Rio afora, rio adentro… A vida segue

Facebooktwitterredditpinterestlinkedinmail

Victor Augusto de Alencar Menezes


A metáfora do rio fertiliza este texto, de Victor Augusto de Alencar Menezes, de Belém (PA), um dos vencedores na categoria Memórias Literárias na 6ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa. Entre açaizeiros, sumaúmas, igarapés e palafitas, vêm à tona cenas da vida de uma menina ribeirinha na década de 1950 no coração da Amazônia.

A vida é como um rio, um fluxo constante que, às vezes, não consegue parar. Em alguns momentos da vida, o rio é largo e profundo; em outros, é estreito e raso. O importante é saber navegar: aproveitar os momentos felizes e lidar com os tristes.

Como disse, o rio não para. E seguindo o fluxo do rio da minha vida, agora estou de mudança (minha neta me ajuda com as caixas). Ao pegar uma velha sacola empoeirada, deparo-me com uma foto da minha infância, e isso me faz rememorar um passado feliz, em que a vida se resumia a tão somente brincar.

Na década de 1950, o interior da Amazônia era diferente: palafitas bem simples (casas de madeira construídas sobre estacas) e brincadeiras nos igarapés (riachos que nascem na mata e desaguam no rio), o que é difícil de ser encontrado hoje, até nas áreas ribeirinhas. Minha casa era pequena, coberta com uma lona e mais parecia um barracão. Não havia divisão entre os cômodos: meu quarto era na cozinha e ao mesmo tempo na sala. Ali perto, havia um rio de onde tirávamos o alimento e, também, que servia para nossa diversão. Ao redor, açaizeiros, sumaúmas e maçarandubas, árvores típicas da Amazônia.

Às vezes, eu saía com meu pai para caçar, pois tinha medo de ele ir e não voltar, o que acontecia com muitos caçadores. Enquanto isso, minha mãe plantava hortaliças para nosso consumo, o que não era garantia de comida na mesa, principalmente quando meu pai nada trazia da floresta. Mesmo com o problema da fome, e da preocupação com meus pais, o rio da minha vida seguia calmo, até surgir uma forte correnteza que, aos 11 anos, me levou para longe.

Foi a primeira vez que conheci uma capital: ruas movimentadas, automóveis, casas grandes. Onde fui morar, havia até uma escada, e os cômodos eram muito bem divididos. Também foi quando o rio se estreitou até quase secar, pois não aconteceu o que eu esperava: a dona da casa – que disse à minha mãe que me acolheria para eu estudar – obrigou-me a cuidar de uma criança e realizar todas as tarefas domésticas. O sofrimento fez as águas do rio ficarem represadas. Fiquei muito tempo naquela situação, impedida de conviver com o mundo.

Mas havia a esperança… E era o que me restava. Um dia, indo comprar pão, por sorte, encontrei uma colega de infância, a menina que retirou as pedras do meu rio, fazendo a água fluir novamente. Ela me falou da família de um policial que queria contratar alguém para ajudar na casa deles. Decidi aceitar o novo emprego e passei a ter uma vida mais aprazível.

Pude, então, ir ao cinema pela primeira vez… Ainda lembro os detalhes, a expectativa, a melhor roupa… Naquela época, ir ao cinema era um verdadeiro evento social: sessões sempre lotadas, filmes em preto e branco e, depois, a pipoca na praça.

Contudo, há períodos de sol e chuva tão peculiares da Região Amazônica… Percebi que não podia nadar contra a maré, ainda que não houvesse decidido em qual porto ficaria, então resolvi acompanhar essa família quando se mudou para Belém, a cidade das mangueiras. Fomos morar em uma vila de casas, ambiente muito comum naquele tempo, normalmente formada por núcleos familiares. Para mim, foi um local novo, com pessoas, inicialmente, estranhas, mas que depois passaram a representar decepções e alegrias que eu nunca mais esqueceria.

Essa fase foi como o encontro do rio com o mar: fortes ventanias e águas agitadas. Ao mesmo tempo em que um rapaz disse que me amava, fez isso de tal modo que a família que me acolhera foi a mesma que me expulsou por pensar mal de mim, pois, uma vez, saímos e voltamos muito tarde. Isso era muito inapropriado para uma jovem e, naquela época, a sociedade belenense era muito conservadora e tradicional. Da mulher, era exigido “um bom comportamento”. Tivemos que nos casar e desse relacionamento vieram meus filhos, motivo de alegria e determinação para fazer o melhor por eles.

Rio que flui… Enche… Seca… O meu marido ficou em um determinado porto… Meus filhos seguiram outros afluentes… Tantos anos depois, veio o desejo de voltar para onde o rio era largo e tranquilo, o lugar da minha infância. Será que…

— Vovó, temos que ir!

— Sim, é claro. É o momento de tu saberes sobre o rio…

*

Texto baseado na entrevista realizada com Rosa Lucas Franco, de 73 anos

 

 

 


Professor Paulo Reinaldo Almeida Barbosa

Colégio Militar de Belém, Belém-PA

6 thoughts on “Rio afora, rio adentro… A vida segue

  1. Todo respeito e admiração pelo autor desse textos tão profundo . Falar daquilo que lhe habita a alma com tanta propriedade é admirável. Parabéns e sucesso em sua carreira literária!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *