta de variadas maneiras, não está necessariamente relacionado a sentimentos ternos.

Para compor a 33ª edição, Pérez-Barreiro compartilhou a curadoria com sete artistas, convidando-os a montar exposições coletivas, dando-lhes total liberdade para escolher obras e artistas segundo suas afinidades e afetos – a única regra foi os artistas-curadores incluírem trabalhos de autoria própria. Intercalando-se às denominadas ilhas das mostras coletivas, há exposições individuais de 12 artistas que integram um grande arquipélago. Todas as exposições são interligadas pelo complexo oceano que é o próprio pavilhão da Bienal, uma presença tão marcante que, assim como o Parque do Ibirapuera, influenciou muitos dos trabalhos, como revela a artista-curadora argentina Claudia Fontes: "Deixei que a experiência do edifício me atravessasse, para ver o que se passava em meu corpo. E o que percebi rapidamente foram as mudanças de velocidade oferecidas pelo edifício enquanto transitamos por ele. Assim surgiu a ideia do 'Pássaro lento', como um antídoto contra a vertigem que sentia em estar no prédio, e também como metáfora para oferecer aos outros artistas que viriam trabalhar comigo no núcleo."

Cada ilha, um farol

São mais de 100 artistas, cerca de 600 obras – e incontáveis formas de vê-las. Há quem possa se interessar pelo trabalho do espanhol Antonio Ballester Moreno, com sua curadoria focada na abstração da natureza e nas formas geométricas, e uma de suas obras somando mais de 2 mil cogumelos, esculpidos com a ajuda de crianças de CEUs de São Paulo.

Pode ser que outros parem no curta-metragem The Living Room [A Sala de Estar], do holandês Roderick Hietbrink, em que um carvalho atravessa a sala de estar de um apartamento com estilo modernista.

Ou se percam nas cortinas cênicas permeadas por obras, textos, cantos e massagens na ilha da paulista Sofia Borges, que traz à tona uma leitura sobre a tragédia para investigar limites da representação na arte.

Outros, talvez, viajem no tempo com as esculturas da paulista Denise Milan: “Na pedra, nós estamos falando de 220 milhões de anos [...] Ela revela para nós outra grandeza de tempo. [...] Nós fazemos parte de um processo de criação que nos transcende. Então, meu fazer artístico está extremamente conectado com este outro tempo de criação".

Há, ainda, quem possa se dedicar ao filme Ensaio (2018), produzido pela mineira Tamar Guimarães, que em seus 55 minutos mostra o ensaio de uma adaptação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, dirigida por Isa, uma jovem negra.

Para quem não prescinde das artes visuais, as obras que estão na ilha da sueca Mamma Anderson certamente serão imperdíveis, trazendo artistas que compartilham da melancolia e do interesse pela figuração expressiva e pelo corpo humano. 

A proposta curatorial está tão aberta nesta edição que na Bienal cabe "Outra33aBienal", projeto do artista paranaense Bruno Moreschi. Entre modos alternativos de compreensão e registro da Bienal que ele propõe, está a inclusão de faixas no audioguia com comentários de não especialistas, entre os quais figura o de Rosângela, que abre este texto. “Num futuro próximo ou distante, alguém vai estudar a 33ª Bienal e se deparar com o arquivo oficial esperado, mas também com outro conjunto de documentos resultante de nossas ações.”

Trata-se de um arquipélago para todos os sentidos. E para que a navegação seja significativa, esta Bienal tem como premissas a presença e a atenção [saiba mais aqui]. É preciso escolher em que ilhas, e como, atracar. Nesse sentido, o papel dos educadores que atuam nesse contexto, como observa a mediadora Gabriela Leirias, “é convocar o público para que ele entenda que, em termos de arte contemporânea, a obra acontece com a sua participação. A sua fruição faz parte da obra. Se eu chegar e desvendar o crime do Pássaro Lento, o espectador não terá atuação nenhuma. Irá escutar e falar: “É mais uma informação”. Não é uma experiência.” Qualquer semelhança entre arte e educação, não é mera coincidência.

Fotos: http://www.bienal.org.br/

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