Os Descuidados 90

Carol Bensimon 1


Rua Barros Cassal, Porto Alegre, a casa rosa com uma lavanderia no térreo: ali funcionava a Garagem Hermética, o bar definitivo, o grande símbolo de um certo tempo em que a juventude (ou parte outsider dela) cultuava a precariedade, o improviso, o desleixo. Estou falando dos anos 90. Bar bom era música boa, cerveja ruim e parede ruindo. Noite boa era na sarjeta com os amigos bebendo vinho de garrafão. Talvez o espírito da época fosse uma mistura de pegada grunge com situação econômica periclitante. Kurt Coibain morreria em 1994 na distante Seatle, vencido pelo mercado, a mídia, a heroína, as multidões, mas aqui nós demoramos a perceber que os tempos iam mudar. Ainda parecia legítimo usar tênis sujo e jeans rasgado em 1997. Tênis sujo e jeans rasgado eram símbolos fortes, quero dizer, de um lado estavam os rebeldes, de outro as pessoas normais. E depois isso tudo acabou.

Acabaram os rebeldes e acabaram as pessoas normais. As pessoas normais agora podiam cometer seus “desvios” e ainda assim seriam aceitas. Aliás, “desvios” viraram algo interessante. Publicitário, mas tem uma banda? Incrível, vá em frente, nós gostamos de profissionais completos, que transitam em vários mundos e trazem referências, que entendam o jovem, estão ligados nas tendências, sua banda não quer tocar na festa de fim de ano da agência? Enquanto isso, dos rebeldes foram tirados as causas e os ícones; não há contracultura possível quando algo que nasce espontâneo vai parar em uma vitrine de shopping em tempo ínfimo.

Isso tudo aconteceu em algum ponto dos anos 2000, ainda que seja difícil dizer exatamente quando e como. Na música, as guitarras se limparam, o cuidado com o figurino voltou e, lá por 2004-2005,vimos surgir uma porção de grupos de um milhão de integrantes felizes cantando em coro. A primeira década de 2000 foi um pouco épica, cuidadosa, sofisticada. Atualmente, temos um monte de pastiches na cena do rock independente: pastiche de surf music, de big band, de country rock, de folk, de post-punk. Por mais estranho que pareça, não temos um pastiche de Nirvana.

A música, no entanto, é só uma parte da história toda (ou o lugar onde tudo começa?). Vivemos na era da fofura. Dos potes de cerâmica vendidos online. Por jovens e para jovens. O improvisado Garagem Hermética foi substituído pelo bar-inspirado-na-filmografia-de-Wes-Anderson. A cerveja ruim agora é cerveja-artesanal-com-um -rótulo-massa-feito-pelo-amigo-designer. Sentar na sarjeta só se for para comer pastel vegano em um evento relacionado à retomada do espaço público. E o velho show ao vivo é o novo álbum muitíssimo bem gravado disponível no site da banda.

Provavelmente estamos melhor, mas o precário, a ingenuidade, o barulho ainda me dão certa nostalgia. Às vezes me lembro de meus pais contando como era difícil conseguir uma calça Lee em Porto Alegre no fim dos anos 60, a calça que todos queriam ter, e tenho a impressão de que boa parte das lembranças das pessoas se relaciona a obstáculos, empenho, insistência. “Era difícil achar tal coisa, mas eu consegui.” Ou: “Era difícil montar uma banda, mas eu consegui”.

Torço, sinceramente, para que as coisas difíceis não acabem de uma vez por todas.

 

Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Seu primeiro livro, Pó de Parede (Não Editora), um tríptico de novelas, foi publicado em 2008, enquanto cursava o mestrado em Escrita Criativa, na PUC-RS. Depois, publicou três romances, todos pela Companhia das Letras: Sinuca embaixo d’água (2009), Todos nós adorávamos caubóis (2013) e O clube dos jardineiros de fumaça (2017). Em 2012, foi incluída na edição “Os Melhores Jovens Escritores Brasileiros”, da revista britânica Granta
Saiba mais sobre a autora em <https://www.carolbensimon.com/bio>.
Conheça outras crônicas da autora em <http://www.blogdacompanhia.com.br/colunistas/visualizar/Carol-Bensimon>.

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