O que é literatura LGBTQIA+?

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Amara Moira é travesti, feminista, professora, doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp e autora dos livros E se eu fosse puRa (hoo editora, 2016) e Neca + 20 Poemetos Travessos (O Sexo da Palavra, 2021). Além disso, compõem a sua obra vários artigos de crítica literária feminista e sobre a presença LGBTQIA+ na literatura brasileira.


Com o espaço que pessoas de orientação sexual e identidade de gênero não-normativas vêm conquistando nos últimos tempos, produções artísticas que remetem a suas existências, acabam atraindo cada vez mais o interesse da sociedade, a ponto de irmos nos acostumando com expressões como a usada aqui no título: "Literatura LGBTQIA+".

Exemplos desse interesse podem ser vistos no fato de Amora (2015), de Natalia Borges Polesso, obra que retrata de maneira bastante sensível e profunda relacionamentos entre mulheres, ter ganhado o prêmio Jabuti 2016, na categoria contos, ter sido objeto de uma questão do Enem 2018 (questão 20 do primeiro dia, caderno azul) e, nesse mesmo ano, ter ainda obtido a aprovação do PNLD (Plano Nacional do Livro Didático) para poder ser trabalhado em escolas públicas do país inteiro. A questão do Enem aqui mencionada girava em torno do conto "Vó, a senhora é lésbica?" e discutia especificamente o momento em que Joana, a jovem narradora-protagonista, descobre não ser ela a única lésbica da família.

Essa foi a mesma edição do Enem que trouxe a famosa questão sobre o pajubá, ali apresentado como "o 'dialeto secreto' dos gays e travestis" (questão 37 do primeiro dia, caderno azul), dialeto com origem no iorubá das religiões de matriz africana e que já contaria com, pelo menos, dois dicionários: Aurélia, a dicionária da língua afiada (2006), dos jornalistas Angelo Vip e Fred Libi, e Bichonário, um dicionário gay (1996), de Orocil Junior, ambos, hoje em dia, raridades bibliográficas. Usos literários desse dialeto podem ser conferidos, por exemplo, no álbum Pajubá (2017), de Linn da Quebrada, cantora travesti que ainda figuraria na coletânea da redação do vestibular da Unicamp 2018, com uma citação sobre o "discurso de ódio".

Mas se engana quem pensa que apenas a comunidade LGBTQIA+ se interessaria pelo dialeto. No álbum Convoque seu Buda (2014), Criolo traz explicitamente termos do pajubá num verso da canção "Cartão de visita". O mesmo cantor também alterou, dois anos depois, uma passagem da letra de "Vasilhame" (2006) por entender que ela seria preconceituosa. Na nova versão da música, em vez de  “Os traveco tão aí, oh! Alguém vai se iludir”, frase que se valeria de um termo ofensivo ("traveco") e que aproximaria travestis da noção de engano ("alguém vai se iludir"), Criolo traz simplesmente "O universo tá aí, oh! Alguém vai se iludir".

Algo parecido aconteceu com a dupla sertaneja Pedro Motta e Henrique que, após críticas pela transfobia presente na primeira versão de "Lili" (2021), decidiu regravá-la, dessa vez exaltando o amor do eu-lírico pela travesti que dá nome à canção: "Agora eu entendo porque ela demorou para fazer amor, / mas, pra mim, amor não tem nem sexo nem cor. / Falei pra ela, bebê, fica tranquila, / você pra sempre será minha menina. / Oh, Lili, oh, Lili, / não precisa esconder de mim. / Oh, Lili, oh, Lili, / o amor da minha vida é uma travesti. / Oh, Lili, oh, Lili, / não precisa esconder de mim / Oh, Lili, oh, Lili, / não tenho preconceito eu vou te assumir."

Esses são só alguns exemplos que chamaram bastante atenção nos últimos anos, mas a luta por visibilidade através das artes, e em especial através da literatura, é antiga. Recuperar momentos-chave dessa luta é uma forma de conhecermos, por outro prisma, a história do nosso país, o que justificaria por si só o debate da diversidade sexual e de gênero em sala de aula.

Ponto importantíssimo dessa luta é a publicação de Histórias do amor maldito (1967), antologia organizada pelo jornalista Gasparino Damata com textos que tematizavam a dissidência sexual e/ou de gênero, primeiro levantamento mais sistemático do que, hoje, poderíamos denominar "literatura LGBTQIA+ brasileira".

