Contação de História no Ensino Fundamental II: Oralidade e Multidialetalismo

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Talita Zanatta

 

A oralidade em foco na escola

 
Embora a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental II traga a oralidade como objeto central da prática pedagógica, assim como da escrita, muitas vezes a expressão da linguagem oral dos estudantes é negligenciada em detrimento do ensino de uma oralidade que siga a norma padrão da Língua Portuguesa. Um exemplo disso é quando escolhemos gêneros textuais mais formais para trabalharmos a oralidade em sala de aula, como debates e seminários.

A oralidade é parte constituinte da linguagem e dos sujeitos, e estudá-la em sala de aula possui diversas dimensões, dentre elas, a valorização e o estudo da língua falada por nossos alunos e alunas. Não basta somente trazermos a variação linguística como tema, estudando as variantes coloquiais, elas precisam ser consideradas como produtoras de conhecimento, como parte da identidade não só de estudantes, mas de toda comunidade escolar, afinal, cada integrante também traz consigo, na oralidade, as marcas de quem são.

O ensino de Língua Portuguesa ainda é visto, principalmente pelos(as) alunos(as), como o ensino da forma correta de falar. Não são raras as vezes em que eles(as) consideram “não saber falar nem o português” ou brincam que determinado(a) colega “assassinou a língua portuguesa”. Essas falas corriqueiras demonstram a baixa autoestima de boa parte dos falantes de português no Brasil, que ao se depararem com a norma padrão sentem-se em desajuste. A linguista Tânia Rezende destaca como a língua pode ser violenta ao ser utilizada como mecanismo de controle, à medida que, quanto mais a oralidade estiver próxima da norma padrão, mais valorizada ela será. No entanto, sabemos que há pesos diferentes entre variantes coloquiais, e questões não apenas linguísticas influenciam no modo como as diferentes oralidades são aceitas ou não. Um exemplo disso é como o racismo aparece no preconceito linguístico, pois o uso do “tá” para dizer “está” não é estigmatizado como “pobrema”. Lélia Gonzalez discorre sobre isso evidenciando as diferenças de tratamento dispensadas às variantes linguísticas oriundas do contato com línguas africanas em relação a outras variantes do português brasileiro:

É engraçado como eles [sociedade branca elitista] gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l nada mais é do que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal quem é o ignorante? Ao mesmo tempo acham o maior barato a fala dita brasileira que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês.

(GONZÁLEZ, 1983)

Nesse sentido, as aulas de Língua Portuguesa precisam não apenas tratar da variação linguística, mas trazer a oralidade como objeto de conhecimento. Todavia, sendo a escola um espaço de saber legitimado, quando a mesma ignora ou invalida certas oralidades corrobora para a manutenção do preconceito linguístico e das relações de poder que o sustentam. Por isso, estudar a oralidade em sala de aula deve ser sobretudo a valorização da identidade linguística de cada aluno e aluna.

Priorizar o ensino de Língua Portuguesa que privilegia a norma padrão, mesmo que seja bem intencionado, colabora para a naturalização das desigualdades, pois tal prática pedagógica leva a pensar que todo falante do português precisa chegar em um mesmo ponto em comum – o português padrão. Além disso, reproduzimos a ideia de que o exercício da cidadania deve ser conquistado a partir de um conhecimento linguístico, ou seja, não está dado. Nesta visão, o conhecimento da língua padrão garantiria o acesso aos direitos constitucionais de modo que as pessoas que não possuem esse saber linguístico precisariam passar a tê-lo para converterem-se em cidadãos. Em outras palavras, como defende Émerson de Pietri, o objetivo do ensino de Língua Portuguesa ainda é visto como um projeto civilizatório.
 
 

O Multidialetalismo e o ensino de Língua Portuguesa

 
Na escola, por sua vez, existe uma diversidade de dialetos do português e em alguns casos há também a diversidade de línguas. Esse multidialetalismo – a coexistência de variações e dialetos – e multilinguismo – a coexistência de línguas diferentes – são fruto de processos migratórios, das relações entre campo e cidade, centro e periferia e de relações intergeracionais.

