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A poesia perdeu a pose

A poesia perdeu a pose

texto - Luiz Henrique Gurgel; ilustração - Criss de Paulo

01 de agosto de 2013

As práticas de leitura e escrita em nosso tempo

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Um fenômeno cultural está tomando conta das periferias de cidades brasileiras: os saraus. Nesses encontros, livres de qualquer afetação, é possível ler o que quiser, quando quiser e como quiser. Na Ponta do Lápis conheceu três deles que existem há alguns anos em bairros da cidade de São Paulo. Veja por que atraem cada vez mais gente – principalmente professores e estudantes – para ler, ouvir e falar sobre versos.

Estamos em pleno século 21 e um fenômeno literário típico dos salões aristocráticos do século 19 está se repetindo, de maneira transfigurada, em bairros populares e periféricos de grandes cidades brasileiras. É o antigo sarau. Se até meados do século passado a poesia era vista como arte da elite, agora falar ou escrever versos, construir rimas e deixar fluir o “eu lírico” tornou-se algo bem mais popular. O uso da palavra e a criação poética foram democratizados. “Literatura pode ser feita em qualquer lugar”, diz Sérgio Vaz, poeta e um dos criadores da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), entidade que agitou a vida de comunidades que vivem nos extremos da Zona Sul da capital paulista. A televisão, com suas novelas, séries, programas de auditório ou jogos de futebol, deixou de ser a única opção de cultura e lazer dessas regiões.

Botequim na periferia de São Paulo é o ponto de encontro onde dezenas de pessoas reúnem-se semanalmente para ler e ouvir poesia.
Foto: Marcia Minillo

A estimativa é que só em São Paulo e cidades vizinhas existam mais de quarenta encontros desse tipo. A maioria surgiu nos últimos cinco anos. Na Ponta do Lápis foi conhecer alguns desses saraus. Descobrimos professores de escolas públicas, de língua portuguesa e de outras disciplinas, que participam dos encontros, levam seus alunos ou realizam o caminho inverso e criam o sarau dentro da escola, transformando- o em estratégia eficiente de trabalho para oestímulo à leitura, à escrita, além de servir de atalho para a literatura.

■ Sarau da Cooperifa


Um botequim típico de bairro. Bebidas alcoólicas atrás do balcão e, sobre ele, uma estufa com pastéis e coxinhas. A primeira surpresa está numa parede lateral, onde fica uma estante forrada de livros. Jorge Amado, Machado de Assis, Ernest Hemingway, entre outros, ao lado de Sidney Sheldon e Paulo Coelho; muitos livros infantis e de poesia, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, além de autores do próprio bairro. A outra surpresa é que ali no Bar do Zé Batidão, região do Jardim São Luís, periferia de São Paulo, funciona ininterruptamente, desde outubro de 2001, o Sarau da Cooperifa, um dos mais conhecidos da cidade. Ficou tão famoso que já recebeu atores, cineastas, jornalistas e vários autores. Até o escritor moçambicano Mia Couto, um dos principais nomes contemporâneos da literatura de língua portuguesa, foi conhecer o evento. Nem por isso o sarau perdeu suas características. Operários, pedreiros, office-boys, empregadas domésticas, donas de casa, aposentados, cantores de rap, estudantes e professores continuam se apresentando e lendo suas criações, textos de amigos e poesia de autores clássicos.


Foto:Vinícius Carlos;
Foto da caixa: Marcia Minillo

O movimento começa pouco antes das 19 horas, toda quarta-feira. Mesas de plástico são dispostas no salão do bar e um pedestal com microfone é instalado. Enquanto aguardam, jovens, aposentados e casais com filhos experimentam um “escondidinho”, prato nordestino com carne-seca, apropriado para uma noite fria. A equipe da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro chega ao sarau exatamente no momento da arrumação para o evento e encontra os participantes no aquecimento. O aposentado Jorge Esteves é um deles. Concentrado em uma das mesas, lê em voz baixa o poema que iria apresentar dali a pouco. O bar foi se enchendo e não sobraram lugares para se sentar. Sérgio Vaz abre o evento, saúda a plateia e já oferece o microfone para quem quiser ler ou recitar versos. Nas próximas duas horas, sem intervalo, um a um, uma a uma, gente vai se sucedendo na apresentação dos poemas.

