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Eu sou o lugar onde vivo

Escrevendo o Futuro

07 de agosto de 2023

Numa escola indígena, a memória dos mais velhos, transformada pelos estudantes em versos e narrativas, torna-se ferramenta para recompor identidades numa comunidade que ficou abalada pelo risco de perder suas terras.

Luiz Henrique Gurgel

 

Dentre as tantas sensações que o lugar em que vivemos pode propiciar, talvez a de pertencimento e a de identidade sejam aquelas que mais reforçam raízes, que mais dão a segurança de estar no lugar todinho nosso, onde nascemos, onde estão nossos entes, por onde pisaram nossos ancestrais, onde sabemos quem somos. Imaginar a perda desse lugar é experiência dolorosa que faz pensar de um jeito ainda mais forte sobre ele, que dá mais vontade de abraçá-lo, de cuidar dele, de entendê-lo e conhecê-lo melhor, de conservar sua história.

Num dos trechos mais bonitos do litoral do Ceará, no município de Itapipoca, entre a Praia da Baleia e a Barra do Rio Mundaú, vivem os índios tremembés, etnia que só foi reconhecida em 2002, depois de estudos antropológicos feitos pela Funai com as famílias do lugar. Até um cacique de outra comunidade tremembé, mais distante e já reconhecida, veio colaborar, confirmando o vínculo com aqueles parentes. Em agosto de 2015, finalmente, foi assinada pelo Ministro da Justiça a portaria de reconhecimento da terra indígena, que permite iniciar o processo de demarcação. Sensação de alívio para quem correu o risco de perder o lugar onde vive por conta de interesses outros. Um grupo estrangeiro alegava ter comprado a terra de posseiros e pretendia erguer um gigantesco resort  naquele pedaço de Paraíso. Praia, dunas, rio e vegetação virgens dariam lugar a um hotel com campo de golfe, piscinas e casas de veraneio. As famílias dos índios teriam que se arranjar noutro lugar.

Buritis e São José são as duas vilas tremembés da Barra do Mundaú. As origens são remotas, a língua se perdeu e todos falam português atualmente, restando uma ou outra palavra do idioma original. Como tantos grupos indígenas do Brasil, a necessidade de sobreviver os obrigou a esconder quem eram, soterrando aos poucos o próprio passado.

Erbene Rosa, professora responsável pela biblioteca da Escola Estadual Indígena Brolhos da Terra, é uma das lideranças do povo tremembé. Ao contrário do que normalmente se vê noutras comunidades, lá são as mulheres que representam o grupo. Ela lembra o quão difícil era assumir-se índio antigamente e ainda hoje há quem na comunidade não admita e até negue essa condição. Erbene conta que as famílias escondiam as origens, tinham medo de se declararem indígenas por conta dos posseiros que assumiram as terras. “Meus avós diziam para os meus pais: ‘não vamos falar dessa história de ser índio, porque se o patrão souber que estamos falando disso, botam a gente para fora’”.

A experiência da negação de si mesmo perdurou por muito tempo entre aquela gente, gerando confusão nas identidades. Só em anos recentes é que houve um grande esforço da comunidade na tentativa de recuperar e reconstruir a própria origem. A atividade com a palavra escrita, dentro da escola, assumiu papel importante. A busca difícil, com poucas referências, imagens e símbolos encontrou na memória e nas histórias contadas pelos mais velhos uma luz no fim desse túnel do tempo em que se corre atrás de um passado para retê-lo.

Não a toa é intensa a vontade de expor as marcas, de representá-las e de gravá-las no próprio corpo, como a garantir sua permanência. “As pinturas [corporais] surgiram dessa necessidade”, explica Fabiana Carneiro, professora de Ciências da escola. “A gente tinha que andar caracterizado. Quem é que ia me reconhecer como indígena?”, ela diz segurando livros e cadernos no braço tatuado, vestindo calça jeans e usando brinco com plumagem vermelha e colares de miçangas coloridas. “Mesmo assim, tem gente que não nos vê como índios”.

As indagações continuavam a surgir: Quais são as nossas marcas e a nossa herança? O que é genuinamente nosso e nos diferencia perante o mundo? Complicado recuperar esse orgulho sem correr o risco de cair em marcas desgastadas como definidoras do que é ser índio. Fora da comunidade, muita gente ria e ironizava aqueles jovens que em suas motos insistiam usar ornamentos de penas e pinturas corporais.

Outro professor, Ezequiel Nascimento, também sentiu em casa o problema. Criado pelos avós, descobriu ser indígena com a avó, pois o avô, marido dela, não se reconhecia como tremembé. Por isso, diz ele, “o trabalho com a memória é feito todo dia”. Todo dia é dia de referenciar-se, de perceber-se e de entender-se como índio.

Ezequiel e outro professor, Felipe Andrade, trabalham com língua portuguesa na escola. Ambos participaram da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro pela primeira vez em 2014. Felipe, que não é indígena, tem turmas de 6º. ano até o 3º do ensino médio; Ezequiel fica com os menores do 5º. ano. Os dois descobriram que a atividade com a escrita podia ser um excelente recurso para ajudar alunos a conhecerem mais sobre si mesmos e sobre a história da comunidade. Ação oportuna, principalmente quando se está num processo de reconstruir-se enquanto povo. Pelo que contam, antes mesmo de participarem do programa, crianças e adolescentes já tinham como atividade escolar a visita aos mais velhos de Buritis e de São José para ouvir as histórias, reproduzidas em versos, textos e desenhos. Isso ajuda a entender as confusas raízes, a colocarem-se no lugar do outro e tentarem remontar o quebra-cabeças do passado, num jogo em que faltam muitas peças e que nunca parece estar completo. Daí, mais uma vez, a necessidade de se recriar, de se desenhar, de se reinventar. De novo a escrita em auxílio, aliada fundamental desse movimento. Ela não apenas registra, mas também preenche os vazios, as lacunas dessa história a ser completada por crianças, adolescentes e jovens. São eles e elas que podem solucionar, aos poucos, o quebra-cabeça do ser ou não ser tremembé.

Todos ali têm algo a dizer sobre o lugar onde vivem, que esteve sob o risco de não mais ser o “meu lugar”, o que ainda abalaria o “quem sou eu” e “o quem somos nós” naquela comunidade. Por isso a escrita também aparece como ação buscada, entendida como importante meio de intervenção na realidade, meio de soltar a voz, de se fazer ouvir, de deixá-la impressa, permitindo opinar, questionar, denunciar, defender, sonhar. Desejo de comunicar que provoca o desejo de escrever mais e melhor sejam versos, textos de memórias, crônicas ou artigos.

As duas questões entre os índios – a da conquista da identidade e a do lugar em que se vive – caminham juntas, se estreitam e se fundem. Não é possível falar de uma sem a outra.

O que está sendo feito e sonhado pelos dois jovens professores e colegas, alunos, coordenadores, direção da escola e toda a comunidade ainda está no começo, obra em construção. Estimular estudantes a escrever versos e narrativas cavocando o passado por meio da memória dos mais velhos, é mais que um importante ponto de partida, é gesto humanizador. 

A escrita, sua prática com objetivos e seu aprendizado vão tornando-se, assim, pilares para recompor o “quem sou” junto com “o meu lugar” até chegar, quem sabe, em “Eu sou o lugar onde vivo”.  

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