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sua prática / relatos de prática

O percurso da escrita à luz do mediador

Eliana Costa Sausmickt

08 de agosto de 2023

Instituto Federal da Bahia

Eunápolis – BA

Sempre acreditei na capacidade de autoria de meus alunos, porque, em algum momento, um professor também acreditou no meu potencial como escritora. Sou fruto da escola pública e ouvia com a atenção de principiante as histórias mirabolantes contadas pelo meu franzino professor de Língua Portuguesa que, além de contá-las, instigava-nos a inventar outras tantas que transcendiam as folhas de papel.

Lembro-me das minhas primeiras escritas, ainda medrosas, mas impregnadas de impressões pessoais que registravam a minha identidade em cada linha desenhada, traduzindo o meu mundo imediato. Aos poucos, fui desvendando os meandros da Língua, encobrindo e descobrindo segredos das letras combinadas, eternizadas na escrita. Quando dei por mim, já escrevia em diário - em papel de pão, no caderno velho, na folha solta, no guardanapo esquecido sobre a mesa - a minha história reinventada em versos e prosa.

Segui o percurso do rio da vida que me levou de volta à escola pública com outro papel social: o de professora. Fisguei todos os fios de água que transbordavam em volta da minha formação, no desejo de despertar leitores e escritores à mancheia. No meio do caminho, descobri a Olimpíada de Língua Portuguesa que, desde 2008, contribui na formação de meus alunos enquanto leitores e escritores sobre o passado, o presente e o futuro.

Neste ano, especialmente, contei com novo entusiasmo: o de pertencer a outra instituição de ensino e o de conviver com outros alunos. No início do ano, revisitei os cadernos do professor para planejar as minhas ações e, embora já os conhecesse, os meus planos se vestiram de roupa nova, pois me vi como campo virgem. Levei em conta todas as sequências didáticas apresentadas a fim de apresentar o gênero crônica às minhas duas turmas de         primeiro ano.

Começamos as oficinas tardiamente, em meados do mês de maio, em função de um período longo de greve na instituição. Apresentamos a Olimpíada de Língua Portuguesa aos alunos e os convidamos para conhecer o gênero textual crônica, a partir da leitura de textos produzidos em anos anteriores por outros alunos autores. Os textos foram lidos sem dizer a autoria e, quando indagados sobre, muitos mencionaram nomes legitimados no mundo literário. Todos se surpreenderam ao saber que os textos eram de seus colegas de curso, de escola, de sala de aula.

O meu intento foi despertar a autoestima e a confiança de que eles poderiam ser autores lidos pela comunidade. A partir daí, deflagrou- se outro movimento: o de mostrar o que eles escreviam. Queriam saber o meu parecer, a opinião dos colegas. A cada aula, um novo texto.

O cotidiano da escola virou matéria-prima das crônicas. O olhar atento dos meus alunos voltou-se à fila no refeitório, ao comportamento dos alunos e professores em sala de aula, ao burocrático e ao administrativo da escola. Escreveram os primeiros textos antes de tratarmos de forma sistemática sobre o gênero propriamente dito.

Em contraturno, reuni aproximadamente oitenta alunos de primeiro ano para falar da crônica enquanto gênero discursivo e suas peculiaridades. Aproveitei o texto de Ivan Ângelo (2007) e crônicas diversas de autores conhecidos para descobrirmos o olhar aguçado de cada escritor, o cotidiano motivador, os tons cronísticos diversos, as marcas do tempo e do espaço, os aspectos da literariedade, os elementos da narrativa, enfim. Depois de tantas informações, chegou o momento de lançar o olhar atento a Eunápolis. Primeiro impacto: na visão de meu aluno, a cidade estava manchada de sangue. Bairros sangrentos, violência disseminada e tráfico de drogas. E o futuro? Nebuloso. Pedi então que esquecessem as imagens da cidade no google, e que cada um buscasse outro ângulo. Será que Eunápolis era sinônimo de violência por estar entre as cidades mais violentas do extremo sul baiano? Será que não havia aspectos positivos a serem mencionados? Com que olhos estavam vendo o lugar onde viviam? Com que sentimentos?

A imagem sangrenta rarefez-se e aos poucos a cidade oculta, diferente daquela que aparece nas páginas dos jornais, revelou-se em outras imagens. O Km 64 que trouxe progresso à região, a cidade cortada pela BR 101, as mulheres no ponto de ônibus, as festas culturais, o Pedrão*, a cidade vista pela janela do ônibus, as praças públicas, o cinema, os restaurantes, o campo de futebol, a rua das funerárias e do hospital materializaram-se em textos, propensos à metamorfose da reescrita. Não sou de Eunápolis, mas pude conhecer a cidade de perto através dos textos que li. A violência continuou como tema em algumas produções, mas a provocação suscitou a expressão de outras imagens e leituras.

Depois de escritos, realizei outro encontro para a audição dos textos. A leitura se deu em um espaço democrático, em que as produções se tornaram públicas para uma avaliação coletiva. À medida que eram lidos, eram comentados por mim e pelos alunos. Pedi que cada um, em casa, fizesse uma leitura atenta do texto produzido e o reescrevesse, antes de enviá-lo para uma segunda apreciação. E assim foi feito.

Uma semana depois, marcamos o nosso encontro semanal em um dos laboratórios de informática da escola. Era chegada a hora da reescrita individual a partir das minhas orientações. Nesta etapa, contei com a ajuda de dois monitores de Língua Portuguesa, para ajudar os alunos no aprimoramento do texto. Para tanto, projetei o roteiro de revisão da crônica, disponível no caderno do professor, a fim de que servisse de rota no percurso da reescrita.

Diante das várias possibilidades de reformulação, os textos foram ganhando forma, outros contornos, outros títulos e todos nós ficamos maravilhados com o resultado.

O lugar onde vivo foi reconhecido por professores convidados a nos ajudar na tarefa de pré-seleção dos textos. "Eu conheço esta rua", "é isso mesmo o que acontece naquele bairro", "quem escreveu este texto? Foi Fernando Sabino?", "os autores são alunos do 3º ano?", "nossa, estão escrevendo muito bem". Só de ouvir essas frases, senti-me gratificada pelo trabalho realizado. Os autores surgiram à mancheia como havia desejado no início da minha carreira docente.

Quando o diretor da escola postou a crônica escolhida pela comissão local, surgiu uma nova inquietação: E quanto às outras produções? O que farei com todas elas? Não posso engavetá-las, preciso publicá-las e dar a elas o direito de ganhar leitores. Por isso, nasceu mais um desejo: o de compilá-las num livro que já tem um título: Eunápolis em Crônicas.

No final do percurso como mediadora, encontrei o início. Não posso parar. Há muitos textos que ainda esperam ser escritos; tantos leitores que precisam ser convidados a assumirem este papel; tantas formas de ver o mundo que necessitam de (des)construção e tantos autores que precisam nascer em sala de aula, porque a língua pede passagem em forma de crônica, versos, memória e opinião. Nesta ciranda textual, sou apenas um instrumento.

* O “Pedrão” trata-se de um evento ocorrido anualmente na cidade de Eunápolis, que traz artistas nacionais de diferentes estilos musicais.

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