O encontro mescla famílias, crianças, jovens, adolescentes e idosos. “Temos hoje, contra nós, a garoa, a novela, mas o que importa é a literatura”, vibra Sérgio Vaz, agitando o público. Seu Jorge é um dos primeiros a ir para o microfone. O jeito de declamar lembra Patativa do Assaré. Lê o seu poema “Carta fora do baralho”, relatando sua história de vida e a sina de aposentado. Jovens também se revezam, leem poemas ou improvisam versos de um rap. Falam da condição social e apresentam a visão de mundo própria de quem vive na periferia. Jéssica Lazzare, 17 anos, pensa em cursar letras. Começou a frequentar o sarau com 12 anos, acompanhando a mãe, que trabalhava no bar. Pegou gosto ouvindo os poemas, veio a vontade de escrever. Apresentou nesse dia uma paródia, costurando trechos do Hino Nacional com críticas à realidade dos jovens no país. “Sempre falo da periferia e me inspiro em coisas que vejo acontecer.”

No sarau também ocorre lançamento de livro e o organizador é o professor de língua portuguesa Fábio Barreto, que participa da Olimpíada. Ele trouxe seus alunos do 9º ano da Escola Estadual Francisco de Paula Conceição Júnior, do bairro de Campo Limpo, para vivenciar um momento único: vinham lançar Racismo é o Ó... Unidos contra o preconceito racial, livro escrito por eles mesmos, num projeto coordenado por Fábio. “Queria fazer a publicação circular e o sarau era uma boa oportunidade”, explica. Inspirado na metodologia da Olimpíada, o professor criou uma sequência didática cujo tema era a discriminação racial. Ele trabalhou com poemas, crônicas e contos, além de promover debates com os alunos sobre a questão. No final, o trabalho rendeu um livro com os textos produzidos pelos estudantes.

Fábio gosta de frequentar esse tipo de encontro, que, segundo ele, promove o direito à literatura. “Durante muito tempo as pessoas acharam que literatura era algo a que não se tinha direito, cuja compreensão e cuja fruição eram restritas a poucos. Representa a democratização da palavra: ler o que quiser, quando quiser; também escrever o que quiser, recitar o que quiser, onde bem entender!” A atividade proporciona para seus alunos outro tipo de contato com a literatura: “[Temos] leituras de diferentes gêneros – peça teatral, romance, poesia, conto, crônica – em espaços diversificados: salas de aula, bibliotecas, estacionamentos, ruas, escadão, pracinhas, e com o propósito do entretenimento – sem resenhas, perguntas, provas. O sarau, nesse contexto, representa uma possibilidade real de envolvimento com literatura”.

■ Uma roda de poesia no Grajaú

Foto: Márcia Minillo

Não muito longe dali, na Casa de Cultura Palhaço Carequinha, no Jardim Grajaú, também na Zona Sul de São Paulo, Maria Vilani, professora da Escola Estadual Adelaide Rosa Ferreira, promove não apenas saraus, nos sábados à noite, mas também cafés filosóficos, encontros abertos com debates livres, que discutem temas como “A religião no contexto da periferia”, “Drogas: uma reflexão”, entre outros. Já o sarau, que funciona há dois anos, se chama Roda de Poesia. Os livros ficam no centro de um círculo formado pelos participantes e qualquer pessoa pode pegar, escolher um poema e ler para as outras, sentada, em pé, interpretando ou cantando na forma de um rap. Vale qualquer tema, e nem só de amor ou problemas sociais vive a poesia da periferia. Claro que a vida complicada, a violência, os preconceitos estão sempre presentes. Mas até de temas não tão poéticos como o videogame podem surgir versos. “A gente faz poesia por poesia”, conta Clayton Cavalcante Gomes, filho de Maria Vilani e também professor de língua portuguesa de escolas públicas, que apresentou de cor o poema “Desencanto”, de Manuel Bandeira. “Quando a gente ia imaginar que num sábado à noite as pessoas viriam se reunir para ouvir e falar poesia?”, indaga. A pergunta faz sentido, pois a maioria dos frequentadores é de jovens de 16 a 22 anos. Ainda mais porque numa sala ao lado do sarau havia um curso de dança e seu convidativo baile era embalado por música pop e eletrônica. Mas isso não foi capaz de desviar a atenção de aproximadamente trinta pessoas, que ficaram até as 22 horas lendo e ouvindo poesia.