Trabalhar a oralidade sob uma perspectiva que não seja a da norma padrão possibilita ao(à) educador(a) promover o respeito às práticas culturais e linguísticas e a autoestima linguística dos(as) estudantes, o que contribui tanto para sua participação em sala de aula como para as relações interpessoais. Além disso, ações pedagógicas, sejam elas de oralidade ou escrita que levam em consideração o multidialetalismo e o multilinguismo, permitem a toda equipe pedagógica conhecer melhor seus alunos, suas alunas e sua comunidade escolar, possibilitando também que esses saberes possam ser utilizados em sala de aula.

Quando as aulas de Língua Portuguesa partem e objetivam essa diversidade, no lugar de promover um ensino que vise a padronização da oralidade e da escrita do português, os(as) estudantes deixam de sentir-se como não falantes e passam a estabelecer outra relação com a língua. Não se trata de não ensinar a norma padrão, mas de não considerá-la o ponto de chegada do ensino, ela é mais uma habilidade, tal qual a expressão coloquial.

 


Bibliografia:

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.

GONZALEZ, Lélia. "Racismo e sexismo na cultura brasileira". In: SILVA, L. A. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje, Brasília, ANPOCS n. 2, p. 223-244, 1983.

MAHER, T. M. Ecos de resistência: Políticas Linguísticas e línguas minoritárias no Brasil. In: NICOLAIDES,C. et al. (Orgs.) Política e Políticas Linguísticas Campinas, SP: Pontes, 2013, p. 117-134.

PIETRI, Émerson de. Ensino de língua materna e educação bidialetal no Brasil-Duas áreas e um mesmo problema?. Revista Pleiade, v. 1, n. 1, p. 7-20, 2007.

 


Sobre a autora

Talita Zanatta é professora de Língua Portuguesa da rede municipal de São Paulo. Pós-graduada em Narração Artística pela Casa Tombada e Mestranda em Educação e Linguagens, pela Universidade de São Paulo (USP).
Contato: tali.zanatta@gmail.com

 

 

37 thoughts on “Contação de História no Ensino Fundamental II: Oralidade e Multidialetalismo

  1. Maravilhoso! Devemos valorizar nossas raízes, cada pessoa tem sua particularidade no falar. O mais importante é o interagir com o outro e fazer entender.

    1. O tema ”contação de história” está detalhado na aba ”Plano de aula”, logo abaixo do título do artigo.

  2. Sou professor de língua portuguesa para o fundamental II. Sempre deixei claro que as variações linguísticas têm o mesmo valor que a norma padrão; inclusive, afirmo que a norma padrão é apenas mais uma variação. Só que a maioria das minhas argumentações caem por terra quando, no frigir dos ovos, todo concurso de redação e de avaliação em vestibulares e no ENEM primam pela gramática normativa em detrimento do multidialetismo. Gostaria imensamente de receber materiais didáticos que me auxiliem e tornem meus argumentos mais consistentes. Abraços!

  3. Parabéns! Esse plano de aula é excelente, irei aplicá-lo em minha turma e teremos uma aprendizagem fantástica contra o preconceito linguístico.

  4. Olá! Quero agradecer ao pessoal do Escrevendo o Futuro pelo apoio pedagógico. Os planos de aula são muito válidos. Aprendo muito com vocês!

  5. Artigo muito bom. Com certeza é a pura verdade o que foi escrito. Parabéns pelo ponto de vista. Acredito eu que vai despertar muitos educadores.

  6. Que coincidência! Ontem um rapaz me viu lendo e comentou que “queria gostar de ler pra poder estudar” porque pretende prestar vestibular para Direito. Fiquei encantada, troquei ideia com ele e expliquei que leitura é uma questão de hábito. O senhor que saía chamou o garoto e disse que deixaria uma “caixinha pra eles”. Intrigado, ele ficou um tempo tentando desvendar o que era a tal caixinha, até perceber que foi deixado dinheiro a mais, significando se tratar de uma gorjeta. Então ele voltou a mim e disse “tá vendo? Me falta leitura mesmo, tem palavra que não sei o que é”. Nesse contexto não quis adentrar, só o incentivei a ler de pouco em pouco e desejei que conseguisse passar no vestibular. Um ensino mais flexível talvez tivesse despertado o gosto pela leitura, maior conhecimento vocabular e motivação para o estudo das outras disciplinas.

