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Os documentários entraram na aula de Língua Portuguesa. E agora?

Os documentários entraram na aula de Língua Portuguesa. E agora?

texto - Herbertt Neves; ilustração - Criss de Paulo

07 de agosto de 2023

Histórias de pertencimento

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Herbertt Neves é professor de Língua Portuguesa e Linguística na Unidade Acadêmica de Letras, da Universidade Federal de Campina Grande.

As múltiplas possibilidades de linguagem já estão presentes em nosso cotidiano há tanto tempo, que nem mesmo temos ideia de quando foi a primeira vez em que ouvimos uma música, assistimos a um filme, ou até quando mandamos a primeira mensagem a alguém por meio do nosso celular. É fato, pois, que a diversidade de letramentos já é uma marca das práticas comunicativas estabelecidas em nossas interações cotidianas. Com o advento da internet, isso ganhou um impulso nunca antes visto, e passamos a ter contato com a ressignificação de antigos gêneros textuais e o surgimento de novos.

No ensino de Língua Portuguesa, entretanto, o trabalho com esses multiletramentos foi tardio. Só mesmo no final da década de 1990, começou a se falar mais nas práticas de linguagem digital, e ainda assim de maneira tímida. Daí, formou-se um efeito em cascata no ensino de Língua Portuguesa: da implantação na formação continuada de professores, passando pelos materiais didáticos e pela sala de aula, para, por fim, chegar à formação inicial. Nada mais natural, então, do que o nosso conhecido receio, enquanto professores, em lidar com esses “novos gêneros” na nossa prática pedagógica.

As novas gerações têm mais familiaridade com os textos que circulam on-line, e é aí que entra a grande questão: às vezes, nossos alunos têm mais propriedade que nós para discutir e produzir gêneros como os comentários do Facebook ou vlogs que circulam no YouTube. Há um detalhe, no entanto, que passa despercebido nessa história: o simples contato com o gênero (em geral, o que acontece no cotidiano dos alunos) não garante o profundo conhecimento nem a análise crítica desses textos por parte de qualquer usuário da língua. E é aí que entra o nosso papel como professores!

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2018, p. 68) destaca:

As práticas de linguagem contemporâneas não só envolvem novos gêneros e textos cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos, como também novas formas de produzir, de configurar, de disponibilizar, de replicar e de interagir. As novas ferramentas de edição de textos, áudios, fotos, vídeos tornam acessíveis a qualquer um a produção e disponibilização de textos multissemióticos nas redes sociais e outros ambientes da Web. Não só é possível acessar conteúdos variados em diferentes mídias, como também produzir e publicar fotos, vídeos diversos, podcasts, infográficos, enciclopédias colaborativas, revistas e livros digitais etc.

 

Em contato com essas observações, compreendemos que nosso trabalho, enquanto professores de Língua Portuguesa, vai além de permitir aos alunos o simples contato com gêneros digitais. A aula de Língua Portuguesa deve formar cidadãos críticos, autônomos em todas as esferas de atuação social, capazes de manipular os gêneros em situações reais de uso e utilizarem-se desses mesmos gêneros para as finalidades que mais lhes sejam úteis. Trata-se de passar o nosso aluno da condição de mero espectador para a condição de um eficiente leitor e produtor de textos multimodais, o que nos possibilita um vasto material para o trabalho com os eixos de leitura, produção de textos, oralidade e análise linguística.

A BNCC sinaliza tal prática pedagógica nas competências específicas de linguagem, veja o quadro abaixo.

Multiletramentos nas competências específicas de linguagem da BNCC

Ensino Fundamental Ensino Médio
Compreender e utilizar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares), para se comunicar por meio das diferentes linguagens e mídias, produzir conhecimentos, resolver problemas e desenvolver projetos autorais e coletivos.  Mobilizar práticas de linguagem no universo digital, considerando as dimensões técnicas, críticas, criativas, éticas e estéticas, para expandir as formas de produzir sentidos, de engajar-se em práticas autorais e coletivas, e de aprender a aprender nos campos da ciência, cultura, trabalho, informação e vida pessoal e coletiva.  

