Eu, a leitura e a escrita

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O curso on-line Caminhos da Escrita propõe aos professores e professoras que escrevam um relato contando um pouco sobre suas primeiras lembranças com a leitura e escrita, recuperando momentos, livros e experiências marcantes. As inscrições para o curso serão abertas no dia 15/03, às 10h (clique aqui para saber mais).

 

Silvana de Fátima Guimarães Nogueira


A FILHA DO MEIO

 

 

Eu sou a quarta filha, numa família de sete filhos. Antes de mim, nasceram três meninas e depois de mim, dois garotos e mais uma menina, todos entre um espaço de cerca de um ano e meio. Naquela época, final da década de 60, era comum as famílias serem numerosas. Some-se a isso o fato de a minha família ser bastante pobre, de viver num sítio a três quilômetros e meio de uma cidadezinha com menos de cinco mil habitantes, no sul de Minas Gerais e, você, caro leitor, terá uma ideia da pobreza a que refiro. Não, eu não era negligenciada, todas as minhas necessidades básicas eram atendidas, mas meus pais em suas labutas diárias simplesmente não tinham tempo para mim. E assim eu me criei: meus brinquedos eram gravetos em forma de bonecos que eu os vestia com roupinhas feitas por mim; meus amigos eram os meus irmãos e os inúmeros filhos da vizinhança; os parques de diversão, os jardins e as piscinas eram os quintais com as numerosas árvores frutíferas, as plantações de arroz e milho e os córregos que circundavam as casas.

Foi somente aos sete anos de idade que eu fui matriculada na escola. Era necessário percorrer a pé, numa estrada de terra os três quilômetros e meio que separavam o nosso sítio da pequena cidade de Piranguinho. Meu primeiro caderno foi feito pela minha mãe. Ela aproveitava as folhas em branco dos cadernos das minhas irmãs de anos anteriores e as costurava a máquina. Minha primeira mochila também foi feita em casa por minha mãe. Era um embornal feito de brim grosso que a gente usava a tiracolo. Até os lápis eram aproveitados dos anos anteriores. Somente o uniforme eu tive a satisfação de ganhar um novo feito pela costureira do bairro especialmente para mim, uma vez que, naquele ano, havia mudado o modelo e nós, eu e minhas irmãs ganhamos uniformes novos: uma saia evasé azul marinho de tergal, com um peitilho, cujas alças trespassavam nas costas e a camisa branca com o emblema da escola. Os tênis, no entanto, eram usados, herdados de uma das irmãs.

Mas eu ia feliz, a expectativa era grande. Sentia que um mundo novo se abriria para mim. Em casa, eu via as minhas irmãs fazendo os deveres da escola e sentia um grande desejo de participar desse universo misterioso e mágico. Eu guardava embaixo do colchão de palha um livro que ganhara de uma senhora, nossa vizinha. Ela ia jogá-lo fora e eu pedi que me desse. Era todo ilustrado com desenhos de uma família composta por pai, mãe e um casal de adolescentes. Eu soube depois que o livro contava a história de Daniel Boone – um pioneiro desbravador das florestas americanas do Kentucky ocupadas pelos índios nativos no século XVII. Esse foi o primeiro livro que despertou em mim curiosidade em participar do universo da leitura, mas não quis pedir para que alguma irmã lesse para mim, eu queria saborear o momento em que eu mesma olharia para aqueles códigos e os interpretaria e desvendaria aquele mundo até esse momento vedado a mim. Há exatos 43 anos eu me sentava pela primeira vez numa carteira de escola. Era um banco de madeira rústico, feito para duas crianças. Ao meu lado sentou-se aquela que se tornou uma grande amiga até os dias de hoje: Sônia é seu nome. Ela é filha de minha madrinha e morava no mesmo bairro que eu, aliás, fomos juntas para a escola naquele dia e tornamo-nos inseparáveis da primeira à quinta série, quando, então, ela mudou-se para Itajubá. Juntas, recebemos nossa cartilha “Caminho Suave” e começamos a trilhar o caminho nada suave da alfabetização. A professora, dona Nair, era uma senhora bastante idosa, muito severa, mas que cumpria com maestria seu propósito. Não demorou muito, eu pude ler o título do livro que guardara sob o colchão de palha: Novas aventuras de Daniel Boone.

E este foi o começo de uma aventura que transformou o meu mundo de uma garota simples da roça em uma professora de Língua Portuguesa, cuja desafiadora missão é levar os jovens a fazerem uso do pensamento e da imaginação com o prazer da leitura e da escrita. É um desafio emocionante e eu procuro sempre buscar novos métodos e novos conhecimentos (como os cursos online Escrevendo o futuro) a fim de seduzir os jovens para o universo do conhecimento.

17 thoughts on “Eu, a leitura e a escrita

  1. Reportei-me ao passado, temos uma historia parecida, eu me imaginava podendo sentar ao lado de meu avô e poder ler os jornais junto a ele.

  2. Também sou de sua época, Joseane… estudei em uma cartilha e carteira dessas. Foi delicioso seu relato. O poder da escrita nos possibilita poderes mágicos assim… de nos reportarmos às épocas remotas de nossa alma e trajetórias particulares que se tornam públicas. Parabéns pelo texto. Belo incentivo.

  3. Maravilhoso seu relato Professora, pois fez viajar no tempo da minha infância e como comecei os primeiros passos na leitura e escrita

  4. Apaixonante este relato, nunca me conformei por um número grande de pessoas ficarem de fora do aprendizado da leitura e da escrita, e não conseguirem “ler o mundo”, como dizia Freire. Parece um privilégio para poucos. Quando leio histórias assim vejo que é possível, à Educação é um Direito, e ninguém pode ficar de fora, seja qual for a sua condição social e econômica.

  5. Muito linda o relato da professora que contou-nos momentos vividos por alguns de nós. Amei reviver através da história dela, a nossa. Obrigada!

  6. Mas que leitura gostosa, revivi um pouco da minha infância. Vivi coisas bem parecidas. “Meu primeiro caderno foi feito pela minha mãe. Ela aproveitava as folhas em branco dos cadernos das minhas irmãs de anos anteriores e as costurava a máquina.” O diferente é que a mãe costurava com agulha à mão.

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