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Ortografia e Ensino

Ortografia e Ensino

texto - Carlos Alberto Faraco; ilustração - Criss de Paulo

07 de agosto de 2023

Em cada rosto um Brasil

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A ortografia é a roupa com que a língua se apresenta quando na forma escrita. Combinam-se letras, dígrafos e acentos para representar graficamente cada uma das palavras.

A língua hoje conhecida pelo nome de português começou a ser escrita nos fins do século XII. Durante séculos, os escribas (tabeliães, monges, chanceleres reais, escritores) desenvolveram diferentes grafias, tendo como referência a ortografia do latim e, ao mesmo tempo, criando tentativamente formas gráficas para as peculiaridades fonológicas surgidas no processo de formação da língua. Em razão disso, era comum a mesma palavra ter diferentes grafias conforme o lugar em que o texto era escrito e até dentro de um mesmo texto.

Essa diversidade não constituía problema porque os documentos eram manuscritos e tinham circulação muito restrita. Mas, com a invençãoda prensa de tipos móveis por Gutenberg no século XV e a expansão de seu uso pela Europa, foi preciso fixar uma grafia única. As muitas cópias de um mesmo livro podiam agora alcançar um público muito ampliado e a viver nos mais diferentes pontos do território.

Das línguas europeias, o toscano (que depois veio a ser chamado de italiano) foi a primeira a fixar sua ortografia já no final do século XVI. O francês teve sua ortografia fixada no século seguinte; e o inglês e o castelhano, no século XVIII.

O português só veio a fixar sua ortografia no século XX. Do século XVI ao XXI, praticou-se uma ortografia que pretendia ser etimológica, isto é, a grafia das palavras deveria reproduzir sua origem. Grafava-se rhythmo com rh, th e y por ser palavra de origem grega; e attingir com t duplo por ser palavra construída por composição em latim.

Como, porém, não se conhecia a etimologia de todas as palavras, muitas vezes se fixava a grafia aleatoriamente. Assim, escrevíamos affetar e afferir com dois efes porque eram palavras compostas em latim; alguns escreviam affamado e affastar com dois efes por “analogia”, já que nenhum fato etimológico justificava a duplicação da consoante.

Disso resultavam formas gráficas não uniformes para a mesma palavra, o que não era funcional. Foi preciso, então, buscar uma solução para essa falta de uniformidade da ortografia, meta alcançada em 1911 com base no trabalho de dois importantes filólogos portugueses: Aniceto Gonçalves Viana e Guilherme Abreu.

Eles propuseram eliminar as grafias relacionadas à etimologia grega (desapareceram as grafias com ph, th, rh, y); simplificar as etimologias latinas (desapareceram, por exemplo, todas as letras dobradas salvo ss e rr); e dar sempre precedência ao critério fonológico.

A adoção definitiva dessa ortografia no Brasil demorou alguns anos e só veio de fato a ocorrer em 1938. No entanto, os vocabulários ortográficos (os instrumentos de referência que listam as palavras em sua forma ortográfica), produzidos em cada país, apresentavam diferenças. Assim, desde a década de 1940, o português conviveu com duas ortografias oficiais. Foi preciso um longo processo de negociações para superar essa dualidade e unificar as bases da ortografia, o que se alcançou com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990*.

Na fixação da ortografia em 1911, não se abandonou totalmente o critério etimológico. O longo período de quase quatrocentos anos em que se tomou a etimologia (falsa ou verdadeira) como base da grafia das palavras deixou, portanto, suas marcas na nossa ortografia. Por isso é que se diz que a ortografia do português é alfabética com memória etimológica. Isso significa que as unidades gráficas (letras e dígrafos) representam não palavras (como na escrita chinesa) ou sílabas (como na escrita japonesa), mas fonemas (que são as menores unidades da organização sonora da língua).

Essa relação unidade gráfica/fonema é bastante regular na ortografia do português. As irregularidades decorrem da memória etimológica. Assim, a sílaba /ta/ é sempre grafada com a sequência das letras t+a (tatu, tapera, pata etc.); é, portanto, 100% regular e previsível. Já a letra h inicial só se usa por razões etimológicas (homem, hoje, horto etc.) e, nesse caso, não é possível prever fonologicamente sua ocorrência (a letra h não corresponde a nenhum fonema); precisamos, então, conhecer a forma integral da palavra.

Em razão dessas características da nossa ortografia, a alfabetização precisa sempre combinar dois caminhos para garantir que o aprendiz se aproprie adequadamente do sistema gráfico. Podemos chamá-los de caminho sintético (para as regularidades fonologicamente motivadas) e de caminho global (para os casos de memória etimológica).

No caminho sintético, partimos das correspondências fonema/ unidade gráfica e construímos com elas sílabas e palavras; no caminho global, trabalhamos diretamente com a forma da palavra em sua totalidade.

Desse modo, para palavras com grafia regular (a maioria do vocabulário), como cada, prata, trabalho, o primeiro caminho é suficiente; para palavras como homem, descer, exceção, exato, cuja grafia guarda elementos de memória etimológica, o segundo caminho é necessário.

Para facilitar a alfabetização, deveríamos, então, fazer uma reforma o ortográfica radical, eliminando todos os resquícios de etimo logia da ortografia?

De tempos em tempos aparece gente com esse tipo de proposta. Uma tal reforma, porém, só teria sido possível até fins do século XIX, época em que a maioria absoluta da população portuguesa e brasileira era analfabeta, a indústria do livro, insignificante, e a imprensa tinha pequeno porte e alcance. Hoje, tal reforma teria custos astronômicos (pense-se só na adaptação de um dicionário como o Houaiss) e efeitos educacionais e culturais desagregadores. Em pouco tempo, nossas bibliotecas estariam obsoletas (o que seria um crime de lesa-cultura) e nós que já somos alfabetizados perderíamos o nosso saber ortográfico e teríamos de voltar à leitura silabada.

Quando lemos, nos orientamos por um léxico ortográfico mental que registra a forma gráfica da palavra e nos permite ler não letra por letra ou sílaba por sílaba, mas identificando a palavra visualmente mais do que fonicamente. Esse mesmo léxico mental é ativado quando grafamos as palavras. Uma reforma ortográfica radical destruiria esse saber dos já alfabetizados.

Os malefícios seriam, portanto, bem maiores que qualquer benefício. Assim, não devemos dar acolhida a propostas de reforma radical da ortografia. Podemos perfeitamente conviver com a memória etimológica que ainda subsiste na nossa ortografia. Qualquer criança, se bem ensinada, já mostra bom domínio da ortografia (até mesmo das irregularidades) por volta dos 10 anos.

Carlos Alberto Faraco é professor doutor titular (aposentado) da Universidade Federal do Paraná.

*Assinado em Lisboa em 16 de dezembro de 1990. O Decreto nº- 6.583, que promulgou esse acordo,foi assinado em 29 de setembro de 2008,
e em seu art. 2º-, parágrafo único, estipulou um período de transição até 31 de dezembro de 2012. A partir dessa data, deveriam entrar em
vigor as atuais regras do citado acordo.


Revista Na Ponta do Lápis
Ano XI
Número 25
Março de 2015

 

 

 

 


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