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sua prática / relatos de prática

Travessia para a crônica

Rozely Martins Costa

08 de agosto de 2023

CEF 209 de Santa Maria

Brasília/DF

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia [...]". Inicio com as palavras de Pessoa para dizer que 2016 foi o ano de abandonar o velho e fazer uma travessia para o novo.

Saí do interior de Goiás e mudei-me para Brasília em fevereiro, abraçando uma realidade, cidade, escola e alunos novos. As mudanças costumam vir acompanhadas de novidades e desafios. Sempre havia trabalhado com EJA, mas neste ano minhas turmas seriam de ensino regular. Era a oportunidade de participar da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro! A divisão da disciplina de Língua Portuguesa é diferente no DF; a mim coube o trabalho com leitura e produção de texto, mas isso implicava um outro desafio: o tempo, pois eu contava com apenas uma aula por semana para leitura e escrita nas turmas de 9º ano.

Mas o novo me deixou apreensiva: como vou trabalhar o tema "O lugar onde vivo" se esse lugar ainda não vive em mim? Era preciso "abandonar as roupas usadas" e abrir-se ao devir. Conhecer os alunos era o primeiro passo. Organizei uma dinâmica para que escrevessem sobre o que gostavam de fazer, de ler; além disso, relataram seus desejos, seus sonhos para o futuro, o que pretendiam ser. Além de conhecê-los melhor, saberia como escreviam. Constatei que pouquíssimos alunos tinham o hábito de ler, e escrever era restrito às atividades da escola. Mas era preciso acreditar no potencial de estudantes marcados pela falta e cercados pela violência. Eu acreditava na minha vontade de fazer um trabalho significativo na vida deles.

Mas o novo me deixou apreensiva: como vou trabalhar o tema "O lugar onde vivo" se esse lugar ainda não vive em mim? Era preciso "abandonar as roupas usadas" e abrir-se ao devir

Então era hora de começar para valer os “jogos olímpicos”. A sensibilização seria um momento essencial para o sucesso do trabalho. "A última crônica", de Fernando Sabino, é um texto que consegue tocar corações. Era preciso encantá-los com uma história emocionante. Em algumas turmas, os comentários foram muito positivos. Em outras nem tanto! Insisti. Era preciso ler diferentes crônicas para que pudessem conhecer os vários tons da linguagem escrita. Percebi muita dificuldade para compreenderem as crônicas de autores como Machado de Assis, propostas pelo Caderno do Professor. Resolvi propor uma atividade de leitura de crônicas de Moacyr Scliar, escritas a partir de notícias. Esses textos também poderiam nos ajudar em relação ao tema; algo que me inquietava desde o início. Eu não conhecia os hábitos da minha nova cidade: como viviam as pessoas? Quando tocava em assunto do cotidiano do lugar, os alunos só falavam em violência. Meu coração apertava, eu relutava em aceitar essa temática, e escrever sobre isso era confirmar a triste realidade da cidade de Santa Maria (DF).

Partimos para pesquisa de notícias, fatos que estivessem em voga. Na aula seguinte, a maioria havia feito a pesquisa e registramos os temas num painel. Infelizmente, a constatação do tema violência era inevitável: assaltos, furtos, perseguição a adolescentes. Partimos então para a primeira escrita. Retomei a definição do gênero, assistimos a um vídeo que falava sobre crônica. Começaria a dialogar com as notícias, os fatos pesquisados. Alguns tiveram dúvidas. Fui orientando sobre o tom e o foco narrativo. "Professora, o que é mesmo crônica?" - lembrei do Professor Augustinho, numa oficina em Goiânia, em 2009: "Para dizer se é crônica, depende do suporte", ou Sabino: "Crônica é tudo que o autor chama de crônica", ou ainda: "É crônica se não é aguda". Esta última me fez gargalhar, mas tentei ser prática. Expliquei do meu jeito: começaremos por uma narrativa em que um narrador-personagem ou observador conte uma história a partir do seu olhar; olhar sensível e que faça o leitor refletir sobre uma temática de nosso cotidiano. Tinha muito a ser feito para que a ocasião fizesse o escritor.

Tinha muito a ser feito para que a ocasião fizesse o escritor

A leitura dos textos revelou a necessidade de trabalhar melhor as características da crônica: a linguagem figurada, o inusitado, o tom. Os alunos ainda não haviam entrado na alma da crônica, os textos eram como notícias, relatos. Também eram um desafio a pontuação, a ortografia e... o tempo. Além disso, o tema ainda martelava em minha mente. Devia deixá-los falar sobre fatos de violência? Ou tentaria o amor, saudade, escola, namoro, futebol? Era preciso ler outras crônicas, observando todos os elementos constitutivos. Fizeram apresentação oral dos resultados. Um sucesso! Estavam se tornando leitores atentos! Fechei essa aula com a audição da crônica “Cobrança”, de Moacyr Scliar, que seria analisada na aula seguinte.

Continuamos as oficinas com foco na linguagem, figuras de linguagem, foco narrativo e tom. A pontuação mereceu destaque. Retirei dos primeiros textos escritos trechos para que pudéssemos analisar os efeitos de sentidos possíveis produzidos pela presença ou ausência de pontuação. Ficaram motivados, percebendo as escolhas que poderiam ser feitas. Falamos sobre a pontuação do discurso direto e da linguagem coloquial.

Tive dificuldade para trabalhar a escrita coletiva: o barulho e as discussões acaloradas foram inimigos do pouco tempo que tínhamos. Retomamos as notícias anteriores e outros fatos que estavam "na boca do povo" para planejarem a crônica. Muitos sentiram dificuldade e preferiram deixar a história fluir. Nesse dia, decidi que se a crônica deve ter como mote os fatos do cotidiano, os costumes do lugar, as pessoas em seu dia a dia, não era justo excluir o que latejava em seus corações. Violência é a dura realidade das cidades que compõem Brasília. Mas outros temas me surpreenderam: meninas no futebol, convivência com idosos, convivência familiar, solidariedade, entre outros.

Li cada um dos quase 250 textos, fazendo algumas orientações e comentários. Propus a reescrita, considerando os critérios de correção da Olimpíada. Em muitos, foi possível perceber que o olhar de um "fotógrafo" havia capturado o momento. A sensibilidade estava presente. Outros ainda estavam no caminho. Estávamos felizes com o trabalho. Já se aproximavam as férias, então era preciso escolher os textos. Selecionei alguns para mais uns retoques. Acabou que a "ocasião fez o escritor": Uerley, garoto tímido, quase invisível em sala de aula, havia sido assaltado a caminho da escola e fez disso a oportunidade para escrever um texto com leveza, ironia e até com um certo humor. Foi escolhido pela comissão e assim conseguiu sua visibilidade com sensibilidade. Um achado!

Não imaginaríamos que chegaríamos tão longe. Mas foi preciso uma mudança para que a ocasião nos fizesse semifinalistas. Um sonho realizado! E assim, acreditando que é preciso lançar um olhar sensível às oportunidades que a vida nos oferece, bem como dar voz a todos os alunos, detentores de grande potencial. Parafraseando Clarice, é essencial arriscar para alcançar a salvação, o sucesso, a vitória. Assim, fiz minha travessia pessoal e profissional. Muito obrigada à Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.

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