Eu, a leitura e a escrita

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O curso on-line "Caminhos da Escrita" propõe aos professores e professoras que escrevam um relato sobre suas primeiras lembranças com a leitura e a escrita, recuperando momentos, livros e experiências marcantes. As inscrições para o curso serão abertas no dia 24/08, às 10h (clique aqui para saber mais).

 

Cintia Cristina Zanini

São Leopoldo (RS)


Entre o chimarrão e a estante
de livros: uma leitura inesperada

 

Era cedo. Levantei e caminhei até o outro quarto. Espiei pelo estreito vão da porta, minha filha que dormia tranquilamente. Caminhei até à cozinha ainda sonolenta. Fui colocar a água na chaleira para esquentar. Sempre gostei de iniciar o dia com um bom chimarrão e um livro entre as mãos. Dirigi-me até a estante de livros e lancei um olhar pelos títulos expostos. Dúvidas e mais dúvidas... Enquanto tentava escolher algo que sanasse minha sede matutina, algumas lembranças visitavam-me insistentemente.

Recordei-me do dia em que, por volta dos meus doze anos, uma grande caixa de livros foi entregue em nossa casa pelos Correios. Meus pais receberam a grande encomenda e colocaram-na no chão da sala. Eu e meus dois irmãos nos olhávamos curiosos e entusiasmados na expectativa de brinquedos inéditos. Tal foi nossa surpresa e decepção ao depararmo-nos com livros. Bonecas que andavam e batiam palmas, carrinhos por controle remoto e as últimas novidades em jogos de tabuleiro ficaram somente em nossa imaginação. Eram livros! Mal sabíamos nós o efeito impactante que esses montinhos de papel causariam em nossas vidas ao longo de nossa formação como seres humanos em um futuro próximo.

A chaleira elétrica, com um som peculiar, deu sinais de que a água começava a esquentar. Continuei a correr o olhar sobre as prateleiras buscando algo que me aprouvesse. Rapidamente, assomada por outra lembrança, ri baixinho. Na juventude, quando ainda morávamos em Porto Alegre, vibrava quando meus pais saíam para realizar seus compromissos. Era hora de vasculhar os livros proibidos. Eles ficavam chaveados na estante. Como as chaves eram as mesmas para todas as portas, sempre havia uma “dando sopa”. Abrir uma dessas portas era como atravessar um grande portal mágico. No entanto, os livros proibidos nada tinham de fantásticos. Eram livros técnicos da área da enfermagem: anatomia humana, primeiros socorros, farmacologia, entre outros. Por que os escondiam? Nunca soube. Mas para meu deleite, foi interessante que esse ato secreto tenha permanecido incólume.

Dei de ombros. A chaleira começou a chiar mais forte. Fui preparar a cuia, a bomba e pegar a erva-mate. Enquanto o chimarrão ganhava forma, pensei no tipo de erva utilizada e o quanto essa escolha é determinante na apreciação de seu aroma e sabor. Fui tomada por um insight: para degustar um texto ou livro, requer preparo e escolha de hábitos diários que são decisivos na formação leitora. Minha primeira inscrição em uma biblioteca, quando cursava a quarta série do ensino fundamental, foi um desses fatores determinantes. Adentrá-la foi empolgantemente desafiador e prazeroso: a possibilidade de retirar até dois títulos por vez abriu as portas para explorar o desconhecido em uma ascendente infinita através da leitura diária que foi se desenvolvendo paulatinamente.

Já com o chimarrão em mãos, sorvi o primeiro gole, saí da cozinha e voltei para a estante. Deparei-me com um livro que foi muito significativo em minha adolescência: A marca de uma lágrima, do autor Pedro Bandeira. A trama desenvolvida de forma criativa e poética, descrevendo sentidos, sentimentos e sensações dos personagens, me tornou desejosa de querer realizar o mesmo feito. No ensino fundamental, esforços não faltaram para que minha escrita fizesse aproximações com a do autor que admirava. No entanto, naquele momento, não alcancei a excelência almejada. Minhas produções textuais, insistentemente, retornavam com inúmeras correções ortográficas e apresentando equívocos na concordância verbal. Ingressei no ensino médio com esse estigma de que minha escrita, talvez, não se desenvolvesse a contento. A mudança de ambiente escolar trouxe a possibilidade de explorar uma nova biblioteca, duas vezes maior que a anterior, que aguçou meu olhar para outras áreas do conhecimento, despertando em mim novos interesses. Assim, sem saber que minha escrita melhoraria significativamente, segui com minhas leituras.