  7. Gostei demais das orientações, respeitar as crianças sua formas de se expressar. Nossa maior dificuldade na área da educação é não valorizar as pessoas como elas são.

  8. O interesse iniciou pelo título e, ao aprofundar a leitura, veio o encantamento pelas fases a ser desenvolvidas com os alunos/as. Valorizar a oralidade trazida das vivências é de suma importância para a valorização e autoafirmação como parte da sociedade.

  9. Seria muito bom então, diante das considerações com as variantes citadas no texto, rever e “considerar” as exigências e/ou aplicações das regras de escrita (padrão) nas avaliações que passam pelo saber linguístico dos alunos em todo o processo que se dá nos níveis de ensino e de aprendizagem.

  10. O multidialetalismo na escola, são frutos de processos migratório entre diversas relações centro e periferia, campo e cidade, estados de regiões diferentes e relações intergeracionais, sendo assim as ações pedagógicas permitem que toda equipe pedagógica conheça melhor seus estudantes, possibilitando que todos esses saberes sejam utilizados no cotidiano escolar.

  11. Promover rodas de leitura favorece o conhecimento e contar história nos remete ao passado onde estas ideias abriam as portas da sensibilidade e aprendizagem.

  12. Acho que uma boa forma de trabalhar nesse sentido, o de valorizar a fala e sua diversidade, é a partir de textos literários. Ao deparar com as marcas da oralidades em letras de músicas, poemas, romances e textos de humor, os estudantes conseguem perceber a riqueza de significados específicos das diversas manifestações da fala, e conseguem se distanciar de uma posição preconceituosa.
    Letras de rap e de músicas sertanejas clássicas, por exemplo, evidenciam identidades a partir da reprodução da linguagem oral.
    Quando os estudantes se reconhecem nessa falas, que são artísticas e famosas, eles também passam a valorizar mais o próprio vernáculo.

  13. Através da oralidade o sujeito expressa como vê e vive. Assim, penso ser de suma importância seu estudo na educação fundamental, estudo esse que não siga os padrões de como são até então, mas que valorize a realidade de onde estes estão inseridos.

  14. Interessante. É importante valorizar os conhecimentos. Trazer à tona essa reflexão, só colabora para oportunizar espaços para a construção dos saberes, considerando essas raízes.

  15. Maravilhoso usar González para justificar essa incoerência em dizer que se aceita todas as formas de expressar e comunicar dos alunos e, na verdade, os corrigimos quando “falam errado” nas aulas de Língua Portuguesa.

  16. Maravilhoso, pois muitos dos nossos alunos são ótimos na produção oral, mas possuem dificuldades na escrita por medo de errar ao colocar no papel e deixam ocultas as suas ideias. Precisamos valorizar mais o conteúdo da produção, não os erros ortográficos.

  17. Sempre contei histórias para os meus alunos pois sei o quanto é importante para o seu desenvolvimento, fico muito feliz em saber que pode ser colocado no plano de aula 😁

  18. Olá!
    Já apliquei o projeto e posso dizer que foi uma experiência de muito aprendizado e muitos desafios. Fiz algumas adaptações e acrescentei um debate após a leitura do conto do Ondjaki, pois achei importante estabelecer uma discussão sobre o fato de a Madalena Kamussekele ter apanhado da avó. Os alunos e as alunas se empenharam no debate, sem contar que eles e elas adoraram o conto! No final da sequência de aulas, vários comentaram o quanto gostaram de contar histórias e de ouvi-las.

  19. O contato que enriquece só é possível quando compreendemos que existem diferenças (linguísticas e culturais), as quais devem ser respeitadas. Respeitar essas diferenças não é perder a própria identidade, é antes de tudo mantê-la e somá-la à do outro.

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