 

Percebemos, nessas competências, a progressão esperada pela BNCC no trato escolar dos textos digitais. Da compreensão e utilização à mobilização mais efetiva, os alunos devem, ao final do Ensino Médio, serem capazes de manejar criticamente gêneros como vlogs, videoclipes, videominutos, documentários, narrativas multimídia, podcasts, playlists comentadas, infográficos, memes, gifs, entre muitos outros gêneros que circulam nas mídias digitais. Esse manejo, insisto, deve ser capaz de inserir nosso aluno nas culturas multiletradas, para que ele seja capaz de encontrar-se na sociedade como um cidadão integrado em seu tempo.

Esses princípios pedagógicos foram o norte para que a Olimpíada de Língua Portuguesa incluísse, a partir de sua edição de 2019, o gênero Documentário para as turmas de 1º- e 2º- anos do Ensino Médio. Isso reflete a necessidade de que as práticas escolares estejam voltadas para o seu tempo e contemplem a realidade dos estudantes de nosso país. Nesse sentido, o documentário cumpre dupla função na sala de aula: promover o conhecimento sistemático de como se organiza um gênero multimodal e fomentar o debate crítico a respeito de nossa realidade social.

No caso específico dos gêneros do cinema, eles já se faziam presentes na prática pedagógica de todos os componentes curriculares há bastante tempo. Quem nunca assistiu a um filme, em sala de aula, para depois discutir algum aspecto da geografia que nele esteve presente, ou até mesmo um fato histórico retratado por esse filme? Volto, mais uma vez, à questão que discuti algumas linhas atrás: não se trata do simples contato com o gênero, e sim do manejo com a prática de linguagem que é necessário para conhecermos a fundo suas regularidades. Não é uma simples interlocução por parte de alunos e professores, mas um estudo aprofundado nas possibilidades comunicativas dos gêneros.

O documentário entra na aula de português para aguçar sentidos, despertar interesse, permitir autonomia e alimentar o senso crítico, além, é claro, da compreensão de todas as características do gênero enquanto prática de linguagem. Logo de início, podemos listar alguns elementos centrais que devemos levar em conta para “dar aula de documentário”:

  a   a observação de aspectos éticos, uma vez que ao aluno é dada a missão de retratar aspectos da realidade social do país, o que envolve o trato com diferentes pessoas e posicionamentos ideológicos;

  b   a necessidade de análise crítica dos problemas sociais, posta no modo como será formulado o ponto de vista revelado no documentário;

  c   o manejo de diferentes linguagens, tendo em vista a profusão de semioses envolvidas no gênero, com textos escritos, falados, visuais, em movimento etc.;

  d   a consciência no tratamento da informação, que envolve desde as atividades de pesquisa e coleta de material, até sua seleção e decisão do formato em que serão apresentadas.

 

Tais elementos devem funcionar como princípios da prática pedagógica de produção de documentários e estarem presentes em todas as atividades desenvolvidas nas sequências didáticas do gênero. Se observarmos atentamente, veremos que todos eles direcionam o trabalho para mostrar que o documentário tem como aspecto central a elaboração imagética de um ponto de vista sobre um tema de relevância social.

Tomando essa questão como direcionamento, apresento resumidamente, na página ao lado, algumas possibilidades didático-metodológicas de trabalho com o gênero Documentário na sala de aula.

Leitura — O principal aspecto envolvido na leitura de documentários passa pela formação do aluno enquanto leitor autônomo e crítico. Atividades que estimulem a percepção do ponto de vista e dos recursos utilizados para construí-lo são importantes nesse sentido. Também é importante o contato que o documentário permite que o aluno tenha com a realidade social do país, percebendo como os pontos de vista formulados ficam salientes do início ao fim da realização do gênero.

Produção de textos — O trabalho com a elaboração do documentário é realizado basicamente em duas grandes produções: a escrita do projeto e a realização do audiovisual. Para a produção do projeto com a sinopse e argumento, além de todas as etapas e estratégias já conhecidas da língua escrita, também devem ser observadas marcas próprias do documentário, como a indicação de movimentos ou a caracterização dos efeitos visuais. A edição e a montagem do documentário são aspectos que podem ser desenvolvidos em conjunto com os professores de Arte e Informática, favorecendo a interdisciplinaridade.