Um dos aspectos dessa antologia que mais surpreendeu a crítica, na época, é a presença de mestres incontestáveis do passado, como, por exemplo, Machado de Assis com o seu ambíguo conto "Pílades e Orestes" (Relíquias da Casa Velha [1906]), Mário de Andrade com o homoerótico "Frederico Paciência" (Contos novos [1947]), Raul Pompeia com um trecho de O Ateneu (1888) — narrativa em primeira pessoa repleta de personagens que não cabem nos padrões hegemônicos de gênero e/ou sexualidade — e Adolfo Caminha com um fragmento de Bom Crioulo (1895) — romance em que é narrado, de uma perspectiva bastante empática, o envolvimento amoroso de um marinheiro negro ex-escravizado com um adolescente branco recém-entrado na Marinha. Junto a tais mestres, figuravam também tanto autores que publicavam suas primeiras obras àquela altura, quanto outros que, embora ainda vivos, já tinham se tornado referências.

Pouco depois, com a colaboração de Walmir Ayala, um dos jovens autores aí antologiados, Damata publicaria Poemas do amor maldito (1969), agora indo atrás da produção não mais em prosa, mas poética sobre a temática que nos ocupa. Interessante observar que, apesar de o título das duas antologias trazer o adjetivo "maldito" atrelado à palavra "amor", nos paratextos de ambas as obras esse atrelamento é problematizado. Na obra de 1967, Octávio de Freitas Júnior encerra o prefácio insinuando que, com as transformações pelas quais o mundo passava, é possível que rapidamente deixasse de fazer sentido falar em "amores malditos", ao passo que Ayala, no prefácio da de 1969, foi ainda mais longe:

É verdade que a maioria dos poetas que compareceram nesta antologia — sendo o poeta um "fingidor", como disse Fernando Pessoa — não praticaram o amor maldito, mas perceberam sua realidade e "fingiram" sua história. Coisas que só os poetas podem fazer. Para mim, que amei este amor do mais fundo de minha alma, e que me enriqueci por ele, e cresci nele, é um atestado de subversão que assino altamente, num momento da humanidade, em que a grandeza do sexo, seus mistérios, o reconhecimento de sua força, vai sendo transpassado de uma religiosa consciência, e vai servindo não mais como estigma de vergonha nos complexos de culpa da depravação e da clandestinidade, mas assoma à nossa crônica diária, entra nos colégios pela boca das nossas virgens freiras, dardeja dos púlpitos dos templos, invade os curriculuns, fica sendo alvo preferido dos novos rumos da educação, provando sempre mais que a designação de "amor maldito" posta no título desta antologia, é um grande erro de definição. Para mim pelo menos, são poemas de amor. Foram escritos por pessoas que também pertencem a uma minoria, a minoria do espírito militante, e que usam a palavra jamais para deboche ou redução de sua grande fatalidade humana. (AYALA, 1969, p.9)

A citação é extensa, mas espero que os elementos que ela traz a justifiquem. Ayala apresenta aqui o que seriam, a seu ver, as duas formas de se poetizar o "amor maldito": de um lado, fingindo-o, ou seja, fazendo uso exclusivo da imaginação, e, de outro, alicerçando essa escrita na experiência pessoal. Imaginação e fingimento estão presentes em ambas as formas de escrever, o próprio poema de Pessoa o assegura ("O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente" (PESSOA, 2016, p.156), mas Ayala defende que, da perspectiva de quem vive esse amor, fingir já não é o suficiente: é preciso, ao mesmo tempo que se trabalha a linguagem poética, fazer uso dessa poesia para construir um futuro em que tal indivíduo obtenha o pleno direito de existir.

O poema teria, então, um propósito específico, seria movido pela  urgência de criar um mundo vivível para quem faz parte dessa minoria, assumindo, assim, esse escrever, um caráter militante. Percebe-se, no entanto, que, seja por puro desconhecimento, seja por medo de perseguição, não era tranquilo especificar quais poetas escreviam a partir de uma experiência pessoal e quais não, intranquilidade essa que, mesmo presente nos dias de hoje, quando o enfrentamento aos preconceitos já está num patamar muito mais avançado, nos põe diante de um impasse.

Como saber, de uma vez por todas, quais textos teriam esse comprometimento com a causa? Ayala não responde à questão. A dúvida, aliás, talvez tenha sido um elemento importante para que a obra conseguisse ser publicada, pois, diante de figuras tão expressivas das nossas Letras, como os antologiados Drummond, Jorge de Lima e Vinicius de Moraes, era arriscado sair apontando dedos e fazendo insinuações. Difícil até imaginar como é que o prefácio de Ayala passou batido pela censura, haja vista estarmos em plena Ditadura Militar e o AI-5 ter acabado de ser emitido (13 de dezembro de 1968).

