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sua prática / reflexão teórica

Machado de Assis, um escritor negro

Esdras Soares

26 de abril de 2023

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 1839, no Morro do Livramento, Rio de Janeiro. A casa em que viveu era próxima ao Valongo, região de desembarque de africanos escravizados entre os séculos XVIII e XIX. Machado era negro, neto de pessoas escravizadas que haviam conquistado a liberdade e filho de Francisco José de Assis e de Maria Leopoldina Machado da Câmara.

O escritor não teve acesso à educação formal e quem lhe ensinou as primeiras letras foi sua madrasta, Maria Inês, que o criou após a morte da sua mãe, ainda na infância. Quando ele tinha  12 anos de idade, seu pai também faleceu, e ele passa a ajudar a madrasta vendendo doces nas ruas. Aos 16 anos, começa a trabalhar como aprendiz na Imprensa Nacional e, mais tarde, vai para a Livraria Paula Brito, um importante local de encontro entre jornalistas e escritores da época. Depois, ingressa no funcionalismo público, setor onde fez carreira.

Machado inicia sua trajetória como escritor publicando crônicas em jornais. Depois, publica contos e romances que o levaram a um amplo reconhecimento ainda em vida. Hoje, o fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL), considerado o maior escritor brasileiro, é o expoente máximo do Realismo no país e é conhecido internacionalmente, tendo publicado dezenas de obras, entre romances, contos, crônicas, poemas, dramaturgia e crítica literária e teatral. Por isso, está sempre presente nos materiais didáticos e nas propostas de leitura literária nas escolas.

O que nem todas as pessoas sabem é que Machado de Assis era um homem negro. Ao perguntar a uma turma de estudantes, por exemplo, a respeito da imagem que inicialmente lhes vem à cabeça ao pensarem em Machado (ou sobre o “maior escritor brasileiro”), provavelmente surgirá a figura de um homem branco1. Isso acontece porque há uma predominância de obras literárias publicadas por homens brancos, mas também porque o autor passou por um processo de branqueamento ao longo do tempo.

Nas próximas linhas, vamos explorar as origens históricas dessa questão, discutir sobre porque é relevante saber que Machado era um escritor negro e refletir sobre como podemos adotar essa perspectiva para elaborar propostas de leitura das suas obras.

As representações de Machado de Assis

Na segunda metade do século XIX, chegaram ao Brasil diversas teorias raciais, também chamadas de darwinismo racial, que diziam que havia diferenças inatas entre brancos e não-brancos, inclusive do ponto de vista biológico. Essas teorias eram predominantes nas ciências sociais, na biologia e na medicina, servindo de base para a eugenia, que defendia a separação e o isolamento das populações, estimulando a reprodução da branca, tida como superior, e buscando o extermínio da negra e da indígena, consideradas inferiores.

A eugenia, por sua vez, fundamentou a teoria do branqueamento, que afirmava que o Brasil se tornaria um país totalmente branco no futuro. Isso seria possível por meio de uma política de imigração implementada pelo governo brasileiro, que trouxe milhões de europeus para o Brasil com a intenção de que se misturassem à população negra, que desapareceria gradualmente. Os seguidores dessas ideias racistas acreditavam que o país se fortaleceria com características europeias e que a miscigenação era a chave para tornar o Brasil uma nação branca, tanto em seu fenótipo quanto na sua cultura.

Assista aos vídeos da professora Lilia Schwarcz sobre a entrada das teorias raciais no Brasil e as teorias do branqueamento que orientaram as políticas de imigração do governo brasileiro e seus reflexos na atualidade.

Além da estratégia de imigração, o branqueamento se manifesta, também, na representação de pessoas negras como brancas, como é o caso de Machado de Assis (a começar por seu atestado de óbito, que dizia que ele era de “cor branca”). Um dos episódios mais conhecidos é o que envolve o historiador e crítico literário José Veríssimo e o político e jurista Joaquim Nabuco2. Em 1908, logo após a morte de Machado, Veríssimo escreveu um artigo para o Jornal do Comércio elogiando as qualidades do escritor e o chamando de “mestiço” e “mulato”. O artigo obteve bastante repercussão e Nabuco lhe deu uma resposta enfática, em uma carta pessoal, afirmando que Machado era branco.

Fonte: https://www.flickr.com/photos/arquivonacionalbrasil/48632106826.

Embora isso tenha acontecido no passado, o branqueamento de Machado ainda é visto hoje, como mostra o caso da propaganda da Caixa Econômica Federal exibido em 2011. O objetivo da publicidade era destacar seu vínculo com a história brasileira, como o primeiro banco do país, apontando que Machado era um de seus clientes. No vídeo, o ator que representa Machado era branco. Após inúmeras críticas, a Caixa pediu desculpas à sociedade e refez o comercial, desta vez com um ator negro, com um tom de pele mais próximo ao que teria o escritor.

Assista ao vídeo comercial da Caixa Econômica representando Machado de Assis como um homem branco e ao relançamento do mesmo comercial com um ator negro representando o escritor:

Da mesma forma, ainda é relativamente comum ver materiais didáticos, livros e textos na internet retratando Machado como um homem branco. Ao mesmo tempo, poucas pessoas conhecem imagens diferentes desse tipo de representação. Na imagem abaixo, por exemplo, vemos um exemplo significativo. A fotografia, sem identificação de data e autor, foi trazida a público inicialmente pelo biógrafo Raymundo Magalhães Júnior, em 1957. A imagem mostra um Machado com traços negros e pele escura.

