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Página literária: A última flor do Lácio

Página literária: A última flor do Lácio

Fernando Sabino

04 de agosto de 2023

Estou numa sala de aula do Ginásio Mineiro, em Belo Horizonte. Acabamos de entrar na classe em fila, como soldados. O modelo de nosso uniforme, aliás (de cor cáqui, calça comprida e dólmã), é de nítida inspiração militar.

Eis que chega o professor. Todos nos erguemos num movimento único e só tornamos a nos sentar quando ele assim o ordena com um gesto de mão, já aboletado à sua mesa, sobre um estrado. É um velho magro, crânio pelado, olhos suaves por detrás dos óculos grossos, terno escuro meio surrado, voz indiferente e monótona. Ele agora está fazendo a chamada e cada um se levanta dizendo presente. Todos têm um número, o meu é o onze.

Mas ele se dirige a nós pelo sobrenome e nos chama de senhor: Senhor Sabino, sente-se direito; Senhor Pellegrino, tenha modos. Este, sempre irrequieto na carteira à minha frente, volta-se para me dizer um gracejo, e corremos ambos o risco de ser convidados a sair da sala, como frequentemente acontece, antes que comece a aula.

É uma aula de Português. Sujeito, predicado e complemento. Concordância, regência. Figuras de retórica. Idiotismos linguísticos. Já aprendemos o que é anacoluto – não é um palavrão. Aprendemos outras coisas também – algumas que cheiram a dentista, como próclise, mesóclise. Só que dentro em pouco esqueceremos tudo.

As funções do quê, por exemplo, que é a matéria da aula de hoje. De que me adiantará na vida saber que o que pode ser tudo na oração, menos verbo? “Pode ser até substantivo: como nesta frase que acabei de dizer” – acrescenta o professor. O quê? Ouço uma mosca zumbindo no ar. Vejo o Senhor Pellegrino à minha frente a olhar distraído pela janela um pardal pousado na grade que circunda o ginásio. E o professor falando com voz arrastada, de vez em quando se arrastando ele próprio até o quadro-negro para escrever qualquer coisa. E o ruído do giz na lousa me arrepiando a pele. Os olhos me pesam de sono, deixo pender a cabeça. O aluno de número onze está dormindo.

Acordo de súbito com uma tremenda gritaria. Olho ao redor e me vejo cercado de alunos também de doze e treze anos, mas com uniformes esportivos, camisas leves, calças curtas – e saias, porque há meninos e meninas misturados. Alegres e veementes, estão todos respondendo ao mesmo tempo a uma pergunta do professor. A sala de aula é outra, outros são os alunos e – verifico estupefato – o professor na verdade é uma professora: uma jovem de calças compridas e blusa fina, de pé, apoiada na mesa, um livro aberto na mão. Tem cabelos louros, olhos claros, é de despertar a admiração, para dizer o menos, do aluno número onze do Ginásio Mineiro.

Mas já não estou no Ginásio Mineiro e sim num colégio do Leblon, em 1974.

É também uma aula de Português. O plá, como dizem os alunos, vem a ser comunicação: Comunicação em Língua Portuguesa para a 7ª série do Primeiro Grau. Equivale ao nosso 2º- ano de ginásio, é o que me informam. A autora se chama Magda Soares: atualmente uma das maiorais do livro didático, é o que também me informam. Outra das melhores, segundo ouvi dizer, é Maria Helena Silveira. Este negócio de livro didático eu não entendo – só sei que o assunto é controverso e explosivo. A apresentação gráfica é admirável – disso entendo alguma coisa, afinal já fui editor.

E aqui termina meu entendimento: que diabo vem a ser isto? História em quadrinhos? Re vista infantil? Passo os olhos pelos livros ricamente ilustrados em cores. (Num deles dou até com um texto de minha autoria.) Não é preciso muito esforço para perceber que se trata nada mais nada menos que de uma revolução. Parece que enfim estão tentando tirar a camisa de força que tolhia o ensino do Português no Brasil.