Servi o chimarrão pela segunda vez. Ainda estava indecisa. Lembrei que, uma das minhas diversões, na pré-adolescência, era pesquisar no dicionário palavras pouco utilizadas na linguagem coloquial. De posse da compreensão de seus significados, vinha a certeza de que seriam utilizadas em uma próxima discussão com meus pais, irmãos ou amigos. As feições de seus semblantes ao escutá-las pela primeira vez eram hilárias! Ganhei algumas discussões por conta disto. Então, percorri o olhar pela totalidade do meu acervo e percebi que não o tinha comigo. Senti saudades das finas e delicadas folhas do “Novo Dicionário Aurélio”, de mil e tantas páginas, de capa dura onde estavam impressas letras pretas em fundo amarelo.

Suspirei e levantei. A água do chimarrão estava morna. Coloquei mais água para esquentar. Segredei para mim mesma em tom de ironia: a leitura matutina estava feita...

28 thoughts on “Eu, a leitura e a escrita

  1. Uma leitura macia. Esta é a sensação. As palavras fluem fáceis, familiares, ” macias”, como se caminhássemos descalças pela areia da praia( qdo o sol não está forte rsrs).

  2. Cada escrita da Cintia é sempre puro deleite. Neste a gente se envolve com a emoção que expande das suas palavras. Somos levados a um espaço tão especial, e cada novo trecho é um arrepio. Entre descobertas e certezas, a saudade do largo sorriso dessa gaúcha olímpica.

  3. Muito bom…. lembrei de minhas experiências de leitura…. ainda muito nova a biblioteca era meu passeio… consegui passar este gosto a minha filha…
    Adorei querida, escreve mais….

  4. Conheço a Cíntia e o trabalho que desenvolve como ser humano , como educadora. Como admiradora posso dizer que não foi surpresa a publicação, pois a Cíntia é exemplo de determinação e desempenho por excelência. Parabéns.

  5. Que leitura tão poética!!! Tão cheia de lembranças! Me veio tantas memórias felizes à mente!! Obrigada Cíntia por este momento!!

  6. Oi. Muito legal o teu relato. Memórias de leitura são um bom ponto de partida para começarmos a escrever. Lembro que uma vez em uma disciplina de literatura da graduação, o professor nos pediu que escrevêssemos sobre as nossas memórias como leitores. Na hora achei que seria um tema complicado, mas mais tarde, ao iniciar minha escrita, lembro que tive que fazer cortes e editar meu texto, pois já tinha ultrapassado o limite solicitado, tamanho era o turbilhão de memórias que me vieram à mente.

  7. Muito eloquente seu relato.Me fez recordar como ocorrerram meus primeiros contatos com a leitura. Foi de forma timida e reservada. A condição da familia era limitada e a escola tambem. Mas via na leitura a possibilidade do conhecimento e ampliar a visao de mundo.

  8. Emocionante este relato!
    Segundo Sêneca, ” A leitura nutre a inteligência.” Percebe-se a riqueza de sabedoria adquirida com o hábito das diversas leituras, realizadas pela Cíntia.

  9. Que desabafo!! Me enxerguei em várias partes deste texto.
    Mas a vontade de poder nos abrem caminhos, rs ,nos possibilitam vencer é dar relatos como este pra alavancar os que adormecem pelo medo.

  10. Sensações visuais, sonoras.
    Sentimentos evocados pela leitura de livros, que fizeram efervescer tantos gostos em leitura e escrita, desenvolver ideias, amadurecer pensamentos.
    O dicionário, tão importante , a fieza ao delinear , sua escrita : Entre o chimarrão …

  11. Bom dia ! ! ! ! Muito bom, eu na minha infância e adolescência, não me recordo de ler, fui criada no sertão do Ceará não tive oportunidade de ler

  12. lindo texto! Adorei o encadeamento das ideias. Também gosto muito de saborear um chimarrão, pois ou gaúcha
    e moradora de município vizinho(Esteio).

  13. Que coisa mais interessante! Viajei no tempo! Eu também li ‘A Marca de uma Lágrima’, e me deixou marcas adoráveis! Amei sua história!!!

  14. Tive várias experiências durante o processo de alfabetização, mas que mais me chamaram atenção foi alfabetizar alunos com TDAH. No início fiquei intrigada com os alunos inquietos, que andavam na sala de aula o tempo. Às vezes iniciavam as atividades, mas nunca concluiam-as. Então comecei a planejar atividades resumidas (com poucas questões e textos pequenos) após três meses comecei obter resultados positivos.

  15. O texto nos traz lembranças que marcaram as nossas vidas. São reminiscências da vida infantil escolar que estão impregnadas em nossas mentes.

  16. Emocionante! Comecei a ler sem muito interesse! Cheguei ao final, repleta de expectativas. O texto, mesmo em prosa é repleto de poesia. Remonta os caminhos da nossa infância! Em cada leitura, somos impregnados com novas imagens!

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