Facebooktwitterredditpinterestlinkedinmail

As escrevivências de Conceição Evaristo na publicação Cartas Negras

Por Nilvânia Damas Silva Lima

23 agosto 2018

No mundo tecnológico em que vivemos atualmente, quem ainda tem o hábito de escrever cartas e enviá-las pelo correio? Pouquíssimas pessoas, com certeza. Mas é nessa forma de escrever e comunicar que se pauta a publicação Cartas Negras, do projeto “Ocupação: Conceição Evaristo" realizado pela Fundação Itaú Cultural. O projeto tem por finalidade preservar a memória artística do Brasil e, para isso, realiza exposições físicas em espaço próprio e disponibiliza uma série de material virtual sobre a vida e a obra do artista escolhido. Iniciou-se em 2009, enfocando o artista intermídia Nelson Leiner. De lá para cá, foram homenageados escritores, atores, pensadores, jornalistas, professores, bailarinas, entre outros, que, de uma forma ou de outra, contribuíram para o cenário artístico nacional. Conceição Evaristo, em 2017, se tornou a 34ª homenageada e o foco deste texto recai justamente sobre as páginas nas quais podem ser encontradas cartas trocadas entre a escritora mineira e algumas amigas das antigas e da atualidade.

Em 1990, Conceição Evaristo, autora de Ponciá Vicêncio (2003), com o qual estreou no mundo da literatura, Becos da memória (2006), Poemas da recordação e outros movimentos (2008), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), Olhos d’água (2014) e Histórias de leves enganos e parecenças (2016), juntou-se a outras amigas escritoras para comemorar o lançamento da coletânea “Cadernos Negros” e tiveram a ideia de trocar correspondências entre si a fim de documentar suas percepções sobre o universo feminino das mulheres negras. Batizaram esse projeto de “Cartas Negras”. A ideia era escrever a mesma carta a todas as participantes do grupo de modo que haveria respostas diferentes, que, por sua vez, seriam também replicadas e enviadas a todas as outras integrantes. Entretanto, a vida as levou a abandonar o projeto. A roda do tempo girou, outros rumos foram tomados e as cartas foram esquecidas.

O projeto Ocupação proporcionou à Conceição Evaristo a oportunidade de retomar o antigo plano: publicar as cartas trocadas por elas. Então, a autora convida amigas do projeto original e escritoras da nova geração para, junto com ela, mostrar a literatura produzida por mulheres negras, cujos temas estão relacionados ao racismo e às questões de gênero. Para a autora, essa publicação se mostra também como um “estímulo muito grande para que cada uma continue na sua escrita”.

Disponibilizado virtualmente, o livreto, antes de apresentar as cartas produzidas para o projeto atual, exibe duas fotos atuais da escritora ilustrando a breve biografia que segue, cujo título é “Uma vida, uma história”. Posteriormente, mostram-se algumas fotos retratando pessoas e momentos importantes na vida de Conceição Evaristo, como a mãe – sua primeira fonte de inspiração, e a própria maternidade. Em seguida, há a reprodução parcial da primeira carta escrita por ela às amigas do projeto original, em 1991, para só, então, apresentar as cartas do projeto atual. Então, vemos a carta-convite escrita por Conceição às demais participantes, que nos são apresentadas nas duas páginas seguintes por meio de fotos. Seguem-se, então, as cartas-respostas de Ana Cruz, Ana Maria Gonçalves, Cristiane Sobral, Débora Garcia, Elizandra Souza, Esmeralda Ribeiro, Geni Guimarães, Jeniffer Nascimento, Lívia Natália, Mel Adún, Miriam Alves, Raquel Almeida. A última carta, da própria Conceição Evaristo, configura-se como uma espécie de agradecimento pela aceitação do convite e um reconhecimento das contribuições de cada uma das participantes na quebra do silêncio há muito estabelecido entre elas.

Conceição Evaristo, na carta-convite, compara o silêncio das antigas amigas ao jogo da capoeira, em que os corpos recuam e avançam para atingir seus objetivos. Então, ela conclama as antigas amigas a se fazerem ouvir novamente, pois suas vozes serão potencializadas pelas vozes das escritoras da nova geração. Esse “recuar e avançar”, na concepção da escritora, é o que as fortalece e as torna sagazes. Esse mote da capoeira perpassa as cartas-resposta de todas as outras, pois elas reconhecem, como numa guerra, a necessidade de recuar e avançar na luta diária contra os preconceitos sofridos pelas mulheres negras.

Ao final, fica-se com a sensação de que a troca de cartas vai realmente continuar, pois as escritoras parecem motivadas pelo chamamento de Conceição Evaristo. Entretanto, também permanece um gostinho de quero mais, já que se tem vontade de saber quais serão as respostas para todas as respostas que virão. Valeria investir em uma publicação mais extensa, começando pelas “Cartas Negras” de 1991 até as atuais.

Se você é professora (ou professor) e pretende trabalhar com o gênero textual cartas, pode encontrar material valioso nessa curta publicação, pois há ali bons exemplos do gênero carta pessoal, nos quais é possível perceber as condições de produção desse gênero, bem como abordar questões referentes a conteúdos temáticos, plano global e estilo característicos dessa variedade textual. Além disso, o material proporciona a oportunidade de ouvir, ainda que primariamente, um pouco das vozes femininas de algumas das literatas negras brasileiras em franca atividade.

Vivendo em um mundo tão tecnológico como o atual, as cartas ali publicadas resgatam um pouco do gosto pela leitura e escrita de cartas para aqueles que viveram o tempo em que a comunicação se dava essencialmente por meio de cartas. Para os jovens da atualidade, o livreto virtual pode representar uma maneira moderna e “antenada” de entrar em contato com o gênero cartas pessoais, além de servir como “gatilho” para a produção não virtual do gênero.

Vale a pena passear pelas páginas do livreto virtual e estender o passeio às outras escrevivências da autora para conhecê-la e entender mais do universo feminino negro nesse país assolado pelo velado preconceito de gênero e racial.