Oralidade — O trabalho com o documentário possibilita o estudo de diversas dimensões da oralidade, como a caracterização dos gêneros orais dispostos nas cenas, os recursos prosódicos empregados nas falas, os elementos culturais revelados nas variedades faladas etc. A interpretação das ideias promovidas pelo gênero também é uma oportunidade para o desenvolvimento da capacidade de escuta dos alunos.

Análise linguística — O principal aspecto desenvolvido na análise linguística são as características da gramática audiovisual, com os recursos utilizados para o tratamento das imagens e das informações veiculadas. A análise das múltiplas variedades linguísticas encontradas nas falas que aparecem no documentário também é bastante produtiva. Ainda, o desenvolvimento de um tema a partir dos diferentes enquadres é uma rica oportunidade de explorar o léxico relativo a esse tema.

 

E como avaliar se o trabalho com o documentário foi satisfatório e promoveu nos alunos a construção de cidadãos críticos e eficientes nessa prática de linguagem? Alguns aspectos envolvidos na avaliação do gênero, baseados no curso “Avaliação Textual: análises e propostas”, encontram-se no Portal Escrevendo o Futuro e estão listados abaixo.

  1   Escolha e abordagem do tema: o documentário deve abordar algum aspecto da realidade social, mas não qualquer um. A opção por algo que não esteja em pauta na mídia tradicional traz mais originalidade ao trabalho, o que já constitui uma importante marca de autoria. Além disso, esse registro de mundo precisa fugir do lugar-comum na representação das imagens e dos textos. No caso específico da Olimpíada é necessário que o documentário retrate “O lugar onde vivo”, destacando, com toda essa singularidade, aspectos da história, da cultura ou de algum personagem desse lugar.

  2   Construção do ponto de vista: o documentário deve apresentar uma visão específica a respeito do tema tratado. Diferentemente da reportagem jornalística, que deve mostrar distintas visões de um mesmo fato, o documentário precisa centrar-se em uma perspectiva única, o que lhe constitui uma marca de argumentatividade própria. Todas as informações e os recursos de formulação audiovisual devem convergir para esse ponto de vista, representando sua marca mais forte de autoria.

  3   Emprego das estratégias narrativas: no documentário, a representação da realidade social pode ser feita com base em diversos recursos textuais, como entrevistas, material de arquivo histórico, efeitos visuais, trechos narrados, filmagens em locações etc. Todo esse material deve ter uma função dentro do documentário, não podendo ser empregado de maneira aleatória. Além disso, tais instrumentos devem contribuir para a percepção de um ponto de vista sobre o tema, não podendo retratar a realidade de maneira genérica. O uso bem elaborado desses recursos constitui outra importante marca de autoria.

  4   Elaboração dos recursos de linguagem: na produção de um documentário, os elementos de uma gramática audiovisual devem estar presentes de maneira a atender os efeitos de sentido esperados pelo documentarista. O enquadramento da imagem, os movimentos de câmera, as trocas de cenas, os recursos expressivos de montagem e a produção da sonoplastia e dos elementos gráficos são alguns dos elementos que constituem a gramática audiovisual desse gênero textual. A pluralidade no emprego desses recursos e o modo como são aproveitados para fortalecer o ponto de vista são pontos importantes na produção de um bom documentário.

  5   Escrita do projeto: o projeto de um documentário deve, primeiramente, estar próximo do que foi produzido, salvo mudanças que eventualmente ocorram no processo de edição. Devem constar, nesse projeto, a sinopse (possibilitando ao leitor uma visão geral do que será abordado), as sequências previstas (de maneira clara, para que diretores e demais envolvidos no processo compreendam o que se espera de cada um) e os recursos empregados (destacando, se possível, a funcionalidade de cada um).

 

Para finalizar nossa conversa, quero reafirmar o constante desafio que a prática pedagógica dos multiletramentos representa para a nossa geração de professores. Reafirmo, mais ainda, a importância de nosso trabalho para a formação de um perfil de cidadão crítico em nossos alunos.

As observações aqui formuladas estão longe de constituir o modelo ideal de ensino (se é que ele existe!), mas traçam importantes cuidados que devemos ter em nossa prática pedagógica para conseguirmos bons resultados nas produções de nossos alunos.

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