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sua prática / relatos de prática

A boniteza do ato de escrever

Rosa Maria Martins Pereira

08 de agosto de 2023

Escola Municipal Cristóvão Pereira de Abreu

Rio Grande/RS

Sou professora do campo. Trabalho em uma ilha a sessenta quilômetros da cidade. A comunidade onde a escola está inserida é composta em sua maioria por pescadores. Estes moradores têm enfrentado ao longo dos últimos anos muitos problemas: enchentes, desemprego e escassez de camarão e pescado.

Assim que comecei a trabalhar na Ilha percebi que a comunidade apresenta gostos bem distintos. Amam seus times de futebol e demonstram em simples gestos e palavras uma rivalidade ferrenha. Adoram o Carnaval e formaram em seus salões, blocos e cordões que se enfrentam nessa época do ano. É uma disputa onde demonstram toda sua paixão ao clube e por extensão ao time de futebol.

Pensei que seria bem fácil levar meus alunos da oitava série a escrever crônicas porque conheciam bem os temas de maior interesse da comunidade. Ledo engano!

Diziam, durante as aulas, conforme eu apresentava e trabalhava com a sequência didática: "É muito difícil escrever crônica, professora!", "A rivalidade dos times não dá um bom texto!", "Nunca vou conseguir". Propus para facilitar a escrita iniciar um parágrafo de uma crônica da mesma maneira que Fernando Sabino o fez em "A última crônica".

“Vamos lá, pessoal! Coloquem assim ‘A caminho da escola...’", “Não vejo nada que dê crônica quando saio de casa e venho pro colégio” - dizia uma estudante. “Eu também não. Subo no ônibus escolar, sento no banco e em seguida chego na escola” - dizia um aluno, sem nenhum entusiasmo. “Gente, não acredito que vocês passam pelos mesmos lugares todos os dias e não observam nenhuma diferença. Nada acontece. O que é isso? Vamos dedicar um olhar diferenciado às coisas e às pessoas!”, “A senhora está viajando” - disse uma aluna bem espevitada e piadista.

Neste momento, pedi a todos que refizessem mentalmente o trajeto de casa até a escola, fosse de ônibus ou a pé. Em seguida aconteceu exatamente o que eu queria. Eu só escutava "É mesmo!", "Vi o marido da fulana brigando com a mulher na frente da filha, coitadinha", "Eu vejo sempre, bem cedo, vários pescadores remendando as redes", "Ah, eu vi uma ambulância chegando na casa do meu vizinho". Não escreveram um parágrafo, escreveram um texto completo. Na hora da correção, percebi que neles havia algumas características do gênero, porém ainda não era crônica. Mesmo assim, esbocei um sorriso de satisfação. Estava no caminho.

Quando devolvi as produções textuais, aguardei alguns instantes antes de fazer comentários coletivos. Queria saborear a reação deles aos bilhetes orientadores que havia lhes escrito. Gostaram das dicas e foram logo perguntando se podiam reescrever o texto. Eu, logicamente, respondi: "É pra já!". Começaram a reescrita muito empolgados. Encontraram um caminho. Tinham orientações que lhes ajudariam bastante na tarefa.

A partir deste momento o trabalho tornou-se leve e prazeroso. Seguia a sequência didática, apresentava as oficinas, liam as crônicas do material da Olimpíada e outras que levava para aproveitar ao máximo aquele momento de gosto pela leitura. Apropriaram-se de seus textos. Conheceram-se como autores, contudo havia sempre uma fala constante: “Não vejo nada de bonito aqui na ilha! Não acontece nada de interessante! Sempre o mesmo marasmo! Não vai dar crônica, professora!”.

Continuei meu trabalho, mesclando ora o material da Olimpíada ora poemas de Manoel de Barros. Queria que eles tivessem outro olhar para o lugar onde vivem e através da poesia esperava encantá-los. Gostaria que eles percebessem a boniteza da Ilha da Torotama, a alegria, a fé e o trabalho das pessoas da comunidade. Citava os versos do poeta: "As palavras me escondem sem cuidado / aonde eu não estou as palavras me acham / há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas". Motivava-os muito. Desejava que encontrassem uma boa história para narrar.

Em uma tarde bem fria de junho, sou chamada na secretaria para conversar com o coordenador pedagógico e demoro a retornar à sala.

Neste ínterim eles me surpreendem e me fazem perceber porque continuo a lecionar. São trinta e oito anos em sala de aula.

Não é pouca coisa! Entro na sala e olho para o quadro e lá estão escritos vários versos, em diferentes letras. Leio baixinho e digo com orgulho: "Vocês escreveram um poema coletivo sobre o lugar onde vivem, está demais!”. Faz-se um silêncio gritante. Um a um lê uma estrofe ou alguns versos. Leitura em tom solene. Ao final batem palma veementemente. Neste momento tornaram-se autores. Gostaram do que escreveram. Encontraram a boniteza do ato da escrita. Descobriram-se e se deleitaram.

Ainda pairava uma dificuldade no ar frio e úmido do inverno. Escrever crônica sobre o quê? Não há um jornal, uma rádio comunitária, argumentavam os estudantes da oitava série. Uma menina diz que vai escrever sobre um morador que na opinião dela "se achava jornalista, fazia postagens no Facebook". Todos aprovam a sugestão e posso dizer que as crônicas escritas deram trabalho à Comissão Julgadora Escolar. Acharam muito boas, pois algumas tinham um tom crítico, outras um tom de humor e outras um tom lírico.

Organizei uma Mostra Cultural. Fizemos um porão das memórias com as fotos e os textos trazidos pelos alunos. Eles escreveram suas crônicas em folhas A3 e deixamos em exposição. Organizamos um Sarau Poético – “Cantos e Encantos da Ilha da Torotama”. Recitaram seu poema coletivamente para toda comunidade, a qual sentiu orgulho de seus jovens estudantes. A semente foi lançada e deu bons frutos. Enquanto escreviam sobre o lugar onde vivem pensavam e refletiam sobre a economia do lugar, mostrando muita preocupação com a safra de camarão, estudaram a geografia, a religiosidade, as práticas esportivas, as festas dos santos populares do mês de junho e a tradição dos ternos dos santinhos que não se vê mais hoje em dia. Foi um trabalho de descobrimento sobre origens, tradições, pessoas, cultura e, acima de tudo, valorização de sua história.

Como professora posso afirmar que por meio das oficinas também me redescobri, tanto na parte pedagógica como na parte literária. Fiz diversas saídas de campo com minhas turmas, entrevistamos moradores sobre vocábulos usados na pesca e no cotidiano que não se encontram em outros lugares. Escrevi um artigo sobre o vocabulário da ilha que intitulei de "Léxico torotameiro". Pedi também aos alunos para pesquisarem sobre as lendas que os moradores mencionam na ilha e estou escrevendo uma novela onde eu reúno esses relatos à história de colonização da ilha, uma narrativa onde se funde história e ficção. Aqueles que pensam que se perdem muitas aulas trabalhando um único gênero mal sabem do equívoco que estão cometendo. Trabalhar com sequência didática sobre um tema que aprofunda o pertencimento traz à tona muitos conteúdos, não só temáticos, pois se trabalha também a gramática a qual são tão apegados e tiram a oportunidade de melhorar, no mínimo, a autoestima destes estudantes.

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