Memórias de uma gata borralheira

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Matheus Fernandes de Sousa


Pai tocando a tropa pelo estradão, mãe fabricando rapadura para ajudar na renda da família, boneca de milho, corda de cipó ao lado da pá, brincadeiras de criança da roça divididas com o trabalho da enxada e do pilão. O sonho de ler e escrever e a dura travessia para a cidade em busca de uma vida melhor. Nestas Memórias Literárias, Matheus Fernandes de Sousa, de Iporá (GO), traz, pelas lembranças da avó, a história de sua família e de seu lugar.

 

“Ah, são tantas lembranças daquela época, meu querido!”, respondeu minha avó, ao ler em meus lábios a indagação sobre sua infância.

Escondido no Cerrado goiano, próximo ao povoado de Campo Limpo, então distrito de Iporá, nosso sítio foi o cenário da minha infância. Fui a sétima filha de um total de doze irmãos. Papai era boiadeiro, tocava a boiada pelo estradão. Muito rígido com os filhos, nos repreendia apenas com o olhar. Mamãe fabricava rapadura para incrementar a renda da família.

Nossos brinquedos, presenteados pela mãe natureza, eram bonecas de sabugo de milho, corda de cipó para pular, cavalinho de pau e barro para moldar objetos. Aos 8 anos, estávamos fadados a ajudar na labuta diária da vida na roça, pois, naquele tempo, o valor do suor era o que pesava. Novos “brinquedos” levavam embora nossos devaneios: a pá, a enxada, o pilão e a enorme colher de cabaça, usada para mexer o imponente tacho de cobre com garapa sobre a fornalha ardente, para mamãe fazer rapadura.

Ao cair da noite, o inebriante aroma de querosene, vindo das lamparinas, emanava pelo ar em nosso ranchinho beira chão. Descansávamos nosso corpo fatigado no colchão de palha, afagados pela colcha de retalhos, a única decoração daquele rústico ambiente. O cricrilar e coaxar da grandiosa orquestra de grilos e sapos embalavam nosso sono.

Para papai, aprender a ler e a escrever era algo supérfluo, um “incutimento sem pé nem cabeça”, mas para mim, o meu maior sonho. Ansiava por aprender a escrever o meu nome. Não recebíamos nenhuma instrução dentro ou fora de casa.

Ricardo, meu irmão primogênito, conhecendo essa minha grande ambição, ao ouvir de uma astuta senhora que procurava uma menina-moça para lhe auxiliar nos serviços domésticos, em troca de mantimentos e estudo, não pensou duas vezes, foi logo falando sobre mim. O combinado foi feito e meus pais deram a permissão. O percurso de 30 léguas para Rio Verde, que hoje leva 3 horas, demorava quase um dia para ser feito. Ali, aos meus 12 anos, embarquei rumo a uma jornada de sonhos e lá desembarquei em uma realidade de pesadelos!

Meu mundo de ilusão me conduziu a tornar-me a gata borralheira. Nessas “bodas”, nada me remeteu ao açúcar ou ao perfume. Foram seis longos anos de trabalho árduo, em troca – apenas – de um prato de comida para saciar minha fome. A fome de aprender a ler e a escrever? Essa não suportou e sucumbiu já no primeiro dia! Em meio a tanta peleja, consegui juntar algumas gorjetas e fugir daquele pensionato que só me deixara lembranças sombrias.

Papai, sabendo que seus dias se findavam, vendeu nosso pedacinho de chão e, na esperança de dias melhores, mudou-se para o distrito que ganhara autonomia graças ao então deputado Israel de Amorim: Amorinópolis.

Que nostalgia lembrar do lugar onde tive o refrigério de minh'alma! Ao anoitecer, a cidade ainda se encontrava às escuras. A pobre iluminação, oriunda de lampiões a gás, dava um ar fantasmagórico ao ambiente. Na rua de chão batido, vislumbrava a nuvem de poeira pairando pelo ar. A geladeira funcionava a querosene, chegava fogo embaixo para gelar em cima. A GO-221, que facilitou o acesso ao Sudoeste goiano, ainda não existia e Amorinópolis era rota obrigatória para muitas cidades.

Em julho, a tradicional festa da padroeira local deixava a cidade alvoroçada. Em meio a uma delas, um rojão desgovernado adentrou nossa cozinha e explodiu. O volume do mundo se abaixou, bruscamente, dentro de mim! Nossos progressos se entrelaçaram…

Nossa rua foi pavimentada com paralelepípedos, o largo central virou praça, a energia elétrica chegou levando embora a escuridão da noite e o ferro de passar a brasa. Reaprendi a ouvir lendo lábios e vi, devagarinho, chegarem ali estradas, água encanada, fogão a gás, televisão… Também vi papai descer à sepultura levando com ele uma parte de mim!

Hoje moro em Iporá. Meus olhos transbordam ao trazer de volta memórias de um passado que, apesar das dificuldades, nos fazia felizes o quanto podia, pois tudo tinha o seu valor.

Permanecerão em minha memória e em minha alma, sem o “coitadismo” enraizado, lembranças de uma vida que sempre foi e me exigiu a ser que nem rapadura: doce e dura.

*

Texto baseado na entrevista realizada com Beronice Mendes dos Santos, de 66 anos

 


Professora Marília Alves de Oliveira Magalhães

EM Valdivino Silva Ferreira, Iporá-GO

 

10 thoughts on “Memórias de uma gata borralheira

  1. Como não emocionar ao ler memórias como estas de Dona Beronice. Glória a Deus!!! Por podemos através destas lembranças escritas e publicadas, termos acesso à elas e então compreender as dificuldades e alegrias de vida de uma geração. Parabéns!!! Ao neto por registrar e as olimpíadas por publicar. Magnífico texto!!!

  2. Que texto tocante e bem escrito.Parabéns ao aluno q soube passar para o papel de forma tão verdadeira as lembranças da avó.

  3. Fiquei maravilhada com o texto “Memórias de uma Gata Borralheira” produzido por Matheus Fernandes de Sousa. Ele trouxe à tona a pauta da vida com marcas da infância vivida pela sua avó o que, sem dúvidas, traduziu com muita precisão a realidade da populção infantil que moravam na roça, nos diferentes estados brasieiros. Me senti contemplada e revivi momentos ímpares do meu tempo de menina, também, com alguma peculiaridades. Sou muito apaixonada pelo trabalho que é desenvolvido junto aos professores e seus respectivos alunos, das diferentes escolas do nosso imenso Brasil, por meio do ensino da leitura e produção de textos literários, implementado pela OLP de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro. Pelas Formações/Cursos oferecidos no portal . Parabéns a todos os envolvidos na ação: idealizadores e apoiadores. A OLP não pode parar. Ela tem feito um bem enorme a todos que dela participam como orientadores junto aos professores e estes, por sua vez, junto aos seus alunos.
    Em especial, neste momento, parabenizo Matheus Fernandes de Sousa pela sua produção maravilhosa que contempla as marcas textuais do gênero memórias. Isto é a provaprova que ele entendeu as lições que lhes foram dadas.

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