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sua prática / relatos de prática

É no detalhe que se faz a multimodalidade da linguagem da vida

Juliana Battisti

08 de agosto de 2023

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Campus Restinga
Porto Alegre/RS

"Sora, esses projetos grandes assim são como fazer terapia, né? É demorado, às vezes cansa, dá preguiça até, mas de repente tu começa a se dar conta que tá manjando, que tá mergulhado no rolê e que não quer sair."  

Eu ouvi essa frase da Luisa quando recebemos a notícia de que estaríamos na semifinal. Sempre acreditei no aprendizado por meio do contato demorado e complexo de temáticas e conteúdos. É a profundidade e diversidade do aprender que faz com que trajetórias significativas e concretas de conhecimento sejam desenhadas, eu sei. Só que a Luisa explicou essa pedagogia como eu nunca consegui fazer na vida e, ainda, utilizou uma analogia inteligente que só uma estudante que teve a coragem de pular do trampolim e mergulhar na densidade conseguiria. Começo esse relato pelo final, pois esse momento foi a etapa de balanço e início de um outro caminho.

Trabalho em uma escola na periferia de Porto Alegre, e convivo com uma das mais instigantes e complexas variáveis que constituem um ambiente escolar: a pluralidade. Tenho o privilégio de estar com estudantes que contam histórias principalmente de sobrevivência, de abandono do Estado, de dificuldades, mas, ao mesmo tempo, de superações diárias, de coletividade e organização comunitária. Vi no documentário uma chance de esses sujeitos registrarem seus caminhos, revelarem suas identidades, falarem do que os toca, mostrarem as lutas constituídas justamente a partir do lugar onde vivem, o qual é também protagonista de os colocar no azedume da margem da sociedade.

Nesse cenário, é difícil não ficar fascinado pelo caráter de denúncia social que o gênero documentário se propõe e pela relação direta com os enredos delineados pela vida que minhas/meus estudantes já tinham. Restava agora ajustar as lentes para o objeto audiovisual. A densidade dos materiais me desafiou a didatizar e a criar tarefas que contemplassem a concentração dos conteúdos com o objetivo de atrair para o mundo audiovisual sem esquecer da criticidade e da expertise esperada desse gênero. Todo domingo, eu sentava em frente ao computador, acendia um incenso e iniciava as quase sempre dez horas de estudo e didatização dos materiais: ver um filme; anotar; tentar fazer relação com a vida das/dos estudantes; ler artigos; fazer jogo da memória com os conceitos da produção audiovisual; recortar 30 jogos da memória com 50 peças cada; mandar mensagem para o amigo que trabalha em TV; mandar e e-mail garimpando período de aula emprestado. Cinco da manhã da segunda-feira, ia cambaleando pegar o ônibus e passar uma hora e meia tentando equilibrar o universo de linguagem multimodal que eu tinha posto dentro da mochila.

Para cada oficina, planejei estilos distintos de aulas que seriam mais adequados: uma aula mais poética; outra mais crítica; menos séria e mais divertida; aula na rua e na avenida; aula de pesquisa e anotação; de escrita e fala; de observação e relato; aula pra tirar foto e para filmar de diferentes ângulos. Finalizados os encontros, eu tinha a certeza que Deleuze estava certo: aula é emoção e inteligência.

A atividade que propunha olhar fixamente durante três minutos para o colega foi uma das mais importantes do projeto. Cada um deveria atentar para cada detalhe, para cada atitude, para cada olhar desviado ou não da/do colega e depois escrever as percepções e os sentimentos de observar e ser observado. Exclamações como: "Eu nunca tinha percebido que teu olho tinha uma manchinha / que tu te veste assim / que tu tenta disfarçar o nervosismo mordendo os lábios" foram dominantes quando houve o compartilhamento dos textos. Aproveitei a deixa para destacar que a nossa vida é feita no detalhe: aquela decisão que parecia ordinária que mudou o dia; aquela pessoa para a qual tu deu oi no ônibus que virou tua melhor amiga; o documentário que tu viu que te fez virar vegano. Assim, teriam de começar a prestar atenção no seu cotidiano: Por onde e por quem passo todos os dias? Com quem falo? Quem é importante para o bairro? Qual é a minha história? O que tenho para falar? Qual é a minha revolta? Eu gosto de onde vivo? O que me move? O que conecta a minha vida com o meu curso e com a minha comunidade? Esse ajuste de olhar qualificou a trajetória; ouvi o registro da sensibilidade girando. Além disso, na mesma aula, as/os estudantes revelaram uma sensação de incômodo ao serem observados. Nesse momento, chegamos à conclusão de que quando faríamos nossas gravações, deveríamos deixar as/os participantes confortáveis, informando o motivo da filmagem, explicando que se quisessem não participar mais, tudo bem, que só usaríamos o que fossem liberar. Aproveitei para falar sobre ética e invasão de privacidade: esse seria o ponto principal no qual deveriam se debruçar. Nada se faz sem ética, não importa se o conteúdo ficaria melhor se fosse filmado escondido, se a pessoa não visse o produto depois. Ser ético é o mote do trabalho e da vida.

Em seguida, em outra oficina importante, escrevi no quadro uma frase que está na parede da minha casa: Mais importante que saber responder, é saber perguntar. Assim, iniciei a aula de como fazer entrevistas e, a partir da afirmação, fomos traçando hipóteses de o que uma pergunta bem elaborada poderia nos permitir acessar de uma pessoa, de uma história, de uma comunidade. Aqui, apresentei Eduardo Coutinho a partir de trechos de dois documentários: "Jogo de Cena" e "Edifício Master". Fomos anotando algumas perguntas que ele fazia e discutindo a genialidade da sequência de interrogação, de como ele se interessava de forma genuína pelas pessoas, de como fazia com que a entrevista fosse uma conversa. Propus que entrevistassem alguém do bairro, de casa, da família para saber um pouco de suas histórias. Saíram em polvorosa querendo imitar Coutinho com um bloco de notas em mãos.

Na etapa de pesquisa das temáticas, a maturidade social da turma veio à tona: era trio decidindo por abordar como é ser um idoso LBGTTI, decidindo por relatar o engajamento coletivo no carnaval do bairro Restinga; por contar a história de um ex-morador de rua; por reconstruir a criação da escola; por registrar a resistência das estudantes mulheres nos cursos considerados historicamente para homens no campus; por denunciar o esquecimento dos pobres pelos governantes; por escancarar o acesso restrito de espaços culturais ao centro da cidade; por vangloriar o amor entre pessoas do mesmo sexo e por explicitar o preconceito racial. Para fechar a etapa, decidi promover um encontro entre diferentes turmas para que minhas/meus estudantes pudessem apresentar as temáticas e escutar da comunidade escolar sugestões de abordagens de temas ou até mudanças dos mesmos. A turma estava tão sensível ao olhar do outro, que alguns grupos mudaram de tópico ou de roteiro de acordo com o que ouviram.

Voltar-se ao detalhe; tornar-se sensível ao outro e considerar a própria história; denunciar as revoltas individuais e coletivas; perguntar e ser ético na escuta. A educação muda, sim, a vida das pessoas.

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