Fonte: Acervo do Museu Nacional de Belas Artes

Tendo em vista essa questão das imagens do escritor, em 2019 a Faculdade Zumbi dos Palmares lançou a campanha Machado de Assis Real3, colorindo uma imagem de 1893, disponível abaixo. Para os organizadores da campanha, trata-se de uma “errata histórica feita para impedir que o racismo na literatura seja perpetuado”.

Fonte: http://www.machadodeassisreal.com.br/

As relações raciais na obra de Machado de Assis

Além do branqueamento do fenótipo de Machado de Assis, há outro de igual ou maior intensidade: o branqueamento de sua atuação política e de sua literatura. Por muito tempo, o escritor foi visto como alguém que compactuava com as classes dominantes da época, além de não se posicionar contra a escravidão e ignorar a realidade da população negra no Brasil, embora essa lhe tocasse diretamente.

No entanto, nas últimas décadas, vem ganhando força uma leitura que considera, entre outras questões, sua condição de homem negro, livre, letrado e politicamente atuante em uma sociedade escravocrata. O escritor era um homem público e costumava dar seus passos sempre com muita cautela. Assim, Eduardo de Assis Duarte, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), caracteriza Machado como um escritor que utiliza “estratégias de caramujo”, optando sempre pelo confronto às escondidas: “Machado nunca opta pelo confronto aberto. Ao contrário, vale-se da ironia, do humor, da diversidade de vozes, e de outros artifícios para inscrever seu posicionamento” (DUARTE, 2009, p. 253).

Dessa forma, embora não esteja presente em sua obra literária uma voz assumidamente negra (ao contrário de outros escritores negros que foram seus contemporâneos, como Luiz Gama e Cruz e Sousa), Machado não aderiu ao discurso da branquitude e não reproduziu a desumanização da população negra que havia na época. O autor, assim, rompia o círculo perverso de reprodução de preconceitos em relação a esse grupo.

A literatura de Machado de Assis é conhecida e reconhecida por mergulhar de forma crítica, complexa e aprofundada nas relações sociais do Brasil. E faz isso a partir de uma perspectiva muito particular, pois sua produção não deixa dúvidas de onde o autor fala: trata-se de um homem negro, de origem pobre e nascido em uma sociedade escravocrata; e esta condição se manifesta na sua produção literária.

Possibilidades de leitura de Machado de Assis na escola

Considerando a perspectiva que temos explorado até aqui sobre Machado de Assis e tendo em vista que o autor era consciente de seu protagonismo na cultura e na sociedade brasileira, é possível lançar um olhar mais apurado para os seus textos que levamos para a escola. Geralmente, ao abordar a obra machadiana, fala-se sobre o trabalho com a linguagem, a ironia, o sarcasmo, o cinismo, o humor, a crítica à burguesia, entre outros aspectos.

De fato, as características elencadas acima são marcantes em sua obra e, por isso mesmo, são constantemente mobilizadas pelo autor ao abordar a temática racial e criticar ferozmente a escravidão e a desumanização de pessoas negras. Exemplos disso não faltam em suas obras literárias.

Entre seus romances, podemos destacar: Memorial de Aires (1908), Memórias póstumas de Brás Cubas (1880), Iaiá Garcia (1878), Helena (1876) e Ressurreição (1872). Nessas obras, têm lugar os problemas vivenciados pelas pessoas negras e, embora ocupem papéis secundários, elas são representadas com traços de humanidade – diferente de outras obras literárias do período, como dissemos anteriormente.

Em seus contos, a condição das pessoas negras é tratada de maneira mais explícita e são denunciados os horrores da escravidão. São inúmeros os exemplos de contos que tratam dessa temática, inclusive bastante conhecidos, como “Pai contra mãe” (1906), “O caso da vara” (1899), “O Espelho” (1882), “Mariana” (1871) e “Virginius” (1864).

Por fim, destacamos que foi na crônica que Machado criticou de maneira mais contundente a escravidão e a podridão da elite escravista. Vale ressaltar que esses textos eram publicados em grandes jornais, sendo que eles eram o principal meio de comunicação da época e contavam com grande circulação entre a população letrada.

Dessa forma, levando em conta os textos indicados acima, é possível desenvolver propostas de leitura das obras de Machado de Assis que o entendam como um escritor negro que aborda em seus textos as tensões raciais brasileiras e a escravidão.

  1. Leia a entrevista “Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro”, com a professora Regina Dalcastagnè, sobre um estudo realizado pelo Grupo de Estudo em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB) que busca traçar o perfil do romancista no Brasil.

  2. Leia o artigo “A Caixa Econômica Federal, a política do branqueamento e a poupança dos escravos”, de Ana Maria Gonçalves, sobre o episódio envolvendo as personalidades José Veríssimo e Joaquim Nabuco e o processo de branqueamento sofrido pelo escritor Machado de Assis.

  3. Leia mais acessando a notícia “Campanha recria foto clássica de Machado de Assis e mostra o escritor negro: ‘Racismo escondeu que ele era’”, publicada no Portal Geledés.

Referências

BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2014.

 

CUTI. Literatura Negro-Brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.

 

DUARTE, Eduardo de Assis. Estratégias de Caramujo. In: Machado de Assis: afro-descendente - escritos de caramujo [antologia]. Rio de Janeiro / Belo Horizonte: Pallas / Crisálida, 2009.

 

OLOPES, Elisângela Aparecida. Machado de Assis. In: Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XX. Rio de Janeiro: Pallas, p. 61-65, 2014.

 

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Sobre o autor

Sobre o autor

Esdras Soares é bacharel, licenciado e mestre em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), com pesquisa sobre literatura e educação das relações étnico-raciais. Contato: esdras.soa@gmail.com.

 

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