A última flor do Lácio inculta e bela estava simplesmente murchando. O que se ensinava nos colégios em matéria de Português era apenas para nos fazer desprezar para sempre a nossa língua. Ninguém aguentava ler Garrett, Herculano, Camilo – para não falar em Vieira, Frei Luís de Sousa ou mesmo Gil Vicente – depois das implacáveis análises lógicas a que éramos submetidos. Dos portugueses, só o Eça escapou, e assim mesmo porque escritor realista não tinha vez. E quanto aos brasileiros, ficamos sabendo por Euclides da Cunha que o sertanejo era antes de tudo um forte; Os Sertões era antes de tudo um chato, principalmente a primeira parte. De Machado de Assis, foi-nos dado ler “Soneto a Carolina”, o poema “A Mosca Azul” e “A Pêndula” – só que sem a primeira frase do célebre capítulo: “Saí dali a saborear o beijo”. Quando poderiam muito bem nos ter iniciado nos segredos da prosa do grande lascivo e sua voluptuosidade do nada com o capítulo anterior do mesmo Brás Cubas sobre o próprio beijo. Ou o de Dom Casmurro: Capitu abrochando os lábios...

Isso, quanto à prosa. E que dizer da poesia? Nunca conseguimos passar das armas e dos ba rões assinalados: Os Lusíadas se tornou para nós um pesadelo, porque ninguém sabia onde diabo se escondia o sujeito da oração naqueles versos retorcidos. É verdade que nos impingiam, de mistura com versinhos piegas de poetas medíocres, alguma coisa melhor de Bilac, Castro Alves, Raimundo Correia, Cruz e Souza. Mas não sabíamos distinguir o que era bom do que era ruim. O bisturi da análise sintática ia arrebentando versos, violentando palavras, assassinando a poesia dentro de nós.

E o velho professor sentado à minha frente, com ar de desgosto, a dizer que poesia moderna é um negócio de pedra no meio do caminho e outras bobagens. Pois vejam só se isso lá é poesia: café-com- -pão, café-com-pão, café-com-pão... Seu sorriso irônico se funde ante meus olhos ao da jovem professora do Leblon, lendo para os alunos encantados o mesmíssimo poema de Manuel Bandeira, que o livro de Magda Soares apresenta sob a sugestiva rubrica: “Vamos sentir a poesia das palavras”.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades – como dizia o dos barões assinalados: com uma professora como esta, no nosso tempo todos nós seríamos poetas.

Agora estou com 18 anos e sou eu o professor. No Instituto Padre Machado, 3º- ano ginasial: mais-que-perfeito do indicativo, pretérito imperfeito do subjuntivo, verbos defectivos. E eu tentando meter tudo isso na cabeça dos meninos. Tenho de ficar sentado, não posso fumar – a disciplina é rígida, inclusive para os professores – mas como fazer com que aprendam uma coisa chamada preposição subordinada conjuncional ou o que venha a ser verbo incoativo?

Era um precursor do que estou vendo hoje, fascinado, nesta aula a que vim assistir de pura curiosidade: uma professora cercada de alunos também fascinados, porque ela lhes ensina que as palavras têm vida e os inicia na arte da convivência através da comunicação. Ou, como diz Magda Soares no seu atraente livro: “Aprendemos a língua usando-a, não falando a respeito dela. Saber teoria gramatical – sintaxe, morfologia – não significa saber comunicar-se bem. Usar a língua e não teorizar sobre ela”.

Pois o velho professor do Ginásio Mineiro parece desconsolado, porque o aluno número onze acaba de dizer que o se de uma oração é um pronome, quando está na cara que se trata de uma partícula apassivadora.

De minha parte, também sinto desconsolo, pois estou diante do quadro-negro escrevendo para os meus alunos uma lista de verbos irregulares, e, quando me volto, dou com um deles dormindo. Em vez de acordá-lo como faziam comigo, prefiro sair de mansinho, dizendo adeus para sempre aos demais alunos e ao ensino de Português. E continuo na sala de aula: agora os meninos me envolvem de perguntas, sob a risonha e franca aprovação da professora, a quem chamam familiarmente de “tia” e “você”. Sinto uma ponta de melancolia, finda a aula, ao vê-los partir em alegre algazarra: gostaria de ser um deles.

É com este sentimento que me despeço de sua linda mestra, e somos três: eu, o professor de dezoito anos e o aluno número onze. Fernando sabino. Gente. 4ª- ed. rio de Janeiro: record, 1996.

Saiba mais sobre a vida e a obra do cronista, romancista, contista e editor Fernando Tavares Sabino (Belo Horizonte, MG, 1923 – Rio de Janeiro, RJ, 2004), acessando o site http://fernandosabino.com.br.

Revista Na Ponta do Lápis
Ano IX
Número 22
Agosto de 2013

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