E autores, do próprio bairro ou de outras regiões da cidade, que lançaram seus livros de forma independente ou por pequenas editoras, aparecem para as leituras. O professor Adenildo Lima é um dos mais assíduos frequentadores e também o organizador das leituras na Roda de Poesia. Ele criou a Editora da Gente para lançar seus trabalhos e de outros autores da periferia. Outro ativo integrante é o rapper Márcio Ricardo, do grupo Semblantes, que bolou outra estratégia para divulgar seus poemas. Ele lançou o livro Felicidade brasileira na escola em que estudou e em outras da região, com direito a show de rap. Márcio, de 22 anos, conta que foi por causa do ritmo – gênero musical preferido entre jovens da periferia – que começou a escrever. Ele mostrava suas letras para a professora Vilani, recebia dicas e o incentivo para continuar a escrever e ler outros autores. Foi assim também que chegou à poesia de Vinicius de Moraes e de Cecília Meireles. Atualmente, ele e o grupo percorrem escolas da região oferecendo gratuitamente oficinas de poesia e de rap. “A gente mostra que também é da periferia e que faz poesia. Eu olho para os alunos e vejo a vontade que eles têm de mostrar um lado literário”, conta.

■ Sarau dentro da escola: um por todos e todos por um


O Sarau dos Mesquiteiros começou com o trabalho de um professor com seus alunos. Virou atividade aberta para toda a comunidade do bairro.
Foto: Marcelo Castro

Mas alguns saraus e grupos literários surgem na própria escola, fruto do trabalho de professores. É o caso dos Mesquiteiros, nome do coletivo artístico e cultural criado em 2009 e formado por jovens e adolescentes de Ermelino Matarazzo, bairro da Zona Leste de São Paulo. O nome faz referência à Escola Estadual Jornalista Francisco Mesquita, espaço em que o grupo se formou e onde até hoje realiza um sarau aberto para a comunidade todo último sábado do mês.

Foi a partir do projeto “Literatura (é) possível”, trabalho desenvolvido na escola desde 2006, pelo professor de história Rodrigo Ciríaco, que o projeto e o grupo deslancharam. Trata-se de um trabalho “artístico e pedagógico”, explica o professor em seu blog (http://efeito- -colateral.blogspot.com.br), e “tem como finalidade a valorização da leitura, da escrita e da criação através da literatura, principalmente a chamada ‘literatura periférica’”. Mas o projeto é mais abrangente e utiliza-se de outras linguagens, como o teatro, a música, a fotografia, o cinema, entre outras. A proposta dos jovens mesquiteiros é ousada. No blog do grupo (http://mesquiteiros. blogspot.com.br) afirmam ter por objetivo “incentivar, difundir, promover e problematizar a cultura da periferia a partir da Escola Estadual Jornalista Francisco Mesquita para a sua comunidade”. Para isso, realizam oficinas de literatura e teatro, encontros com escritores, produção de espetáculos lítero-teatrais, saraus, além do desenvolvimento do selo editorial Um por Todos, que edita, produz e divulga a criação de seus integrantes e colaboradores.

O comum em todos esses projetos e entre seus protagonistas é a vontade e a necessidade de expressão e a consciência de que a língua também é um patrimônio da periferia, superando todos os preconceitos. São iniciativas espontâneas que estimularam a si mesmas, gerando um movimento. Mas também é possível entender tudo isso de forma mais simples e direta, como explica Sérgio Vaz: “A gente faz porque dá prazer”.

Saiba mais:

Veja também a entrevista com o poeta Sérgio Vaz que há 12 anos promove saraus na periferia de São Paulo.

Assista ao vídeo Jogo de ideias, produzido pelo Itaú Cultural em 2008.

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