Damata, na orelha dos Poemas, defende que, diferentemente do leitor comum, leitores pertencentes "às chamadas 'minorias eróticas'" teriam uma sensibilidade aguçada para detectar poemas dessa temática. Ele foca não na autoria, mas na temática, assim como na habilidade de detectá-la, com isso trazendo um novo elemento para o debate: a experiência pessoal seria um fator importante na produção tanto de determinada escrita, quanto de determinada leitura. Ou seja, sua bagagem de experiências afeta a obra que você é capaz de produzir, mas também a sua maneira de ler as obras.

Não conclua, com isso, que a experiência pessoal é determinante seja para produzirmos essas obras, seja para aprendermos a lê-las. O que as provocações de Damata e Ayala estão nos dizendo é que, num mundo dominado pelo preconceito, dificilmente pessoas que não sofrem os efeitos diretos da discriminação teriam plena consciência sobre o impacto de suas produções na superação da LGBTfobia, ou seja, dificilmente elas saberiam dizer, com conhecimento de causa, se suas narrativas e leituras ajudam ou atrapalham na construção de um mundo mais seguro para pessoas LGBTQIA+.

Num futuro utópico, espera-se que não seja necessário uma pessoa ser negra ou indígena para ela conseguir perceber racismo e imaginar formas de enfrentá-lo, ou mulher para combater o machismo, ou pessoa com deficiência para o capacitismo. O mesmo raciocínio vale para pessoas LGBTQIA+. Nesse sentido, "Literatura LGBTQIA+" seria não só a literatura produzida por tais sujeitos, como também aquela que, ao tematizar essas existências, sabe ser aliada na construção de um mundo livre dessa específica forma de discriminação. Não precisa ser panfletária, no entanto: o que ela precisa, isso sim, é que o poder criativo esteja ancorado numa sensibilidade aguçada.

Podemos aprender de maneira empírica, vivendo a experiência em primeira pessoa, mas podemos também aprender por meio do estudo, nos informando a respeito de realidades que desconhecemos, desenvolvendo a capacidade de detectar violências que são feitas contra grupos dos quais não fazemos parte, colaborando ativamente para que a segregação não continue impedindo a construção de uma sociedade liberta de preconceitos. Eis o desafio a que nos lançamos quando trazemos essa literatura para dentro da sala de aula.


Para saber o significado da sigla LGBTQIA+, clique aqui.

Bibliografia

AYALA, Walmir. "Depoimento de um antologiado à guisa de prefácio". Poemas do amor maldito. Brasília: Coordenada Editora, 1969.

PESSOA, Fernando. Obra poética de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. < https://docero.com.br/doc/e1xs800>. Acesso: abril 2022.

19 thoughts on “O que é literatura LGBTQIA+?

    1. Excelente explanação!! Me auxiliou a esquematizar um Projeto de Ensino e proporcionar às/aos estudantes da minha escola, e de maneira transdisciplinar, o acesso à literatura LGBTQIA+. Muito obrigada.

    1. Parabéns pela temática! O conhecimento amplo sobre a questão nos faz repensar nossos conceitos e práticas em sala de aula. Além disso, inova questões abordado no contexto social dos estudantes, facilitando a interação aluno X professor.

  1. Excelente texto. Reflexões muito apropriadas para o momento e que certamente contribuem para a organização de material para a exploração do tema em sala de aula.

  2. A literatura sempre nos leva para um futuro reflexivo e principalmente justo, ao dar voz para todos os sentimentos, sendo um deles, o amor entre pessoas de mesmo sexo, excelente artigo.

  3. Riquíssima informação, maneira clara e precisa para explanação em sala de aula nesse momento em que tantos jovens não têm definição de gênero.

  4. O que deve ser ensinado é respeito e amor ao próximo.
    O não aceitar o opinião também é correto, desde que respeite. Isto vale para qualquer tipo de assunto.
    Quando há respeito não há xingamentos, apelidos, brigas, etc.

  5. Fico na seguinte questão também explicita no texto a partir das provocações de Ayala e Damata: pessoas não afetadas pelo preconceito teriam uma sensibilidade aguçada para tratar da temática com tanta propriedade e responsabilidade, seja no fazer literatura e no educar por meio dela? Esse me parece ser o ponto chave do artigo para a nossa reflexão

  6. Ótimo artigo, contextualizado com as retomadas históricas e com orientação para planejamento de aulas que incluam autores e o tema da diversidade de gênero. Obrigada!!

  7. Quando se ensina a respeitar a todos e suas diferenças e individualidades e que não ser igual aos outros não é uma regra. Não há preconceito, não há discriminação. Há aceitação, há diálogo, há amor.

  8. Reflexões apropriada para o momento que contribuem para organização de materiais e explorações do tema em sala de aula.

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