Conduções

Lilia Guerra

Pernas

Ando sem vontade de passar perfume e penteando o cabelo de qualquer jeito. Encostei o quarteto de sombras Aurora Boreal que comprei no catálogo e guardei minha boneca porta-brincos no fundo do armário. A bonequinha que tem um espaço na barriga e que batizei de Bertoleza. Sinto que não sou eu mesma sem perfume e sem brincos. Então, não sei quem está guiando meu corpo pela rua.

Os fones me garantem alguma intimidade. Quem passa por mim, não sabe o que estou ouvindo.

Ele é filho de Zambi

Ô, São Benedito, tenha dó

Coisa que me aborrece é tropeçar em monturos de lixo. São muitos os que encontro a caminho do ponto. Pela manhã, creio ser ainda mais indigesto. A carcaça de uma poltrona repousa na esquina da Nascer. Apresenta cicatrizes de queimadura. Ontem, quando passei voltando do trabalho, um povo cirandava em volta dela. Em noites frias costumam atear fogo em qualquer traste. Em noites quentes também. Se divertem assistindo ao balé das labaredas. O tempo é quem se encarrega de destruir os restos incendiados que ninguém recolhe. Há muitas carcaças se decompondo. Mobílias do cenário de outros balés. O processo é lento. Chuvas e sóis pra desgastar o material, até que se deteriore e desapareça. Ninguém nota.

As ruas daqui são pobretonas. Desvalidas. Tenho a sensação de que, todos os dias, enfeiam um pouco mais. Não bastassem os cabos embaraçados nos postes, um emaranhado de condutores atracados com restos de rabiola, agora, alguns fios ficam pendurados, tocando o chão. Outro dia, ouvi a senhora que vende tapioca na feira comentando com os vizinhos de barraca que os vagabundos arrancam os fios e desencapam pra vender o cobre. Zumbis fazem mesmo correrias desse tipo. Na fissura, vendem até o liquidificador da mãe. Quem recepta, quase sempre, banca o desentendido. Faz de conta que acredita que o liquidificador pertence mesmo a quem está se desfazendo dele a troco de bagatela. Assim como o ferro elétrico, da semana anterior. A frigideira. O motor da máquina de lavar, o relógio de parede. O doente aplica que tá vendendo baratinho, precisando do dinheiro pra pagar condução. Entrevista de emprego. O cidadão solidário se convence de que o motivo é nobre. Nem tinha interesse na peça, mas se dispõe a fazer caridade. Torcendo pra que, da próxima vez, o fissurado descole uma televisão. Quem sabe, até uma geladeira em bom estado. Nem sempre é preciso aplicar. Tem gente que se aproveita da situação sem pudor. Há quem desvie material hospitalar. Quem desencaminhe caminhão de merenda. Há até quem saqueie creches e escolas. E quem recepte objetos oferecidos nessas circunstâncias.

— Vagabundo também é o infeliz que compra o cobre, ciente de que é produto de roubo, minha tia!

O menino da banca de temperos respondeu assim.

A dona da barraca de verduras concordou:

— As companhias de fornecimento cobram o prejuízo da reposição dos fios nas tarifas. A gente acaba pagando o pato. Mas, se não tivesse quem comprasse, eles não tinham esse trabalho todo, não. Ladrão também é quem paga pelo material. Quem adquire peça de carro desmontado, sabendo que um coitado ficou ainda com o carnê da grossura de uma bíblia pra quitar. Isso quando não desligam a pessoa. Quando não finalizam o sujeito a troco de um monte de lata. Quase tiraram a vida do meu genro por causa de um carro.

Viajei no assunto, enquanto escolhia tomates. Enxerguei uma oficina escura. Os receptadores avaliando os produtos. Um barbudo careca gesticulando, alegando que as seguradoras cobrem os transtornos causados às vítimas. O barbudo falava alto dentro da minha cabeça: “se não podem pagar seguro, que não se metam a ter carro! As coisas precisam funcionar redondinho. Cada um que se vire. Quem não tem competência, nem condição, não se estabelece”. A conversa, regada a aperitivos, entre uma piada preconceituosa e uma expressão fascista corria solta. Acontece sempre assim comigo. Começo a analisar uma coisa e desembesto desvairada, num divagar sem fim. Acho que é isso o que está me deixando tão cansada. Já não tenho mais vinte anos. Nem trinta. Essas divagações me esgotam. Tento passar indiferente por essas pessoas jogadas nos colchões úmidos pelos líquidos da madrugada. Amontoadas nessa morte temporária causada pelo efeito do entorpecente. Desfrutando o sono reconfortante, resultado da garrafa de pinga entornada pra aquecer. Esquecer. Eu não queria reparar que a pele lisa desses pés inchados vai estourar em feridas logo, logo. As feridas que já nasceram estão infectadas. Eu queria me ater às palavras que meus fones reproduzem.

Deixe-me ir

Preciso andar

Empreendo passar pela moça que dorme embrulhada na colcha esfarrapada sem imaginá-la de banho tomado, cabelo penteado e dentes escovados, vestida num jeans de promoção. Carregando uma bolsa comprada na baciada, contendo um guarda-chuva, uma garrafa com água congelada, carteira, batom, marmita e um bilhete único. Apenas passar por essa moça que dorme com o corpo exposto, freio de baba maquiando o rosto, dominada pela droga, sem enxergá-la na minha mente folheando um catálogo em seu horário de almoço. A marmita vazia e o cigarro queimando, junto ao copo de café. Solzinho visitando o uniforme. Dez minutos faltando ainda pra tocar o sinal de retorno à sessão. A caneta desenhando seu nome sobre a foto do frasco de perfume que a revendedora topou parcelar em duas vezes. Dia cinco e dia vinte. É tão gostoso comprar por catálogo. Rabiscar as folhas e ficar esperando com ansiedade a chegada dos produtos. Sentir o cheiro, conferir a cor. Na minha fantasia, a moça que dorme no chão, sonhando sabe-se lá com quê, vai ao supermercado na saída do trabalho. Escolhe umas maçãs. Põe um litro de leite no cestinho, duas latinhas. Ovos, uma esponja nova para a pia. Um quilo de filé de frango da promoção para presentear a mãe, que ela pretende visitar no dia seguinte. Um sábado. A moça paga as compras com seu vale-alimentação e sai carregando a sacola. O segurança a cumprimenta com um olhar travesso. Ela sorri, concluindo que o quarteto de sombras Aurora Boreal a torna, de fato, irresistível. Encaixa os fones de ouvido e se requebra involuntariamente.

Os bóias-frias

Quando tomam umas biritas

Espantando a tristeza

Sonham com bife-a-cavalo, batata-frita

E a sobremesa

É goiabada cascão com muito queijo

Depois café, cigarro e um beijo

De uma mulata chamada

Leonor ou Dagmar

Fonte: https://www.matinaljornalismo.com.br/parentese/cronica/conducoes/